A minha viagem pela ancestralidade

por

Elisabete Frade

18 de outubro 2025 - 14:06
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Se todos embarcássemos nesta viagem genética, talvez compreendêssemos que dentro de cada um de nós existe um mosaico de culturas aparentemente distantes, mas profundamente entrelaçadas.

Explorando o campo, 1899
Explorando o campo, 1899. Imagem Darren & Brad/Flickr

Sempre senti uma curiosidade profunda sobre as origens que carrego no meu ADN — as etnias que o compõem, os caminhos que os meus antepassados percorreram e os segredos guardados nas suas memórias silenciosas. Como tantos outros que partilham essa inquietação, encomendei um kit de ADN. Dois meses depois, chegaram os resultados: 74,2% portuguesa (com dois grupos genéticos distintos — um de Portugal e outro do Brasil), 12,8% espanhola, catalã e basca, 2,4% italiana do sul, 1,3% da Sardenha, 5,4% Argelina, 2,3% Marroquina e 1,6% da Tunísia.

Porém, esses números, embora fascinantes, deixaram-me com sede de mais. Descobri que representam apenas uma fração mínima da história — os últimos 500 a 1000 anos. Uma simples gota de água no vasto oceano da ancestralidade humana. Decidi então mergulhar mais fundo, cruzando pistas genéticas com a história. O que encontrei foi uma narrativa épica que transcende fronteiras e milénios.

O meu ADN guarda menos de 1% de herança Neandertal e 0,57% de ADN Hominídeo de Denisova. As suas pegadas aparecem em escavações arqueológicas na Suécia, datadas do período Mesolítico (7000–5000 a.C.), numa vítima de guerra da Idade do Bronze (3300–1200 a.C.), na Sérvia e na Eslováquia da Idade do Ferro. Entre as raízes que carrego estão os Ilírios, povo indo-europeu dos Balcãs e do sul da Itália; os Burgúndios, uma tribo germânica oriental que emigrou da Escandinávia para a Europa Ocidental; os Merovíngios na Alemanha (600 a.C.); os primeiros agricultores da Europa, descendentes de grupos que migraram da Anatólia (Turquia) à cerca de 8000 anos atrás; os pastores das estepes, grupos nómadas que viviam nas vastas planícies da Eurásia à 5000 anos atrás; aos caçadores-coletores europeus viveram na Europa durante a Pré-história.

Desde a Idade do Bronze, com a expansão celta e romana, e com a miscigenação entre povos mediterrânicos e nórdicos, o meu ADN recebeu influências vikings vindas da Escandinávia desde o século VIII. Herdou também marcas celtas, latinas, romanas e visigóticas (de Portugal e Espanha), raízes anglo-saxónicas e normandas dos séculos IX a XI (Inglaterra, Escócia e Holanda), e vestígios fino-úgricos e escandinavos das migrações setentrionais dos séculos VI a XI. Entre os séculos VIII a.C. e V d.C., surgem ligações à civilização etrusca e romana (Itália do Centro-Norte).

As antigas rotas comerciais do século XX a.C. ligaram-me a civilizações semíticas e levantinas do Médio Oriente — povos da Síria, Líbano e Palestina. Séculos mais tarde, com o colonialismo europeu dos séculos XVI a XIX, novas influências chegaram: nativos ameríndios e africanos (de regiões como Porto Rico, Colômbia, México e Peru). Essas misturas foram reforçadas pela colonização espanhola e pela importação de escravos africanos nos séculos XVI a XVIII, resultando numa fusão entre linhagens europeias, africanas e dameríndia) e possibilitou a herança Muisca e Quenchua (Nativo Sul Americano).

As rotas atlânticas e os contactos coloniais trouxeram ainda raízes mandingas e iorubás da África subsariana. Entre os séculos XIII e XVI, o contacto com o Império do Mali introduziu marcadores genéticos do povo do Senegal e da Gâmbia. Entre os séculos XIII e XIX, há vestígios de povos bantos e mandés (Serra Leoa) e dos reinos de Oyo e Benim (Nigéria). Cada um desses fios genéticos é um testemunho silencioso de encontros, resistências e sobrevivências.

No século XVI-XIX, foi introduzida uma mistura pós-columbiana (Nativo Sul-americano e Mesoamericano – Asteca, Maia). Entre o século XII-XVI, há presença de civilizações pré-incas e incas (Quechua e Aimara).

Também o Oriente deixou a sua marca. As migrações asiáticas legaram-me traços do sul, leste e sudeste asiático — da China, Japão e Vietname — reforçados com a expansão agrícola do sul da China no século X a.C. Trago igualmente uma herança genética Jomon e Yayoi (séculos X a.C.–III d.C.), originária do Japão. E, através das migrações indo-arianas do século XV a.C. e do contacto com os impérios dravídicos, surgem marcadores genéticos indianos. Entre os séculos X a.C. e XVI d.C., os contactos com nativos Ameríndios possibilitaram marcadores de ADN Andino e Mesoamericano.

De tudo isto nasce uma conclusão clara: somos o resultado de uma história que começou muito antes de nós, tecida por mãos de diferentes continentes, línguas e culturas. Eu sou o produto de séculos de encontros e viagens, de histórias que nunca conhecerei, de realidades que nunca imaginei e de aventuras que gostaria de ter vivido. Somos feitos de complexidades e memórias genéticas que desafiam fronteiras.

Se todos embarcássemos nesta viagem genética, talvez compreendêssemos que dentro de cada um de nós existe um mosaico de culturas aparentemente distantes, mas profundamente entrelaçadas. Somos, em essência, pontes entre mundos.

Como disse Angelina Jolie, “a nossa diversidade é a nossa força. Que vida aborrecida e inútil seria se todos fossem iguais.” Talvez esteja na hora de olharmos uns para os outros não através das diferenças aparentes, mas reconhecendo que essas diferenças também habitam em nós — escritas no nosso próprio código genético.

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