Política

Do fim da manifestação de interesse às vias verdes: como o Governo discrimina na imigração

26 de dezembro 2024 - 10:23

Desde que acabou com a manifestação de interesse, o Governo tem procurado abrir vias verdes para setores onde é pressionado pelos interesses financeiros. O resultado é a discriminação de umas comunidades imigrantes face a outras.

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Luís Montenegro
Luís Montenegro. Fotografia de FMT/Flickr

3 de junho de 2024. Pouco mais de dois meses de ter tomado posse e em plena campanha para as eleições europeias, o governo de Luís Montenegro anuncia as medidas do Plano de Ação para as Migrações. Entre elas, o fim repentino do mecanismo de manifestação de interesse, que permitia aos imigrantes que trabalham em Portugal sem estarem regularizados se pudessem regularizar.

“Nem de portas fechadas, nem de portas escancaradas”, disse na altura o primeiro-ministro. Luís Montenegro admitia que essa mesma frase “soa a slogan” mas que defendia uma política de “dignidade às pessoas”. Na prática, aumentou a vulnerabilidade de milhares de imigrantes em Portugal, desde nadadores-salvadores que trabalham em Portugal a convite do Instituto de Socorro a Náufragos, às centenas de imigrantes que se fizeram ouvir pelo regresso da manifestação de interesse.

Apesar da medida que aproximou o executivo da Aliança Democrática da extrema-direita, a narrativa do primeiro-ministro foi-se mantendo ao longo dos últimos meses. Promover a imigração mas não “de portas escancaradas”, receber imigrantes mas criar mecanismos para que que estes “possam ser repatriados”. O ministro da Presidência, Leitão Amaro, reforçou a narrativa acenando com o perigo da “imigração descontrolada”, mas ao longo de seis meses a política migratória foi sendo esburacada e retalhada à medida que vários interesses financeiros se queixaram da falta de mão-de-obra imigrante.

Ainda no dia 3 de junho, a par da retirada da manifestação de interesse, Luís Montenegro anunciava a “agilização” dos procedimentos de concessão de vistos e autorizações de residência a cidadãos nacionais de países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Enquanto com uma mão dificultava a vida a milhares de imigrantes que já estavam em Portugal, com a outra criava mecanismos para que muitos mais entrassem, justificando com a “facilidade comparativa de integração linguística, profissional social e cultural”.

Isso não impediu que se criasse um clima de pânico entre os imigrantes que vivem e trabalham em Portugal, e que estão em processo de se regularizar. Cyntia de Paula, então presidente da Casa do Brasil de Lisboa, explicava que diariamente começavam “a assistir a um desespero total” e que passavam dias na associação “a gerir o pânico”.

Para além da “agilização” dos processos de imigração para a CPLP, Montenegro admitiu também que criaria canais “tipo via verde” para as confederações e associações empresariais, agilizando as áreas de imigração de acordo com os interesses financeiros e económicos de mão-de-obra barata.

No dia 4 de junho, as novas regras já tinham entrado em vigor. Como resultado, várias queixas começaram a surgir, dos mais diversos setores da economia. Desde logo na construção, onde a Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário e da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas apontavam as “dificuldades acrescidas”. Os donos das empresas de construção reclamaram por isso a criação precisamente de um “via verde Empresas”, que através de “plataformas globais e gestores dedicados”, pudesse facilitar a obtenção de mão-de-obra imigrante.

Mas também no desporto, onde a Liga Portugal se reuniu com o Governo para pressionar à criação de uma outra “via verde”, desta vez para os clubes de futebol, e onde a liga de basquetebol foi adiada por causa da lei de imigração. E ainda nas pescas e na agricultura – ambos setores com trabalhos precários, mal pagos e com más condições – onde a Confederação de Agricultores Portugueses e a Associação Nacional das Organizações de Produtores da Pesca do Cerco partilharam a opinião de que os trabalhadores imigrantes eram “imprescindíveis”.

Ao mesmo tempo, as alterações à Lei da Imigração diminuíram a procura de vistos para Portugal. Nos três meses que se seguiram à aplicação das medidas do Plano de Ação para as Migrações, a média mensal de emissão de visto de procura de trabalho baixou 23% em relação à média mensal do total dos 12 meses do ano anterior (de 1.666 para 1.266).

Exceções para os interesses financeiros

Pressionado pelas organizações patronais e industriais dos mais diversos setores, que começavam a sentir na pele a perda de mão-de-obra barata, o Governo começou então a abrir mais exceções para facilitar a imigração em determinadas áreas. Uma das primeiras foi o desporto, onde a 23 de julho era anunciado que a Agência para a Integração, Migrações e Asilo celebraria acordos com várias federações desportivas com o objetivo de acelerar autorizações de residência para atletas. Pedro Proença, o presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, rapidamente considerou a medida “uma solução estrutural” para o problema que o Plano de Ação para as Migrações criou.

A 26 de setembro, Leitão Amaro anunciou novas modificações no regime de entrada dos estrangeiros em Portugal. Tornar-se-ia possível que cidadãos da CPLP pudessem pedir autorização de residência em Portugal depois de entrarem no país. A proposta acabou por ser votada a 20 de dezembro. A situação, como salientou o jornal Público, é “semelhante à que existia com a manifestação de interesse”, mas apenas a ser aplicada aos cidadãos da comunidade lusófona, servindo como discriminação a outras nacionalidades.

A pressão dos empresários e organizações de patrões também levou a que o Governo se comprometesse a agilizar a emissão de vistos, fixando prazo máximo de 30 dias para a emissão do documento.

Em dezembro, o Governo deu a conhecer que já desenhou uma primeira proposta para facilitar a entrada de estrangeiros para o setor da construção civil, uma vez que estão em risco várias obras financiadas pelo Plano de Recuperação e Resiliência. Segundo o Jornal de Notícias, dezenas de concursos ficaram desertos este ano, por falta de trabalhadores. São projetos na construção ou requalificação de escolas, centros de saúde, casas, residências universitárias, lares e creches. Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas, estima que sejam precisos 80 mil trabalhadores só para “executar as obras já previstas”.

Mesmo assim, o Governo desentendeu-se com as organizações patronais. Ao promover a “via verde” para a construção, previu que as empresas fossem responsáveis por assegurar habitação, formação e contrato aos trabalhadores, ao que os patrões responderam que recusam assumir “responsabilidades que são do Estado”.

Aproximação à retórica da extrema-direita

A par das exceções que foi abrindo para imigrantes, que discrimina a partir da cultura e da língua – dando prioridade aos imigrantes lusófonos – Luís Montenegro foi construindo uma narrativa de diabolização da imigração a partir de um discurso securitário. É o caso da conferência de imprensa que convocou para dizer que “Portugal é um país seguro” mas que não podemos “viver à sombra da bananeira”, que causou perplexidade até dentro do próprio Partido Social Democrata. É também o caso das reforçadas ações de “fiscalização” com um forte aparato policial por todo o país, tendo como alvo zonas habitacionais onde a percentagem de imigrantes é mais alta. No caso da Mouraria, por exemplo, a ação de “fiscalizou” cerca de 100 imigrantes, dos quais apenas um estava em situação irregular.

O Bloco de Esquerda criticou a política de imigração do Governo, afirmando que está virada para uma “visão oportunista” e reiterando que o Governo tem uma posição hipócrita. “Ao admitir uma via verde para alguns trabalhadores, a começar na construção, o que o Governo está a fazer desde logo é admitir o erro e a hipocrisia da sua política passada”, disse Mariana Mortágua.

“O Governo decidiu uma política de imigração não porque ela é mais justa para as pessoas, não porque ela é melhor para o país, não porque ela respeita quem quer que seja. Mas para ir atrás, responder, disputar ideias com a extrema-direita e com o Chega. Foi por isso que Luís Montenegro decidiu acabar com as manifestações de interesse e impedir a regularização de imigrantes em Portugal”, explicou.

No fim da reunião da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda de dia 8 de dezembro, a coordenadora do Bloco de Esquerda criticou o percurso da política de imigração do governo, que sempre esteve aliada aos interesses financeiros da economia portuguesa. “Trata a imigração como se fosse apenas uma questão das necessidades do país, como se fosse apenas uma questão de quantos é que precisamos para montar andaimes, de quantos é que precisamos para erguer um prédio, de quantos é que precisamos para trabalhar nas estufas. E a imigração é isso, mas é muito mais que isso”.