ONU acusa Israel de torturar funcionários para confessarem ligações ao Hamas

18 de abril 2024 - 17:21

Relatório da agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos inclui testemunhos de funcionários detidos por Israel, que relatam espancamentos e ameaças para os obrigar a fazer confissões falsas.

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Funcionários da UNRWA inspecionam instalações da agência destruídas em  Khan Younis
Funcionários da UNRWA inspecionam instalações da agência destruídas em Khan Younis. Foto UNRWA/X

A agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos (UNRWA) divulgou esta terça-feira um relatório sobre os mais de 1.500 detidos por Israel na Faixa de Gaza que foram libertados pelo exército após interrogatório até 4 de abril. Entre eles estavam 23 funcionários da agência e 16 familiares de funcionários.

O governo israelita lançou há meses a acusação de que pelo menos 30 funcionários da UNRWA tinham participado nos ataques do Hamas de 7 de outubro, o que levou algumas dezenas de países e instituições a suspenderem o financiamento à agência.

Agora, o relatório descreve como os funcionários detidos foram pressionados para confessar que havia elementos da UNRWA naqueles ataques. Os relatos dos detidos agora libertados falam de espancamentos, ameaças de morte e violação e o uso de técnicas de asfixia conhecidas como waterboarding.

"Se eu não reconhecesse alguém, a agente ameaçava bombardear a minha casa"

Os relatos dos detidos descrevem o seu transporte em camiões para aquartelamentos militares que alojavam entre 100 a 120 pessoas, onde lhes eram retirados todos os pertences e  mantidos em regime de solitária entre os interrogatórios, por períodos que por vezes foram de várias semanas. Eram interrogados várias vezes, com o último interrogatório a cargo da agência de segurança interna, o Shin Bet. Antes da libertação, passavam ainda pelo sistema prisional.

"Vi pessoas com 70 anos, muito velhas. Havia pessoas com Alzheimer, idosos cegos, pessoas com deficiência que não conseguiam andar, pessoas com estilhaços nas costas sem se conseguirem levantar, pessoas com epilepsia... e a tortura era para todos. Até para os que não sabiam o próprio nome. Dissemos-lhes que uma pessoa era cega. Eles não queriam saber", relata um os detidos, identificado como um homem com 46 anos.

Os maus tratos eram infligidos sobretudo nos aquartelamentos e eram mais intensos antes dos interrogatórios. Os relatos falam de espancamentos enquanto tinham as mãos e pernas atadas com algemas de plástico e estavam deitados num colchão fino em cima de entulho durante horas, sem comer nem beber ou ir à casa de banho. Outros falam de serem obrigados a entrar em jaulas onde eram atacados por cães. O relatório confirmou as mordidas de cães nos corpos de alguns dos libertados, incluindo uma criança. Todos eram ameaçados com uma detenção prolongada ou com a morte de familiares caso não dissessem o que os seus algozes queriam ouvir.

"[O Shin Bet] mostrou-me o meu bairro inteiro num ecrã de computador e perguntou-me quem eram as pessoas que ia apontando - quem é este, quem é este, etc... Se eu não reconhecesse alguém, a agente ameaçava bombardear a minha casa. Ela perguntou quem é que na minha casa não tinha evacuado para o sul. Disse-lhe que os meus irmãos e o meu pai ficaram na casa. Ela disse se não confessares tudo, vamos bombardear a tua casa e matar a tua família", contou uma das mulheres detidas, com 34 anos.

Outras situações descritas são a obrigação de estarem sentados de joelhos durante 12 a 16 horas com as mãos atadas e os olhos vendados, as horas de sono limitadas da meia noite às quatro ou cinco da manhã com as luzes sempre acesas e ventoinhas com ar frio, apesar de ser inverno. Mas também os espancamentos, ameaças, insultos, música e ruído em alto volume ou a obrigação de imitar animais ou de ter um soldado a urinar-lhe em cima. Também são relatados casos de violência sexual sobre homens e mulheres.

Funcionários da ONU denunciam tortura para obter confissões

Os funcionários da UNRWA detidos, alguns nas instalações da agência ou quando executavam as suas funções, não escaparam ao mesmo tratamento dado aos outros detidos. Mas no seu caso, as pressões eram para confessarem que a agência da ONU tinha ligações ao Hamas ou que os seus funcionários tinham participado nos ataques de 7 de outubro. Relatam terem sido espancados com gravidade e sujeitos a asfixia com água (waterboarding) e os autores das torturas eram não só soldados mas também os médicos que lhes deviam dar assistência. Foram também atacados por cães, ameaçados de morte tal como os seus familiares, obrigados a despirem-se para lhes tirarem fotografias, entre outros maus tratos.

A maioria dos detidos em Gaza foram presos ao abrigo da lei que permite a detenção sem julgamento de quem participe em atividades hostis a Israel sem ser classificado como prisioneiro de guerra. Entre os libertados estão 43 menores e 84 mulheres. Uma emenda aprovada em dezembro àquela lei permite que as pessoas consideradas suspeitas de envolvimento com o terrorismo possam estar 75 dias presas sem serem presentes a um juiz.

A reação do exército israelita ao relatório, citada pelo Haaretz, foi de que não podem responder aos testemunhos ali citados sem estarem na posse dos detalhes completos sobre a identificação dos denunciantes, rejeitando alegações de abuso sistemático, incluindo sexual, das pessoas que prendeu.

Diretor da UNRWA denuncia campanha para expulsar agência do território palestiniano ocupado

Esta quarta-feira, o líder da UNRWA, Phillipe Lazzarini, informou o Conselho de Segurança da ONU sobre o ponto de situação da crise humanitária em Gaza e as ameaças sofridas pela agência que garantia a ajuda alimentar no território que está há mais de seis meses sob bombardeamento e cerco por parte do estado sionista que "tornaram Gaza irreconhecível".

"Do outro lado da fronteira, há comida e água potável à espera - mas a UNRWA não tem autorização para entregar esta ajuda e salvar vidas", afirmou o responsável da agência, acrescentado que a UNRWA "está a enfrentar uma campanha para a expulsar do território palestiniano ocupado".  

Referindo-se ao relatório divulgado na véspera, Lazarinni exigiu "uma investigação independente e a responsabilização pelo desrespeito flagrante do estatuto de proteção dos trabalhadores humanitários, das operações e das instalações" da agência das Nações Unidas em Gaza.