Imigração

Pelo retorno da Manifestação de Interesse, nada menos do que isso

11 de novembro 2024 - 11:30

A entrada em vigor, na sexta-feira, do “remendo” legislativo proposto pela Iniciativa Liberal não deve, em momento algum, refrear a nossa luta pelo retorno da Manifestação de Interesse. Assim o exige um combate intransigente contra a excecionalidade e a arbitrariedade, o abuso, a exploração e a indignidade.

porMariana Carneiro

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Cartaz na manifestação de imigrantes
Cartaz na concentração de imigrantes do dia 25 de outubro em frente ao Parlamento. Foto de Ana Mendes.

A Lei publicada no passado dia 7 de novembro determina que a revogação dos procedimentos de autorização de residência assentes em Manifestações de Interesse (MI) não se aplica, como, diria eu, já era óbvio, aos procedimentos de autorização de residência iniciados até à sua entrada em vigor, a 3 de junho.

Este diploma refere ainda que essa mesma revogação também não se aplica aos casos em que, comprovadamente, a pessoa demonstre que, anteriormente a 3 de junho, “independentemente de ter ou não apresentado a manifestação de interesses, se encontrava inscrita na segurança social e a realizar contribuições ao abrigo de uma atividade profissional subordinada ou independente, com vista a perfazer os 12 meses” previstos na Lei da Imigração (n.º 6 do artigo 88.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação anterior).

Há ainda muito a esclarecer no que respeita à operacionalização efetiva desta Lei. Desde já, levanta-se a questão sobre se as Manifestações de Interesse que já tinham sido iniciadas anteriormente a 3 de junho, mas ainda não tinham sido submetidas, vão ficar novamente ativas. E em que portal, e com que ferramentas informáticas, se poderá aceder às mesmas, bem como submeter as novas MI. Também é necessário clarificar que contribuições para a Segurança Social (SS) serão exigidas.

Convém não nos esquecermos dos atrasos absurdos que estão a ser registados, já há vários meses, aquando da solicitação do Número de Identificação de Segurança Social (NISS), e que bloqueiam o exercício de direitos e cumprimento de obrigações. E que existem indeferimentos indevidamente fundamentados. Tendo em conta que a SS apenas permite o pedido de NISS mediante o preenchimento de um formulário online, em caso de indeferimento, este pedido dá origem a uma resposta padronizada, sem espaço para contestação. A única solução é voltar a submeter outro(s) pedido(s), atrasando ainda mais o processo. Convém também salientar que muitas entidades patronais, mesmo firmando contrato com os trabalhadores, não comunicam prontamente, ou não comunicam, de todo, aos serviços da Segurança Social competentes a sua admissão.

Estes são só alguns exemplos de casos em que a inexistência de contribuições anteriormente a 3 de junho não é da responsabilidade das pessoas migrantes. Deixá-las de fora do alcance deste diploma é, na minha perspetiva, totalmente inaceitável e repudiável.

De qualquer forma, independentemente dos pedidos de esclarecimento e de clarificação, e da pressão que seja necessário exercer para que o “remendo” legislativo proposto pela Iniciativa Liberal tenha um alcance imediato o mais amplo possível, a reivindicação deve ser só uma: o retorno da Manifestação de Interesse, enquanto mecanismo de regularização permanente.

Assim o exige um combate intransigente contra a excecionalidade e a arbitrariedade, o abuso, a exploração e a indignidade. Isto porque, por maior que seja o alcance do diploma, apenas salvaguarda os direitos de uma pequena parte das vítimas diretas do ataque brutal desferido pelo Governo de direita no fatídico dia 3 de junho.

O país precisa de imigrantes, alertam patrões

As evidências de que as pessoas migrantes são essenciais ao país são incontestáveis. Não faltam números, estatísticas e factos para mobilizar. Só até agosto deste ano, as contribuições dos imigrantes para a SS já somavam 2198 milhões de euros, o que se traduziu num saldo positivo de 1818 milhões de euros. E as contribuições foram mais expressivas em áreas como agricultura, restauração, administração, serviços.

Acresce que, na sequência da revogação das Manifestações de Interesse, multiplicaram-se os alertas por parte dos representantes das entidades patronais, bem registados por governantes da AD – Aliança Democrática, sobre a necessidade de assegurar a contratação expedita de imigrantes em alguns setores.

Ainda em junho, a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) deu conta dos seus temores no sentido de que falte de mão de obra face às novas regras para imigração, e veio solicitar um regime transitório que assegure as necessidades de recrutamento das empresas.

Logo a seguir, a 27 de junho, o ministro adjunto e da Coesão Territorial, por exemplo, garantiu “medidas pontuais” para não pôr em causa a concretização do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) no setor da construção civil. “O importante é procurar que as medidas do Governo não dificultem a quantidade de mão de obra necessária para conseguirmos executar as empreitadas que temos de fazer”, dizia Manuel Castro Almeida. Na passada quinta-feira, e durante uma audição na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública, na Assembleia da República, o governante voltou a deixar a garantia de que “o Governo está a preparar medidas, designadamente neste setor específico da construção civil, para facilitar a entrada de imigrantes”.

“Está a acontecer uma realidade que implica muito com uma questão que é muito séria, que é a questão da imigração: Com os meios que temos atualmente em Portugal, aparentemente não vai ser possível executar tudo dentro do prazo”, afirmou, referindo-se às obras financiadas com fundos da União Europeia.

Mais recentemente, a AHRESP - Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, colocou uma tónica diferente, sendo perentória ao afirmar que a proposta da IL agora plasmada em Lei “encontra-se incompleta, uma vez que deixa de fora os imigrantes que, à data de 3 de junho de 2024, não tinham 12 meses de contribuições para a Segurança Social, não podendo beneficiar desta nova regra, o que importa resolver”.

Excecionalidade, arbitrariedade e abuso versus regularização permanente

Partindo do princípio que o Governo, tão cioso dos interesses do grande patronato, não irá deixar cair as suas reivindicações, o que poderá estar no horizonte? Agradar à extrema-direita, ao seu ímpeto xenófobo e racista, ao mesmo tempo que se zela pelos interesses dos grandes poderes económicos instalados é, à partida, uma contradição? Não. É possível agradar a ambos mantendo um garrote no pescoço das pessoas migrantes e despojá-las de direitos e dignidade.

O que é uma contradição é zelar pelos interesses de Portugal, da sua economia, dos seus trabalhadores, ao mesmo tempo que se promove a irregularidade, a clandestinidade, se premeia o abuso e a exploração, fechando a porta aos procedimentos de autorização de residência assentes em Manifestações de Interesse. Ou seja, ao mesmo tempo em que se elimina o mecanismo de regularização permanente existente até 3 de junho.

Esperar que exista acessibilidade em condições de igualdade, celeridade, transparência, justiça na atribuição de vistos via embaixadas e postos consulares dos países de origem é uma anedota. E é dramático. Quem está no terreno sabe muito bem qual é a realidade. Sabe muito bem que, muitas vezes, faltam recursos nestes serviços, nomeadamente humanos, que os tempos de espera são infindáveis, e que, em alguns casos, existe uma verdadeira blindagem que impede o acesso a quem não tem o poder económico ou os conhecimentos necessários para o efeito. Acreditar na bondade das empresas intermediárias que agora esfregam as mãos perante a oportunidade de um negócio chorudo é igualmente dramático.

Regimes de exceção para a regularização de imigrantes no país, ou para autorizar a sua permanência temporária no território, que são desenhados ao peso e medida do grande patronato, ou das necessidades de execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), não são consentâneos com o respeito pelos direitos das pessoas migrantes. Como não são consentâneos com os interesses do país como um todo, de todos os seus trabalhadores, de todos os seus agentes económicos, principalmente os de pequena e média dimensão. Só um mecanismo de regularização permanente responde aos interesses dos migrantes e de Portugal.

Uma luta feroz

Dito isto, é-nos exigida uma luta intransigente e unitária, lado a lado com quem recusa as estratégias fragmentárias e divisionistas do atual Governo e afins. Não podemos permitir, de forma nenhuma, que nos atirem às cordas e nos dividam.

Ao mesmo tempo que devemos denunciar os logros das Autorização de Residência CPLP, como recorrentemente fiz no âmbito do meu trabalho com a comunidade timorense em Portugal, inclusive no que concerne à limitação das viagens ao espaço CPLP, à impossibilidade de aceder ao reagrupamento familiar ou às condições de renovação, e exigir que estas questões sejam sanadas imediatamente, é preciso exigir “nem menos, nem mais, direitos iguais” para todos os migrantes.

Neste contexto, a luta pelo retorno da Manifestação de Interesse é fundamental. Ela não pode esgotar as nossas reivindicações, evidentemente. Principalmente porque os direitos das pessoas migrantes estão a ser atacados em várias frentes. Mas a exigência de um mecanismo de regularização permanente deve, necessariamente, mobilizar-nos a todas e todos.

Esse combate passa pela dinamização da petição que visa Repor a dignidade e o respeito pelos direitos humanos na Lei de Estrangeiros, pelas ações de rua, por todas as iniciativas individuais e coletivas que possam engrossar a torrente de luta que deu origem à manifestação do passado dia 25 de outubro. Passa pela mobilização das pessoas migrantes e das organizações e ativistas que reivindicam os seus direitos, mas também de todos os trabalhadores do país e de todos aqueles e aquelas que pugnam pelo respeito pelos direitos humanos e laborais. Passa igualmente pela mobilização de quem, efetivamente, está preocupado com a sustentabilidade da Segurança Social, com o engrandecimento do erário público, com a coesão territorial, com o desenvolvimento sustentado da economia do país.

Esta é a nossa luta: Pelo retorno da Manifestação de Interesse, nada menos do que isso!

Mariana Carneiro
Sobre o/a autor(a)

Mariana Carneiro

Socióloga do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea. Ativista antirracista e pelos direitos dos imigrantes.