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Sete notas sobre o trabalho em Portugal

Recuperar o valor dos salários, reconstruir as relações coletivas de trabalho, distribuir o emprego e combater a desigualdade, tornar visível o trabalho condenado à invisibilidade são pois tarefas essenciais da esquerda, que exigem pensamento crítico, ação coletiva e iniciativa política que vá além da rotina parlamentar ou sindical. Artigo de José Soeiro para a revista Esquerda.
Fotografia de Paulete Matos
Fotografia de Paulete Matos

1. Temos mais emprego, mas continuamos a ser um país de precariedade

Em 2013, a população empregada em Portugal batia um triste recorde: 4 milhões e 355 mil pessoas, quase um milhão a menos do que em 2008, ano em que havia 5 milhões e 150 mil pessoas com emprego. Os anos da troika foram de falências, despedimentos e emigração em massa. Nesta legislatura, pelo contrário, recuperou-se mais de meio milhão de empregos (população empregada em 2018: 4 milhões e 900 mil), num efeito combinado de alterações na conjuntura, de política de recuperação de rendimentos e de aumento da procura interna. Mas o tipo de emprego não mudou de padrão. Entre os trabalhadores por conta de outrem, 22% tem um contrato precário. Entre os jovens, são dois terços sem contrato permanente. Mais grave ainda: dos novos contratos registados no Fundo de Garantia do Trabalho, quase metade são contratos a prazo. Ou seja, a tendência não é para que estes percam peso no conjunto do emprego. Para termos um retrato mais completo da precariedade, seria preciso somar aos contratos a prazo os trabalhadores a falso recibo verde (uma grande parte dos mais de 500 mil trabalhadores registados como “independentes”), os que estão no trabalho temporário (cerca de 70 mil trabalhadores) e os trabalhadores sem qualquer tipo de contrato ou com os chamados “contratos de muita curta duração”. O Portugal de 2019 continua a ser um país precário.

2. O salário mínimo aumentou, mas o trabalho é mal pago e não recuperou os valores anteriores à crise

Contra a pressão europeia e a ideologia do empobrecimento como solução para o emprego, Portugal aumentou o salário mínimo em cerca de 20%, entre 2016 e 2019. É talvez o gesto mais significativo de valorização dos salários mais baixos, que ganharam poder de compra real. Mas viver com 600 euros por mês (um pouco menos, descontada a contribuição para a segurança social) é uma missão quase impossível, num país em que, por exemplo, o preço da habitação disparou. Já os salários médios, se é verdade que aumentaram nesta legislatura, cresceram muitíssimo pouco – cerca de 1,3% de crescimento real, abaixo da produtividade. Continuamos assim um país de salários baixos, de trabalhadores pobres e de exploração: o nosso salário médio é inferior a 900 euros, enquanto a média da UE é de 2.000€ (cerca de 5.000 na Suíça, e mais de 1.500 na vizinha Espanha). A diminuição do peso do rendimento do trabalho em proporção do PIB nas últimas décadas (está hoje perto dos 52%, quando era cerca de 60% em 2000) mostra também como a riqueza não está a ser distribuída por quem a produz, antes pelo contrário. Com efeito, a compressão salarial significa que, apesar de o país crescer e de a produtividade aumentar, é o capital quem mais beneficia. Resultado: os salários médios reais continuam abaixo do que eram em 2010. No debate sobre os caminhos futuros, é impossível não partirmos desta constatação.

3. Em Portugal, trabalha-se tempo de mais e muito dele sem remuneração

No período da troika, PSD e CDS não se limitaram a diminuir o preço do trabalho (cortando salários, reduzindo o valor do trabalho noturno, do trabalho suplementar ou das compensações por despedimento), aumentaram também o tempo de trabalho não pago (com a eliminação de feriados e de dias de férias) e desregularam como nunca os horários. Atualmente, 76,6% dos trabalhadores por conta de outrém está abrangido por uma modalidade flexível de horário, como os bancos de horas ou a adaptabilidade. Há mais de 700 mil pessoas a trabalhar por turnos. A laboração contínua parece estender-se a cada vez mais sectores. Conciliar trabalho e vida pessoal torna-se cada vez mais complicado. Além disso, com as novas tecnologias, o trabalho invade o tempo de descanso e coloniza a esfera pessoal: os apelos a uma espécie de “conetividade permanente” violam as fronteiras dos horários e prolongam o tempo de trabalho, muito dele não remunerado.

Com efeito, mais de metade das horas extra em Portugal não são pagas. Se este trabalho suplementar não remunerado fosse convertido em emprego, seriam criados 64 mil novos postos de trabalho. Dá que pensar. Distribuir este emprego, reverter os cortes da troika que permanecem (por exemplo, nos despedimentos), devolver os dias de férias suprimidos, converter a inovação tecnológica em mais tempo para viver, proteger os trabalhadores por turnos e regular os horários têm de ser prioridades da Esquerda. Sem isso, a interrupção da perda de direitos destes últimos anos não será capaz de inverter o plano inclinado em que o mundo do trabalho foi colocado nas últimas décadas.

4. Uberização e outsourcing: as novas vias da precarização

Em Portugal, a precarização tem-se feito por várias vias. Por um lado, criaram-se guetos laborais através de novas modalidades legais de emprego flexível (como aconteceu com o trabalho temporário). Por outro, convive-se com a impunidade perante a transgressão generalizada da lei (como no caso dos falsos recibos verdes). A estas duas formas de precarização – através da lei e através da transgressão à lei – têm-se somado outras, cada vez mais importantes. Por via do falso outsourcing, disfarça-se a colocação privada de mão-de-obra e o fornecimento de trabalhadores como sendo uma relação entre uma empresa e outra que lhe presta serviços, subtraindo assim os “terceirizados” às regras acordadas para a empresa onde de facto trabalham e estilhaçando a organização coletiva. Através da deslaboralização das relações de trabalho, estas passam a ser enquadradas pelo direito dos negócios – deixa de haver patrões e passa a haver só clientes, deixa de haver trabalhadores para haver apenas prestadores de serviços. Eis porventura o maior desafio colocado ao movimento dos trabalhadores: como criar uma cultura de intervenção laboral nestes sectores e como resgatar a chamada “nova economia” para os mecanismos de proteção do trabalho sem os quais a democracia não existe verdadeiramente?

5. Contratação coletiva: uma questão de minorias?

O número de trabalhadores cobertos pela contratação coletiva é hoje de cerca de 900 mil. Trata-se, sem dúvida, de um universo significativamente melhor do que os menos de 250 mil de 2014. Mas a abrangência das convenções coletivas está longe da de 2008, altura em que estavam cobertos por elas 1 milhão e 895 mil trabalhadores. O problema é quantitativo (que democracia laboral persiste quando a contratação coletiva diz respeito apenas a uma minoria da força de trabalho?) e qualitativo, isto é, de conteúdos. Apesar de haver hoje mais pessoas abrangidas, o facto de as convenções serem negociadas sob a chantagem patronal de fazer caducar unilateralmente o contrato só pode puxar os direitos para baixo. O mote está dado ao permitir-se que as convenções tenham disposições inferiores à lei geral, nomeadamente sobre as formas de organizar o trabalho e os seus tempos. O desequilíbrio é hoje a regra nas relações coletivas de trabalho. A lei deveria, contudo, servir exatamente para impedi-lo.

6. Emprego, desempregoe proteção social

No final de 2018, havia, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, 349 mil pessoas desempregadas, 6,7% de taxa de desemprego. A estes números há que somar os “desencorajados” que não cabem nas estatísticas. O valor anda assim muito longe dos 855 mil desempregados oficiais de 2013, que, na verdade, correspondiam a bem mais de um milhão, se juntarmos àquele número os “desencorajados” e os que imigraram por falta de trabalho. A redução do desemprego é, sem dúvida, o facto mais celebrado da atual conjuntura. Muito menos falada é, contudo, a situação dos desempregados. Em Portugal, desde 2010 que o rácio de cobertura do subsídio de desemprego está abaixo dos 50%, ou seja, a maioria dos desempregados não tem acesso a qualquer proteção no desemprego. Quase 60% não tem apoio, seja porque esgotou o prazo de duração do subsídio, seja porque teve percursos tão precários que não consegue cumprir os prazos de garantia necessários para ter acesso à prestação. O fim das humilhações quinzenais (as apresentações obrigatórias acabaram em 2016), a reversão do corte de 10% no valor do subsídio (que acabou em 2018), a reforma antecipada para quem tem muito longas carreiras contributivas, o reforço da proteção para os desempregados de longa duração ou para trabalhadores independentes foram mudanças no sentido certo. Mas uma política de esquerda tem mais caminho, não pode deixar ninguém para trás ou abandonado à sua sorte. E isso exige coragem: alargar substancialmente a proteção no desemprego, ao mesmo tempo que se reduz o horário de trabalho para distribuir o emprego que existe. Se tomássemos como referência a experiência francesa de 1998, a aplicação das 35 horas no sector privado em Portugal poderia criar cerca de 230 mil postos de trabalho. É sensato e tem de ser feito: mais emprego e mais tempo para viver.

7. Tornar visível o invisível

No nosso país, a economia informal tem um peso de quase ¼ do PIB, o mundo do trabalho está repleto de verdadeiras zonas de offshore laboral, a dissimulação de relações de trabalho por via dos mais variados expedientes (da falsa prestação de serviços às plataformas digitais ou ao trabalho clandestino) continua a ser um mecanismo de negação de direitos básicos. Há ainda uma parte importante do trabalho que, sendo essencial, continua a ser remetido para a invisibilidade social e política (como o trabalho das limpezas ou o trabalho doméstico assalariado) ou a não ser minimamente reconhecido (como o trabalho reprodutivo, em particular o que está associado aos cuidados). Recuperar o valor dos salários, reconstruir as relações coletivas de trabalho, distribuir o emprego e combater a desigualdade, tornar visível o trabalho condenado à invisibilidade são pois tarefas essenciais da esquerda, que exigem pensamento crítico, ação coletiva e iniciativa política que vá além da rotina parlamentar ou sindical. Seremos capazes?

 

Fontes:

AAVV (2016), Livro Verde das Relações Laborais. Lisboa: Gabinete de Estratégia e Planeamento MTSS.

AAVV, (2018), Atualização do Livro Verde das Relações Laborais. Lisboa: Gabinete de Estudos e Planeamento MTSS

Manuel Lopes et al. (2017), Medidas de Intervenção Junto dos Cuidadores Informais. Documento Enquadrador, Perspetivas Nacionais e Internacionais

OIT (2018), Trabalho Digno em Portugal 2008-18. Da crise à recuperação. Genebra: Bureau Internacional do Trabalho

INE (2019), Estatísticas do Emprego - 4º trimestre de 2018.

José Soeiro. Sociólogo. Deputado do Bloco de Esquerda

Artigo publicado em fevereiro de 2019 na revista Esquerda

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
Termos relacionados Revista Esquerda, Sociedade
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