Entrevista

Manifestações de interesse: "Milhares de pessoas não conseguirão regularizar-se"

24 de julho 2024 - 11:49

Desde o dia três de junho, que a vida de muitos imigrantes foi lançada na incerteza. O Governo retirou da lei o direito à manifestação de interesse, que permitia a regularização de trabalhadores ilegais que já estivessem a viver e trabalhar no país. Entrevista com a presidente da Casa do Brasil, Cyntia de Paula.

porDaniel Moura Borges

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Retrato de Cyntia de Paula
Fotografia de Cyntia de Paula

A vida de muitos imigrantes caiu na incerteza perante a súbita eliminação do mecanismo de manifestação de interesse. O Governo defende a retirada com argumentos sobre o controlo da imigração, mas o que aumenta é o risco da imigração clandestina, da pobreza e da exclusão. 

O mecanismo de manifestação de interesse servia como processo de regularização de imigrantes que estivessem a viver e trabalhar de forma ilegal e informal em Portugal, garantindo-lhes a possibilidade de se integrarem nos sistemas sociais e fiscais do país.

O Esquerda.net entrevista Cyntia de Paula, presidente da Casa do Brasil de Lisboa. É representante suplente da comunidade brasileira no Conselho para as Migrações da AIMA e coordenadora política da Rede Sem Fronteiras Europa. Formada em psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses, é militante do Bloco de Esquerda.

 

O Governo anunciou a cessação das manifestações de interesse no início de Junho. Já se esperavam problemas nos processos de regularização, mas o que é que se tem sentido concretamente?

Apesar de amplamente ter sido divulgada a retirada das manifestações de interesse, mas a manifestação de interesse era apenas o procedimento. O que foi retirado às pessoas migrantes foi o direito, foram retirados os dois artigos da Lei de Estrangeiros e não a manifestação de interesse. Ou seja, nós retiramos o instrumento jurídico que a pessoa poderia solicitar. Foi muito má até a retórica em cima do processo, porque retirar os artigos que permitiam esse direito é muito mais complexo do que retirar o procedimento. A manifestação de interesse poderia ser substituída por outro mecanismo – por correio ou agendamento direto - mas não foi isso que aconteceu. Nós perdemos os dois artigos que permitiam que as pessoas migrantes trabalhadoras, independentes ou subordinadas, que estivessem em Portugal se pudessem regularizar, o que é um retrocesso de 17 anos.

 

Quais são os impactos concretos desse retrocesso na vida das pessoas?

Nós tivemos muitas pessoas que não tinham ainda conseguido submeter a manifestação de interesse porque ainda não tinham contrato ou porque estavam a trabalhar há pouco tempo e muitas vezes as pessoas esperam alguns meses até ter contribuições para a Segurança Social. São milhares de pessoas que não conseguirão regularizar-se, sem nenhuma hipótese de regularização. Começamos a assistir a um desespero total. Nós passamos dias e dias na associação a gerir o pânico. Porque causou nas pessoas: “o que vai acontecer comigo? O que vai acontecer com a minha vida? Vão-me mandar embora? Vão-me prender?”

 

E a médio-longo prazo?

É um absurdo. Isto nunca deveria ter sido feito dessa forma. Não se resolve um problema de um serviço retirando direitos. Eu costumo comparar: estamos a viver um problema com o SNS, então vamos tirar o direito das pessoas ao SNS. Foi isso que aconteceu com as pessoas imigrantes. Temos um problema de estrutura, um problema de serviço, tiramos o direito para resolver o nosso problema, isso não faz sentido. Todos nós sabemos que Portugal precisa de mão-de-obra das pessoas migrantes. Nos trabalhos mais precários estão as pessoas migrantes, com piores condições de trabalho.

 

Portanto, a situação de irregularidade aprofunda a precariedade das pessoas.

Ao regularizarem-se, as pessoas podem ter acesso a um trabalho melhor, sentem-se também mais capazes até de denunciar situações de exploração. Muitas das entidades empregadoras utilizam o facto da pessoa ainda não ter o seu documento para não cumprir com direitos laborais. As pessoas migrantes vão continuar a trabalhar, porque há trabalho. Mas vão ficar em situação de irregularidade e vão ter muito pior acesso aos seus direitos. Muitas juntas de freguesia já não querem emitir o atestado de residência para pessoas migrantes que não tenham o título de residência. A Segurança Social já está a querer criar entraves para quem não tem visto prévio, para quem não tem autorização de residência. E é um contra senso, porque nós temos uma Segurança Social que depende do trabalho dessas pessoas, da sua contribuição, mas vamos impedir as pessoas de contribuírem para a Segurança Social.

 

No futuro próximo, Portugal vai ter grandes obras (aeroporto, terceira travessia do Tejo…) que precisarão de muita mão-de-obra e muita dessa mão-de-obra é imigrante. De que forma é que a retirada do direito de manifestação de interesse afeta isso?

Vai ser um caos. Acho que vai ser uma tragédia. Mas quem vai perder serão as pessoas imigrantes porque as empresas vão ganhar ainda mais com a mão-de-obra barata não regularizada. As empresas não vão deixar de ter os trabalhadores, vão é deixar de cumprir os direitos dos trabalhadores que ficarão com receio por não estarem regularizados. Vão ser tempos muito difíceis. O que Portugal tem feito nos governos do PS e PSD sobre a questão das migrações, são tomadas de decisão não pensadas, não refletidas, não construídas com a sociedade civil. Ou seja, não há um envolvimento numa discussão profunda do tipo de resposta que nós temos de criar. Porque se isso fosse feito, jamais teria sido escolhida a retirada de direitos.

 

Há uma tentativa do PSD de usar argumentos da extrema-direita para ganhar peso eleitoral?

A retirada de direitos numa democracia não é possível. Ela é muito sintomática porque vem, no meu ponto de vista, dessa tentativa de colar ao discurso da extrema-direita e de agradar a um eleitorado. O motivo principal foi a incapacidade de fazer uma agência funcionar. Sem capacidade de construir um serviço forte, ao invés de pensar de forma coletiva e resolver o problema - pela contratação de recursos humanos, sistemas informáticos que funcionem, meios para que os processos das pessoas sejam finalmente concluídos - optou-se pela ideia errada de estancar um problema e depois logo se vê. “Vamos parar aqui, ninguém vai vir e quando tivermos menos processos, vamos regularizar”, mas isso não é possível.

 

O Presidente da República tem expressado preocupação e diz que a revogação é temporária, criando até fricção com o Governo sobre isso. O que achas da sua posição?

Essa é a proposta do Partido Socialista. Que seja temporário e que haja um período para as pessoas que já estavam aqui e que ainda não tinham submetido a manifestação de interesse, que haja um meio-termo. Eu acho que temos que revogar o decreto. Acho que nem temos que entrar em ser temporário ou ser permanente. Eu acho que a luta tem que ser pela revogação. Acho que nós não podemos aceitar um decreto que é emitido, promulgado e de repente as pessoas foram dormir e acordaram sem os seus direitos. Eu acho mesmo que é uma questão política muito simbólica. É muito urgente. Não podemos aceitar.

Se esta decisão for revogada, há um trabalho ainda por fazer, sobretudo com a AIMA. Por onde começar?

Primeiro, é fundamental ter recursos humanos. Já era um problema do SEF. No fundo a AIMA não inventou esse problema. São milhares de processos. Nós precisamos de muitas pessoas trabalhadoras na Agência e também de sistemas informáticos rápidos que auxiliem essas pessoas trabalhadoras a concluírem os seus processos. São precisas muitas taskforces. É preciso tratarmos dos processos pendentes, mas também é preciso tratarmos de todos os outros que virão. E eu não vejo outra forma a não ser o investimento a nível de recursos humanos.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Jornalista no Esquerda.net. Militante do Bloco de Esquerda
Termos relacionados: Sociedade imigrantes, SEF ,  AIMA