França

Sarkozy entra na prisão embalado pelo coro de apoio dos poderosos

21 de outubro 2025 - 16:05

O ex-líder da direita francesa torna-se o primeiro Presidente da República a cumprir pena efetiva de prisão, após ter sido também o primeiro condenado por corrupção. Mas a campanha de vitimização de Sarkozy nos media franceses atingiu o ponto alto, com os ataques à justiça a partirem dos meios políticos e económicos.

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Nicolas Sarkozy em Paris, na manifestação de apoio que convocou antes de se dirigir para a prisão de La Santé.
Nicolas Sarkozy em Paris, na manifestação de apoio que convocou antes de se dirigir para a prisão de La Santé. Foto de Teresa Suarez/EPA

Nicolas Sarkozy deu entrada esta terça-feira na prisão de La Santé para começar a cumprir a pena de cinco anos de prisão a que foi condenado por associação criminosa no caso do financiamento da Líbia à sua campanha presidencial de 2007. Sarkozy torna-se assim o primeiro chefe de Estado francês a cumprir pena de prisão, depois de ter sido o primeiro a ser condenado por corrupção. O seu antecessor, Jacques Chirac, também fora condenado por desvio de fundos públicos e dois primeiros-ministros de ambos - François Fillon e Alain Juppé - tiveram condenações transitadas em julgado nos tribunais franceses.

O caso que leva agora Sarkozy para dentro de uma cela que pouco tem a ver com as condições das celas comuns do sistema prisional francês remonta a 2005, quando Sarkozy e dois colaboradores próximos - Brice Hortefeux, que foi ministro da Imigração, do Trabalho e do Interior durante a sua presidência e Claude Guéant, que foi secretário-geral da Presidência e depois sucedeu a Hortefeux como ministro do Interior - negociaram um pacto de corrupção com o número dois do regime líbio, Abdallah Senoussi, condenado em França por terrorismo pelo atentado de 1989 ao avião da companhia francesa UTA que provocou 170 mortos. O objetivo era financiar a campanha eleitoral para Sarkozy alcançar o Eliseu e ficou provado em tribunal a entrega de 6,5 milhões de euros. Em troca, foi dada a promessa de revisão da situação penal de Senoussi em França, com vista à anulação do mandado de captura internacional que sobre ele pendia, a par de esforços diplomáticos para ajudar o regime do seu cunhado Kadhafi a restabelecer o seu crédito na política internacional.

“Julgamento foi um momento raro na vida democrática do nosso país”, dizem familiares das vítimas do atentado do UTA-772

Os familiares das vítimas do atentado organizado por Kadhafi constituíram-se como assistentes neste processo e contam numa tribuna no Libération o que sentiram ao longo das sessões. Como o relato de um dos ministros a afirmar que nos seus encontros com Senoussi discutiram a “luta contra o terrorismo”.

“Durante as audiências, três meses e meio durante os quais colocámos as nossas vidas em suspenso, vimos ser exercida uma justiça humana e solene, metódica e respeitadora dos direitos de cada um. Uma justiça republicana. Vimos juízes atentos, uma defesa livre para se expressar, um debate equilibrado. Vimos a complexidade de um caso ramificado, mas acima de tudo uma vontade inabalável de fazer emergir a verdade”, dizem os familiares das vítimas, pondo em contraste o ambiente criado nos grandes media franceses acerca deste julgamento, com comentadores e responsáveis políticos a falarem de uma “caça ao homem” ou de um complot judicial, procurando apresentar o ex-Presidente como uma vítima.

“Recusamo-nos a permanecer em silêncio enquanto a voz da justiça é abafada por discursos cínicos ou estratégicos. Hoje, testemunhamos e alertamos. Este julgamento foi um momento raro na vida democrática do nosso país: aquele em que a justiça encara o poder de frente. Isso merece coragem, clareza e o apoio incondicional dos cidadãos, para além das divisões políticas”, rematam os familiares das vítimas do atentado ao voo que partiu de Brazzaville, no Congo, com destino a Paris e explodiu sobre o deserto do Saara, perto de Teneré, no Niger.

“Regicídio judicial”, clamam cronistas da direita

E o que a França tem assistido nos últimos dias, à medida que se aproximava a entrada de Sarkozy na prisão, tem sido o acentuar desta narrativa que o vitimiza: editoriais inflamados a criticar a justiça e sem nunca nomear os factos pelos quais foi condenado, ao ponto de classificar o julgamento como um “regicídio judicial”, como o fez a veterana jornalista Catherine Nay na revista Valeurs actuelles. “Não são mais do que os últimos espasmos mortais de um cartel que, sem assumi-lo publicamente, não pede nada mais do que o regresso dos privilégios, abolidos em França na noite de 4 de agosto de 1789”, responde o repórter Fabrice Arfi no Mediapart, o órgão de comunicação que investigou a fundo o caso Sarkozy-Kadhafi.

Os apoios políticos a Sarkozy não têm faltado nas últimas semanas, a começar pelo presidente Macron que o recebeu no Eliseu no dia 17, e passando pelo ministro da Justiça, que já anunciou que o irá visitar à prisão. Também o poder económico não deixa cair o antigo líder da direita, com o grupo hoteleiro Accor e o Lagardère, que detém meios de comunicação como o Journal du dimanche e a Europe 1, a anunciarem que o lugar de Sarkozy na administração dos seus negócios se irá manter, mesmo estando atrás das grades. Uma decisão que não surpreende, visto que é a mesma que tomaram após as condenações de Sarkozy por corrupção e financiamento ilegal de campanha, esta ainda à espera da decisão de recurso que deverá ser anunciada no fim de novembro.