A crise de habitação já leva uma década mas permaneceu como apenas mais um fator de agravamento do custo de vida no meio da inflação pós-pandemia e causada pela invasão russa da Ucrânia. Em 2023, entrou de rompante nas vidas dos portugueses de repente, colocada no centro do debate político pelo povo nas ruas contra a especulação imobiliária.
O perigo estava à espreita e já era conhecido. Desde 2017 que o preço de venda das casas subia a quase 10% ao ano. O relatório mundial de direitos humanos da Amnistia Internacional em 2022 dava conta desta crise como uma das principais ameaças aos direitos humanos no país. Para além dos despejos forçados “que deixam as pessoas em piores condições habitacionais, em alguns casos sem-abrigo”, as críticas da organização não-governamental eram sobretudo feitas à timidez das medidas tomadas pelo governo socialista face aos dados divulgados em 2021, que mostravam que “mais de 38 mil pessoas precisavam de um teto.”
E se em 2022 um estudo da seguradora inglesa CIA Landlord identificava Lisboa como a terceira cidade mais cara do mundo para se viver - tendo em conta os rendimentos médios disponíveis quando comparados com os preços da habitação e com o custo de vida -, em 2023 os dados do índice internacional Housing Anywhere já consideravam Lisboa a cidade europeia mais cara para arrendar um apartamento.
À medida que a crise foi entrando na esfera mediática, os cabeçalhos foram-se tornando mais desesperantes. “Pedro e Joana viviam com os ex-companheiros. Ele voltou para casa dos pais, ela só viu solução no Alentejo”, dizia A Mensagem de Lisboa; enquanto o Expresso fazia a taxonomia do que chamou a “distopia da habitação em Lisboa”, entre “o apartamento à venda por 700 mil euros e as tendas na «Metrópole»”. Na CNN, apresentavam-se relatos que se iam normalizando: “«Não é por escolha que vivo em casa da minha mãe». Estes jovens têm «bons empregos», mas nem assim conseguem comprar casa”.
A resposta popular à crise de habitação
Entrámos em 2023 com a crise de habitação a todo o vapor. Na capital, a renda média ultrapassa os dois mil euros num aumento de 72%. No Algarve, 85% do total de crédito à habitação para pessoas reformadas é requisitado por estrangeiros. A taxa de juro nos novos créditos à habitação ronda os 3,24%, o quádruplo de 2021.
Ao mesmo tempo, o país tem mais de 720 mil casas abandonadas, os alojamentos locais multiplicam-se, os fundos imobiliários beneficiam de isenções fiscais, a habitação pública não representa mais de 2% dos fogos existentes em Portugal. Dois milhões de pessoas estão em situação de pobreza. A desigualdade está no centro da crise.
Movimento Vida Justa quer "coragem política" do Governo face à crise da habitação
Da ebulição da insatisfação social, nascem vários processos de protesto social. Os professores, face ao aumento do custo de vida, saem à rua aos milhares para reivindicar o descongelamento das carreiras. Na capital, o movimento Vida Justa organiza-se para contestar a crise social a partir da periferia. No Porto e em Lisboa surgem as primeiras conversas para uma manifestação pelo direito à habitação, incorporada nos Housing Action Days, uma semana de manifestações e ações por toda a Europa contra as crises habitacionais.
Em meados de fevereiro é anunciada a primeira manifestação Casa Para Viver. “A desigualdade social no acesso à habitação e a degradação das condições de vida não são inevitáveis leis da natureza. São o resultado de vivermos num sistema capitalista que tem como objetivo a maximização do lucro”, lê-se no manifesto, subscrito por mais de 100 organizações e que se multiplicou por seis cidades.
Nas semanas seguintes, o Governo socialista apresenta o programa Mais Habitação, a resposta de António Costa à crise da habitação e à crescente contestação social pelas ruas do país.
Abril de 2023: Mais Habitação, do nada ao quase nada
A apresentação do programa do Governo tornou-se um dos principais pontos de discussão política no país. Com medidas contraditórias, o programa tornou-se alvo de críticas, tanto à esquerda como à direita.
Essa contradição expressa-se na frustração dos jovens, que ao Expresso diziam que das medidas apresentadas “nenhuma combate os problemas reais que vivemos hoje” em contraste com a frustração das empresas de alojamento local, que no Jornal Económico diziam que “estamos a aproximar-nos muito do comunismo na habitação e no AL”.
Uma medida em concreto, o arrendamento forçado de imóveis devolutos há mais de dois anos, serviu de papão aos partidos da direita portuguesa que questionaram a sua inconstitucionalidade. “Um arrendamento compulsivo é um ato análogo a uma expropriação”, disse ao Público o jurista e professor da Universidade de Lisboa, Paulo Otero.
Do movimento pela habitação, as principais críticas surgiam contra a simplificação de despejos, incluindo sem contacto com os inquilinos. Mas também contra o “falso fim” dos vistos gold, uma vez que o programa, embora previsse o fim dos vistos gold, permitia novos pedidos até à implementação da legislação, renovações e a concessão de vistos para reagrupamento familiar.
A manifestação de 1 de Abril juntou dezenas de milhares de pessoas pelas ruas de Portugal, e cimentou a transformação da manifestação Casa Para Viver com a necessidade percecionada de uma plataforma que juntasse os movimentos pelo direito à habitação para colocar multidões nas ruas e fazer pressão ao Governo.
Bruxelas diz que os preços das casas vão continuar a subir. O apoio extraordinário às rendas é cortado. Face aos problemas estruturais do programa Mais Habitação, a agora plataforma convocou uma concentração em Lisboa, para dia 22 de Junho. “Este programa acentua a tendência de especulação, colocando os contribuintes a pagar os lucros de senhorios e proprietários”, lê-se na convocatória da concentração, que criticava “o aumento dos valores especulativos”, e “a transferência de dinheiros públicos para suportar estes mesmos lucros”.
Setembro de 2023: o fim dos residentes não habituais e a sua “suavização”
Em Sintra, Christine Lagarde diz que “o trabalho ainda não terminou” e que é preciso manter os juros altos. Poucos meses depois da concentração de Junho, na qual a plataforma procurou dialogar com os partidos do centro e da esquerda, e em particular com o Partido Socialista, e da qual não tinham saído quaisquer cedências, a plataforma Casa Para Viver lançou o repto para uma nova ação de massas por todo o país, desta vez para 30 de setembro.
Em altura de regresso às aulas, os preços dos quartos de estudantes aumenta 10,5%. Um terço dos inquilinos continua a gastar mais de 40% do rendimento com a habitação e os despejos crescem em 2023. As reivindicações sobre a crise de habitação eram as que a plataforma já tinha consolidado: o fim dos despejos, a fixação dos valores das rendas e das prestações do crédito à habitação pública, o fim real dos vistos gold, e, entre outras, o fim do estatuto do residente não habitual.Desta vez, as manifestações multiplicaram-se por 20 cidades em todo o país, de Braga a Portimão, e dezenas de milhares de pessoas saíram outra vez à rua, com ainda mais força.
Dois dias depois, António Costa anunciava na CNN o fim do estatuto do residente não-habitual e afirmava que o regime “não faz mais sentido”. Mas a mudança, celebrada pelo movimento pela habitação, não viria para ficar.
“Fim do regime dos residentes não habituais preocupa imobiliário”, dizia o portal Idealista, no dia seguinte ao anúncio de António Costa. Um mês depois, o Público anunciava o recuo do PS e o lançamento de um “regime transitório” para residentes não habituais em 2024.Desta forma, permanece um regime fiscal especial que garante por dez anos benefícios fiscais superiores aos da generalidade dos cidadãos, caso já tivessem iniciado as diligências do processo. Como aconteceu com os vistos gold, o fim do regime foi adiado e suavizado. Mais: enquanto “acabava” com os residentes não-habituais, o governo socialista preparava um outro regime, idêntico em tudo, mas especificamente para trabalhadores qualificados na área da “investigação científica, investimento e desenvolvimento empresarial”. Tirando lentamente com uma mão, o então primeiro-ministro apressava-se a dar com a outra.
Janeiro de 2024: mobilização contra o risco da política de direita
António Costa demite-se a 7 de novembro de 2023. Pouco depois, o Presidente da República convoca eleições para 10 de Março de 2024. Numa campanha eleitoral marcada pelos protestos dos polícias e pela imigração, a plataforma Casa Para Viver marca manifestação para 27 de Janeiro. O objetivo, declarado pelos organizadores, é recentrar o debate político nas soluções concretas das crises de custo de vida e de habitação.
Na convocatória, relembra-se o caminho percorrido: “anunciámos a saída à rua no dia 1 de Abril e o Governo anunciou o pacote Mais Habitação. Mas capitulou logo aos interesses financeiros e esvaziou-se em promessas. Saímos à rua no dia 30 de Setembro, e o Governo anunciou o fim do regime dos residentes não habituais, mas agora quer deixar tudo como estava”.
Mais uma vez, milhares de pessoas saem à rua pelo direito à habitação. Nas ruas da Baixa lisboeta, canta-se o “Grândola, Vila Morena” com a rua Augusta cheia de manifestantes. A esperança ainda está no ar.
Mas a vitória tangencial da Aliança Democrática a 10 de março dá-lhe caminho para formar Governo. Um mês depois, o site Idealista noticia que Montenegro revogará as “medidas erradas” do Mais Habitação, entre as quais o arrendamento forçado, os congelamentos de rendas e as “medidas penalizadoras” do alojamento local, entre elas a contribuição extraordinária e a caducidade das licenças que o Partido Socialista tinha decretado.
No mês seguinte, Miguel Pinto Luz, ministro das Infraestruturas e da Habitação, apresenta o programa Construir Portugal, centrado na construção de novos imóveis com bónus para projetos de habitação, “pacto com agentes do setor para aumento da capacidade construtiva”, redução do IVA nas obras, financiamento para nova construção e simplex urbanístico. A garantia pública para jovens de até 15% do valor de aquisição de uma casa com valor até 450.000€ torna-se a epítome do programa.
Essas mesmas medidas para os jovens têm um efeito contraproducente no mercado da habitação: aumentam a procura sem garantir a correspondência da oferta. A própria ministra da Juventude, Margarida Balseiro Lopes, admite que as medidas terão um efeito contraproducente. Mais tarde, é o jornal Público que o confirma.
Aprofunda-se a crise na habitação, e as medidas do governo seguem o caminho oposto daquele reivindicado pelo movimento social. Entretanto, a plataforma Casa Para Viver convoca nova manifestação para 28 de setembro, em protesto contra a anulação dos poucos avanços do Mais Habitação e a liberalização ainda mais profunda da construção e do mercado da habitação. Entre os avanços e os recuos do movimento de massas pela habitação, joga-se uma nova cartada contra a crise.