Gaza

“Esperávamos morrer”: palestinianos presos contam torturas de Israel

21 de outubro 2025 - 14:18

Embora cheios de felicidade pela sua libertação durante o cessar-fogo, os detidos palestinianos – que sofreram com espancamentos e fome nas prisões israelitas – lutam para lidar com perdas inimagináveis.

por

Ibtisam Mahdi

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Palestinianos libertados em Khan Yunis.
Palestinianos libertados em Khan Yunis. Foto de HAITHAM IMAD/EPA.

Na tarde de segunda-feira passada, dezenas de milhares de palestinianos encheram o pátio do Hospital Nasser, em Khan Younis, no sul de Gaza. Estavam ali para receber os autocarros que transportavam os detidos palestinianos libertados no âmbito do acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas. Uns vieram receber os seus entes queridos, outros simplesmente para testemunhar o momento histórico. O pátio transbordou de emoção: alegria, lágrimas, tristeza e incredulidade.

Dos quase 2.000 palestinianos detidos libertados no âmbito da primeira fase do acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas, mais de 1.700 são da Faixa de Gaza. No entanto, muitos palestinianos sentiram que o resultado ficou aquém das expectativas em comparação com as negociações anteriores, nas quais o Hamas garantiu a libertação de um número muito maior de detidos em troca de um número muito menor de prisioneiros israelitas – principalmente o “Acordo Shalit” de 2011, no qual 1.027 palestinianos foram libertados em troca de um único soldado israelita.

Depois de terem sido examinados, os detidos saíram do hospital e caminharam pelas ruas em ruínas da cidade, todos ainda vestidos com os uniformes cinzentos da prisão, cobrindo os seus corpos emagrecidos. Tinham as cabeças rapadas, as barbas enormes, os rostos evidenciavam as marcas de semanas, meses e, por vezes, anos de sofrimento.

“Deus trouxe-nos de volta das profundezas da sepultura”, repetiram muitos deles. A frase capturava tanto o tormento da prisão como a euforia da libertação. No entanto, para muitos, a liberdade também foi acompanhada de perdas inimagináveis.

Entre eles estava Haitham Moein Salem, de 43 anos, residente em Beit Lahiya, no norte da Faixa de Gaza. Tinha sido detido pelo exército israelita pouco mais de um ano antes, durante uma incursão israelita na Cidade de Gaza. A 10 de setembro, um mês antes da sua libertação, um ataque aéreo israelita atingiu a tenda da sua família na alegada “zona segura” de Al-Mawasi, perto de Khan Younis, matando a sua mulher e os seus três filhos – Iman, Layan e Baraa. Ele acreditava que eles estariam à sua espera no seu regresso.

“Ninguém me informou que a minha família tinha sido alvo”, disse à revista +972 após a sua libertação. “O exército israelita era conhecido por trazer más notícias de Gaza, especialmente quando as nossas famílias eram atacadas ou mortas”.

Ao saber da notícia, Salem desmaiou e os paramédicos tiveram de o transportar numa cadeira de rodas. Há mais de um mês que preparava um pequeno presente para a sua filha Layan, esculpindo-o com restos de caroços de azeitona que tinha recolhido do chão. Manteve-o no bolso o tempo todo, guardando-o para aquele que seria o seu 9º aniversário, a 18 de outubro.

“Comecei a contar os dias [na prisão], esperando sair a tempo de celebrar o aniversário dela”, recordou. “Mas hoje, apenas cinco dias antes, descobri que ela tinha sido martirizada.”

A tragédia de Salem não foi única. Entre os detidos recém-libertados estava Mohammad Assaliya, de 28 anos, que tinha sido detido no final de janeiro de 2024 durante uma invasão terrestre israelita em Jabalia. Cinco meses depois, a 31 de maio, um ataque aéreo atingiu a sua casa, matando o seu pai, a sua mãe e oito dos seus irmãos. Apenas uma irmã sobreviveu.

“A liberdade tem um sabor indescritível; a nossa alegria era indescritível – mas desfez-se quando soube do martírio da minha família", disse ao +972. “Um guarda prisional tinha-me falado disso, mas agarrei-me à esperança de que fosse mentira, que fosse apenas tortura psicológica.”

Detido na prisão de Ketziot, no deserto de Naqab (Negev), Assaliya descreveu as formas de abuso que sofreu durante a sua prisão: “Fomos privados de comida e água, negavam-nos dormir e só podíamos usar a casa de banho uma vez por dia. Fomos sujeitos ao shabeh [uma forma de tortura em que o prisioneiro é amarrado pelos pulsos e pendurado contra uma parede ou porta, com os braços abertos e os pés mal a tocar no chão]. Comíamos comida simples enquanto estávamos atados.”

Assaliya disse que os maus-tratos continuaram mesmo nos seus últimos dias de detenção. “Dois dias antes da nossa libertação, reuniram-nos em autocarros e mantiveram-nos lá até sermos libertados. Sabíamos que havia um acordo, mas os soldados disseram-nos que seríamos enviados para outra prisão chamada 'Inferno'. Durante esse período, não nos foi permitido comer ou beber, e qualquer pessoa que falasse com outro detido era espancada. Foi um período de imensa pressão psicológica.”

Tudo o que queria era ter apenas um olho de volta”

O estado de Mahmoud Abu Foul, um jovem de 28 anos do norte de Gaza, destacou-se mesmo no meio do mar de corpos emagrecidos que saíram dos autocarros no Hospital Nasser na segunda-feira. O seu rosto e corpo estavam marcados pela exaustão, doença e abuso. Imediatamente após a sua chegada, foi internado nas urgências, antes de ser levado para o Hospital Al-Aqsa, em Deir Al-Balah. Várias horas depois, recebeu alta, mas sem visão e com uma inflamação grave no coto da perna, que foi amputada em 2015 em consequência de um ferimento provocado por um ataque aéreo israelita enquanto trabalhava numa ferraria.

O +972 falou com Abu Foul quatro dias depois, numa tenda em Az-Zawayda, no centro de Gaza, onde estava abrigado com a sua família. “Fui detido pelas forças de ocupação no Hospital Kamal Adwan, no norte de Gaza, a 27 de dezembro de 2024”, contou. “Fui sujeito a torturas horríveis. Seguravam uma ferramenta de madeira e golpeavam-me constantemente pela frente e por trás, por vezes em simultâneo, o que me fez perder a visão.”

Abu Foul acredita ter ficado cego há cerca de oito meses. “Desde então, não vi mais nada”, disse. “Mesmo tendo perdido a visão, o interrogador continuou a abusar de mim. A minha perna amputada foi golpeada repetidamente e fui pendurado nela mais do que uma vez. Durante um dos interrogatórios, pediram-me que me sentasse diretamente sobre a minha perna amputada. Isto foi extremamente doloroso e causou hemorragia, que depois levou à inflamação. É claro que não recebi qualquer medicamento ou tratamento enquanto estive na prisão, o que piorou a minha condição. Tive de a lavar apenas com água.”

O que mais magoou Abu Foul, admitiu, foi a dor que sentiu depois de a sua família o ter visto naquela condição. “Foi difícil para a minha família suportar o choque de me ver assim, cego. Estavam a chorar à minha frente, a agradecer a Deus por eu ter sobrevivido.”

Abu Foul espera agora ter a hipótese de receber tratamento no estrangeiro. Foi encaminhado para um oftalmologista que lhe deu alguma esperança. “Disse-me que há uma hipótese de eu recuperar a visão com determinados tratamentos, mas que não estão disponíveis na Faixa de Gaza devido ao colapso do sistema de saúde e dos hospitais”.

“A lesão no meu pé também necessita de tratamento intensivo de acompanhamento para que não infete e leve a uma nova amputação”, acrescentou. “Tudo o que queria é ter apenas um olho de volta para poder ver a minha família.”

Para além do que qualquer pessoa poderia imaginar”

A experiência do jornalista Shadi Abu Sidwa, de 30 anos, revela a profundidade da tortura psicológica infligida aos detidos palestinianos nas prisões israelitas. Residente na Cidade de Gaza, Abu Sidwa foi detido a 18 de março de 2024, quando se encontrava deslocado e procurava abrigo no Hospital Al-Amal, em Khan Younis.

“Fomos tratados muito mal, sujeitos a shabeh, espancamentos e humilhações verbais, físicas e psicológicas”, contou à +972. “Um dos interrogadores disse-me que Israel tinha morto todos os jornalistas na Faixa de Gaza. Disse que os soldados partiram a lente da minha câmara quando fui detido, para que eu não pudesse documentar mais o que estava a acontecer – e depois ameaçou partir-me também o olho verdadeiro. Continuou a bater-me no olho até que sangrou durante três semanas. Nunca recebi qualquer tratamento médico”.

Duas semanas após a sua detenção, as autoridades prisionais informaram Abu Sidwa de que a sua mulher e os seus três filhos tinham sido mortos pelo exército israelita em Gaza. Mantido em isolamento quase total do mundo exterior e acreditando não ter família para onde regressar após a sua libertação, Abu Sidwa sonhava apenas em voltar a ver o sol. “Saí da prisão de coração partido, a imaginar como seria a minha vida sem a minha família – convencido de que todos tinham sido martirizados”, recordou.

Mas na segunda-feira, quando Abu Sidwa foi finalmente libertado, ficou surpreendido ao saber pelo irmão que toda a sua família estava viva e em segurança.

A princípio, recusou-se a acreditar, pensando que o irmão estava apenas a tentar confortá-lo. Mas, ao regressar à sua casa na Cidade de Gaza, descobriu que não só a sua casa ainda estava de pé, como toda a sua família o aguardava no seu interior.

Tareq Tabash, de 45 anos, outro detido libertado, passou 25 anos atrás das grades depois de ter sido detido pelo exército israelita em Fevereiro de 2001 num posto de controlo em Khan Younis. Foi condenado a prisão perpétua mais 15 anos pelo seu alegado envolvimento no assassinato de dois soldados israelitas.

Há cinco anos, a sua mãe sucumbiu a uma doença. Tabash não teve permissão para a ver nos seus momentos finais nem para comparecer ao seu funeral.

Apesar das severas restrições, estava determinado a prosseguir os estudos enquanto estava na prisão. Concluiu o ensino secundário, depois o bacharelato em História e começou a frequentar a pós-graduação – até que, segundo ele, as autoridades prisionais israelitas impuseram novas restrições após o início da guerra, a 7 de outubro.

“As condições na prisão pioraram de formas indescritíveis desde a guerra”, disse à +972 após a sua libertação. “A tortura e o castigo tornaram-se a política seguida. O exército atormentava-nos contando tudo o que se passava em Gaza – o genocídio, o grande número de mártires, a fome.

“As inspeções de segurança eram uma das principais formas de tortura destinadas a degradar-nos e a abusar de nós”, continuou Tabash. “Éramos obrigados a ajoelhar-nos, a baixar a cabeça e a colocar as mãos sobre elas. Os guardas provocavam-nos deliberadamente, usando o mais pequeno movimento como desculpa para nos espancar com paus e coronhadas.”

“Fomos privados de comida, bebida e medicamentos, mesmo aqueles com doenças crónicas”, acrescentou. “Foram-nos negados produtos de limpeza e artigos de higiene pessoal, e proibidos de trocar de roupa ou de tomar banho. As prisões estavam sobrelotadas. Fomos despojados dos nossos pertences e até da capacidade de falar uns com os outros”.

Tabash apelou à comunidade internacional para que tome medidas urgentes para resolver a situação dentro das prisões israelitas e para salvar aqueles que permanecem detidos. “A tortura que sofremos – psicológica, física e social – está para além do que qualquer um poderia imaginar.”

Fomos privados de tudo”

Tal como Tabash e Abu Sidwa, Raja Daghmeh, de 30 anos, residente na cidade de Abasan, a leste de Khan Younis, sofreu uma severa tortura psicológica após a sua detenção, a 26 de janeiro de 2024, num posto de controlo militar durante a incursão israelita na cidade.

Daghmeh contou à +972 que, pouco antes da sua libertação, um interrogador na prisão de Negev ameaçou que, se não abandonasse Gaza com a sua mulher e a sua filha pequena e se exilasse, seria alvo e morto na primeira oportunidade.

“Durante toda a minha detenção, fomos privados de tudo, até da luz solar”, disse, fazendo eco dos relatos de outros reclusos. “Fomos sujeitos a torturas constantes: shabeh, ossos partidos, espancamentos severos, privação de comida e água e restrições ao uso da casa de banho. Era-nos permitido tomar banho uma vez por mês, sem mudar de roupa. No inverno, não recebíamos cobertores para nos aquecermos. Esperávamos morrer a qualquer momento devido à tortura”.

Entre a multidão reunida no Hospital Nasser estava Mahmoud Mohsen, de 39 anos, do campo de refugiados de Khan Younis, que viera dar as boas-vindas aos prisioneiros libertados. Em entrevista à +972, manifestou frustração com o atraso do Hamas na assinatura de um acordo de cessar-fogo, que, segundo ele, “teria poupado muitas vidas em Gaza e protegido a Faixa de Gaza de mais destruição de edifícios e infraestruturas”.

No entanto, Mohsen afirmou acreditar que a verdadeira conquista do atual acordo não foi a libertação dos prisioneiros em si, mas sim a interrupção dos ataques israelitas e do derramamento de sangue diário.

Ismail Al-Thawabtah, chefe do gabinete de imprensa do governo de Gaza, partilhou um sentimento semelhante ao juntar-se à multidão no hospital. “A única conquista agora é travar o genocídio”, disse. “Tudo o que pensávamos era em impedir a matança e a destruição em massa das nossas cidades, independentemente dos detalhes do acordo”.

O porta-voz das Forças de Defesa de Israel não respondeu diretamente às alegações mencionadas, mas encaminhou a +972 para o Serviço Prisional de Israel, que afirmou que “opera em conformidade com a lei e sob a supervisão de órgãos oficiais de supervisão. Todos os detidos são mantidos de acordo com os procedimentos legais, e os seus direitos, incluindo o acesso a cuidados médicos e condições de vida adequadas, são garantidos por funcionários profissionalmente treinados. Não temos conhecimento das alegações descritas e, tanto quanto sabemos, nenhum incidente deste tipo ocorreu sob a responsabilidade do SPI”.


Ibtisam Mahdi é uma jornalista freelancer de Gaza especializada em reportagens sobre questões sociais, especialmente relacionadas com mulheres e crianças. Trabalha também com organizações feministas em Gaza em reportagens e comunicação.

Texto publicado originalmente na +972.