Crise política

Adeus, Montenegro! A história de um ano de avenças e crises

12 de março 2025 - 10:10

Casos e crises na saúde, educação e habitação marcaram um ano de governação dirigida a uma elite e que deixou o país mais desigual. Ministra da Saúde, Lei dos Solos e interesses de Luís Montenegro levaram ao fim do governo.

porDaniel Moura Borges

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Luís Montenegro
Fotografia de António Pedro Santos/Lusa

Luís Montenegro venceu as eleições a 10 de março de 2024. A coligação Aliança Democrática ficou com mais dois deputados do que o Partido Socialista e teve a oportunidade de formar governo. Passados quase dez anos de governação socialista, o Partido Social Democrata tinha oportunidade para assumir as rédeas da governação e forjar uma alternativa ao passismo que falhou em 2015.

Mas o primeiro-ministro caiu esta terça-feira, dia 11 de março, pela sua própria mão. Depois de duas semanas de sucessivos escândalos e faltas de esclarecimentos sobre a Spinumviva, empresa que seria de gestão do património familiar da família Montenegro, mas que rapidamente se percebeu ser uma empresa que funciona em volta apenas do primeiro-ministro.

O governo da Aliança Democrática teve um ano turbulento. Começou o mandato em modo de campanha eleitoral, com cedências a diferentes classes profissionais, mas foram várias crises em vários ministérios, uma mini-remodelação que substituiu três secretários de Estado, e o aprofundar de crises na saúde, na educação e nos serviços públicos. Esse legado, Montenegro levará consigo para a campanha eleitoral.

Logo em abril de 2024, o Executivo não escondeu ao que vinha. O Programa de Governo da Aliança Democrática contava com a descida do IRC e do IRS de forma a beneficiar as grandes empresas e a pequena parte da população que já tem rendimentos elevados. As promessas de Montenegro começaram rapidamente a ter um sabor amargo. A 13 de abril, o semanário Expresso pedia desculpa aos leitores por ter publicado uma capa de jornal onde se lia que “Montenegro duplica descida de IRS até ao verão”. Os jornalistas tinham confiado nos números que o primeiro-ministro trouxe à Assembleia da República e tinham-se enganado. O primeiro-ministro tinha tomado crédito por uma medida do anterior governo na descida de IRS e, segundo o diretor do Expresso, “ludibriado os portugueses”.

Um mês e meio mais tarde, a 3 de junho, o Governo apresentou e executou medidas para acabar com as formas de regularização de imigrantes ilegais em Portugal, promovendo a clandestinidade e permitindo o aumento e a exploração dos imigrantes no país. Foi uma medida executada à pressa, que agradou ao eleitorado de extrema-direita, e que foi criticada pelas associações de imigrantes e de apoio ao imigrante em Portugal.

Durante o verão, enquanto negociava aumentos com algumas classes profissionais, o executivo de Luís Montenegro apresentou medidas de apoio à habitação destinadas aos jovens. O Governo já tinha anunciado o programa Construir Portugal, que apagava as principais medidas do pacote Mais Habitação, de António Costa, e reforçava os incentivos à construção e à especulação.

As medidas para os jovens, sobretudo a isenção do IMT, do Imposto de Selo e de emolumentos para jovens até aos 35 anos na compra de uma casa e a garantia pública para obtenção de financiamento a 100% atuam todas do lado da procura. Apesar dos avisos da oposição, sobretudo do Bloco de Esquerda, de que as medidas iriam aumentar o preço das casas – coisa que a própria ministra da Juventude reconheceu – o Governo avançou com as medidas na mesma. Em setembro, já era claro que as medidas tinham feito subir os preços das casas. A 4 de março de 2025 foi noticiado que jovens estrangeiros com mais poder de compra estavam a aproveitar a garantia pública para comprar casa em Portugal, dificultando a compra a quem vive e trabalha em Portugal. A 10 de março, no dia antes de o Governo cair, o Conselho de Ministros alargou a garantia pública às sociedades financeiras para que estas também possam beneficiar com a especulação financiada pelo Estado.

Cada ministro, cada caso

Terminado o verão, os problemas na educação tornaram-se gritantes e o ministro da Educação, Fernando Alexandre, admitiu que milhares de alunos iriam começar o ano letivo sem aulas. Apesar de se confirmar essa realidade, o ministro decidiu apresentar contas erradas sobre a quantidade de alunos sem aulas, misturando as dezenas de milhares de alunos que não têm aulas a uma disciplina pelo menos numa parte do primeiro período com alguns milhares que não têm aulas a uma disciplina na totalidade do primeiro período. Cercado pela pressão pública, Fernando Alexandre admitiu que os números estavam errados, mas continuou sem lidar com a falta de professores. Esse mesmo ministro ameaçou, já em 2025, aumentar as propinas do próximo Orçamento do Estado, dificultando o acesso ao ensino superior e revertendo a descida gradual dos últimos anos.

No Orçamento de Estado para 2025, o governo previa o fim da publicidade na RTP, uma medida que beneficiaria as televisões privadas, mas essa medida acabou por cair por pressão do Bloco de Esquerda. Ainda em novembro, o ministro da Presidência, Leitão Amaro, acusou os maquinistas de comboios de consumirem álcool e provocar acidentes, causando reação do Sindicato dos Maquinistas dos Caminhos de Ferro Portuguesas, que pediu a demissão do ministro.

A ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, também se viu envolvida em controvérsia quando pediu a exoneração da diretor do CCB e pôs de parte a coordenadora da Equipa de Missão do projeto Évora 2027, sem razão fundamentada. Do mundo da Cultura, surgiram rapidamente vários apelos para cancelar o saneamento destas direções, mas a ministra fez ouvidos moucos.

O Ministério do Trabalho não ficou sem polémicas. O principal sendo o avanço da preparação da “pilhagem” da Segurança Social com a criação de uma comissão para estudar a reforma da Segurança Social que é liderada por Jorge Bravo, defensor público dos regimes complementares de pensões por iniciativa das empresas a troco de benefícios fiscais, ou seja, da gradual privatização das pensões. Mas Maria Palma Ramalho, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social também avançou os interesses das plataformas nas leis para TVDEs e estafetas, arranjou uma solução para vigilantes subcontratados que contornava a lei e deixou milhares de trabalhadores administrativos a ganhar o salário mínimo.

Miguel Pinto Luz, o ministro das Infraestruturas (e Habitação), ficou numa posição caricata quando foi salvo pela extrema-direita de ser ouvido no parlamento relativamente à privatização da TAP em 2015, que foi feita na 25ª hora. O mesmo ministro apresentou o novo “passe ferroviário verde” da Aliança Democrática apesar de dizer que “não é saudável” o Estado “investir tanto em comboios” e que integrou um adjunto que fez consultoria para o Grupo Barraqueiro, que tem em vista a entrada no mercado de transportes ferroviários em Portugal.

Já Paulo Rangel, ministro das Infraestruturas, deixa um ano marcado pelas tensões relativas ao Kathrin, o navio com pavilhão português que transportava explosivos para Israel, no contexto do genocídio na Palestina. O pavilhão acabou por cair, mas Rangel não se livrou da marca. Até porque se recusou a receber a relatora especial da ONU para os territórios palestinianos, Francesca Albanese. Mas também nunca explicou as razões para ter nomeado um oligarca do Cazaquistão para cônsul honorário de Portugal naquele país.

A ministra que devia ter caído

Apesar dos vários casos dos ministros, nenhum deles ficou tão fragilizado como a ministra da Saúde, Ana Paula Martins. Acima de tudo pelo caso das falhas de atendimento do INEM no início de novembro de 2024, e as 11 mortes sob investigação por se suspeitar estarem associadas à falha no atendimento nesses dias. O relatório da Inspeção Geral das Atividades de Saúde publicado em fevereiro de 2025 confirmou que havia responsabilidade por parte do Ministério da Saúde por não ter informado o INEM dos pré-avisos de greve.

Mas também por ter ignorado acumulação de funções de António Gandra d’Almeida, o diretor executivo do SNS que tinha acumulado funções de diretor do INEM do Norte com as de médico tarefeiro nos hospitais de Portimão e Faro ao fim-de-semana. E também nos hospitais de Matosinhos, Guarda e Gaia.

Também de mencionar é o conflito de interesses de Eurico Castro Alves, que tinha sido coordenador do plano de emergência e membro do grupo de trabalho que avalia esse mesmo plano, mas também como presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos e ligação a grupos privados de saúde. Essa tensão alastrou-se ao ponto de circular uma carta assinada com centenas de assinaturas de médicos a contestar o conflito de interesses, forçando Castro Alves a demitir-se da comissão que avalia o plano de emergência de saúde.

Somam-se a isso as sucessivas demissões, próprias ou por indicação da ministra, das administrações hospitalares. Foram 14 afastadas desde que o governo de Luís Montenegro tomou posse, sendo que em seis desses casos, os anteriores presidentes dos conselhos de administração foram substituídos por militantes do Partido Social Democrata.

Central à fragilidade da ministra é o atual estado do Serviço Nacional de Saúde, com urgências fechadas e um acesso cada vez mais difícil aos cuidados de saúde. Mesmo assim, a ministra insistiu em martelar a privatização dos centros de saúde com as Unidades Locais de Saúde Tipo-C e dias antes de o Governo cair, apostou na criação de cinco novas PPP em Portugal.

A lei dos solos e a porta aberta à corrupção

Entre o Natal e o Ano Novo, o governo tentou fazer passar entre os pingos da chuva uma alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão do Território que permite que solos rústicos sejam convertidos em solos urbanos, permitindo a agilização e construção em solos onde antes não era possível. O resultado imediato foi a subida dos preços dos terrenos rústicos.

Mas a alteração abria a porta a outros fenómenos de especulação e de corrupção. Desde logo quando o Governo deixou cair o arrendamento acessível como uma das modalidades obrigatórias para a reconversão de solos. Foi a essa lei que Mariana Mortágua chamou uma “autoestrada da especulação”, o que se confirmou com o facto do secretário da Administração Local e do Ordenamento do Território, Hernâni Dias, ser sócio de duas empresas do setor imobiliário criadas depois de ter entrado no governo.

Foi esse mesmo secretário de Estado que tutelou a área responsável pela nova lei dos solos. Hernâni Dias fundou uma primeira sociedade, a 28 de outubro de 2024, a MCRH Singular, Lda, com mulher e filhos, em Bragança, enquanto já estava no executivo. A empresa dedica-se ao setor imobiliário, construção civil e “gestão de património”. Duas semanas depois daquela empresa, voltou à carga fundando outra empresa, a Prumo, Esquadria e Perspetiva, lda, na Maia, com os mesmos fins.

O ministro da Coesão Territorial, Castro Almeida, também teve uma imobiliária durante mais de 25 anos, mas teve o bom senso de a vender, em janeiro, porque se começou a gerar “no espaço público a ideia de que ter uma empresa imobiliária era uma vantagem com a Lei dos Solos”.

Este escândalo levou à demissão de Hernâni Dias, e foi mais tarde revelado que a elaboração da lei contou com a consultoria do professor de Direito Carlos Lobo, antigo secretário de Estado de José Sócrates e sócio de várias empresas do ramo imobiliário.

Crise política e queda

Os casos da lei dos solos também abriram a porta à investigação que levou à crise política que fez cair o Governo. O Expresso revelou que a Solverde paga uma avença mensal de 4.500 euros à empresa familiar do primeiro-ministro, que era detida pela cônjuge de Luís Montenegro, apesar de serem casados em regime de bens adquiridos.

A avença era prestada por “serviços especializados de compliance e definição de procedimentos no domínio da proteção de dados pessoais”. Depois de a informação ser pública, Montenegro prometeu dar explicações numa conferência de imprensa. Mas não o fez, em vez disso, chantageou o parlamento e o país, ameaçando com moção de confiança e crise política. Preferiu não dar explicações.

O Bloco de Esquerda enviou 14 perguntas ao primeiro-ministro, que apenas receberam respostas na passada segunda-feira à tarde, não clarificando nenhuma nova informação. Além disso, o primeiro-ministro foi ainda criticado por ter ido jogar golge com o dono da Solverde após a moção de censura apresentada pelo Chega.

Depois de o Partido Socialista ter anunciado uma comissão parlamentar de inquérito, Montenegro anunciou a moção de confiança que hoje foi chumbada e fez o Governo cair, esclarecendo que preferia ir a eleições a dar respostas ao país. E foi isso que aconteceu. Entre outras revelações, como a despesa da campanha do Partido Social Democrata, de mais de 35 mil euros, a um hotel da Solverde em Espinho.

Esta terça-feira, o governo de Luís Montenegro caiu pela sua própria mão, envolto em suspeitas, opacidade e com um primeiro-ministro a ser investigado por um processo da Ordem dos Advogados e com uma denúncia anónima a ser investigada pelo Ministério Público. O país deverá seguir para eleições, mas a sombra de um ano de desgoverno dificilmente sairá de cima de Luís Montenegro.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.