Foi conhecido esta segunda-feira o relatório preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários sobre o acidente no Elevador da Glória. Em destaque estão o uso de um cabo não certificado e a existência de falsas tarefas de manutenção e inspeção por parte da empresa contratada pela Carris.
Falsas inspeções
No documento pode ler-se que “há evidências de que tarefas de manutenção registadas como cumpridas nem sempre correspondem às tarefas efetivamente realizadas, bem como de serem executadas tarefas críticas para a segurança de forma não padronizada, com parâmetros de execução e validação díspares”.
Por exemplo, “as inspeções previstas para o dia do acidente e antecedentes estão registadas como executadas e pessoal do prestador de serviço esteve presente, mas as evidências não suportam o período horário indicado nas folhas de trabalho para a sua execução”.
Um cabo não certificado
Há ainda outro problema central: o cabo que unia as duas cabinas do elevador da Glória e que cedeu não respeitava especificações da própria Carris, não estava certificado para uso em transporte de pessoas e “não era indicado para ser instalado com destorcedores nas suas extremidades, como é o sistema no Ascensor da Glória (e no Ascensor do Lavra)”.
O relatório especifica assim falhas no processo de aquisição do cabo pela Carris e nos mecanismos internos de controlo da empresa mas não as liga diretamente, para já, ao acidente: “cabos iguais estiveram em uso durante 601 dias no Ascensor da Glória (e 606 dias no Ascensor do Lavra), sem incidentes. Por esse motivo não é possível neste momento afirmar se as desconformidades na utilização do cabo são ou não relevantes para o acidente”.
Volta-se a frisar na investigação que a “a zona onde o cabo rompeu não era passível de inspeção visual sem desmontagem do destorcedor do trambolho superior [zona de fixação do cabo]”. Foi feita “uma análise macroscópica das extremidades dos cordões rompidos” que “evidencia roturas progressivas, portanto, ocorrendo gradualmente ao longo do tempo, e de diversos tipos” mas haverá ainda peritagens metalográficas para esclarecer “os mecanismos de rotura envolvidos”.
No dia do incidente o cabo não foi observado
O relatório avança ainda que, nem no dia do acidente nem no anterior, o cabo foi observado no fosso. Explicita-se que isso não estava previsto nos procedimentos de manutenção, “embora o caderno de encargos seja contraditório em relação a este aspeto específico”.
Porém, “o local do cabo onde este se rompeu não era passível de ser observado em qualquer destas inspeções”, não sendo ainda possível determinar “se algum indício de anomalia no cabo poderia ou não ser observado algum tempo antes da rotura na parte visível junto ao trambolho [ponto de fixação do cabo]”.
O prestador de serviços não dava orientações aos trabalhadores
A manutenção do Elevador da Glória estava a cargo da Main (MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia, uma empresa sediada em Almada que assumiu o encargo em 2022. A análise constata ainda que a formação dos seus cinco técnicos que faziam estas verificações foi “assente em passagem de conhecimento prático em ambiente de trabalho, sem recurso a ações de formação teórica ou cursos técnicos específicos nos vários equipamentos intervencionados sob os contratos vigentes”. Ou seja, esse conhecimento “foi sendo passado ao longo dos anos dos técnicos da Carris para os executantes do prestador de serviços e destes em sucessão”.
Para além disso, as normas de verificação de segurança “há já largos anos que não sofreram qualquer atualização nem o prestador de serviços conta com o necessário corpo de engenharia com o conhecimento técnico especializado em funiculares e meios para o desenvolvimento, atualização e adaptação das ações de manutenção à realidade da operação”.
Elevador da Glória
Federação Europeia de Trabalhadores de Transportes: “segurança não pode ser externalizada”
E ainda: “não há, por parte do quadro técnico do prestador de serviços de manutenção, no que respeita ao modo específico de execução dos trabalhos, qualquer orientação aos trabalhadores ou supervisão, a qual é feita pela fiscalização da Carris”.
Conclui-se igualmente que o sistema de qualidade do prestador de serviços não assegura o “levantamento de fragilidades ou a identificação de oportunidades de melhoria com foco nas suas atividades de manutenção, estando voltado maioritariamente para as questões de higiene e segurança no trabalho”.
Carris culpa administração anterior sobre compra de cabos e IMT pela verificação de condições de segurança
Num comunicado, a administração da Carris tratou de se justificar dizendo que desconhecia incumprimentos por parte da empresa de manutenção. O relatório estabelece que entre os trabalhadores “havia a perceção de que a segurança do sistema dependia inteiramente do cabo e que o sistema de freio não era eficaz para imobilizar as cabinas sem o cabo” mas a administração alega que esta “nunca foi transmitida à administração da empresa, nem foi feita qualquer proposta técnica nesse sentido”.
Para além disso, realça que “não é possível neste momento afirmar se as desconformidades na utilização do cabo são ou não relevantes para o acidente” e culpa a administração anterior: a compra “com alegadas inconformidades, que condicionaram todo o processo de substituição dos cabos, ocorreu em mandato anterior ao do presente conselho de administração”.
Na sua tomada de posição, acusa ainda o Instituto da Mobilidade e dos Transportes que tem como função a verificação das condições de segurança deste tipo de equipamentos, afirmando que a Carris, “enquanto mero operador, desde logo não aceita que se encontra na sua exclusiva responsabilidade os aspetos relativos à segurança da operação dos ascensores”. “Na verdade, tais atividades não competem ao operador económico concessionário Carris por manifesta falta de habilitação legal e contratual para definir a regulação técnica e de segurança aplicável à entrada em serviço e exploração do Ascensor da Glória e para proceder à respetiva (auto)supervisão”, acrescenta-se.
O IMT, afirma-se, “não adiantou, até à data, qualquer explicação fundamentada” para que possam ser imputadas à Carris responsabilidades. Esclarece-se entretanto que “estão a ser apuradas as respetivas responsabilidades, sendo que o diretor de manutenção do modo elétrico foi, entretanto, demitido”.