Direitos

Política de “caça ao imigrante”

04 de novembro 2024 - 10:47

Pensar na atual política de imigração e nos seus retrocessos transporta-nos, inevitavelmente, para o fatídico dia 3 de junho. A extinção das Manifestações de Interesse é um dos mais duros golpes nos direitos dos migrantes. Mas o atual ataque a que estão sujeitos é bastante mais extenso.

porMariana Carneiro

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Faixa: "Ninguém é ilegal"
Faixa: "Ninguém é ilegal". Foto de Paulete Matos.

Do Plano de Ação para as Migrações do atual Governo, apresentado no fatídico dia 3 de junho, destaco duas medidas: a extinção das Manifestações de Interesse e a criação do mini-SEF: a UNEF – Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras na Polícia de Segurança Pública (PSP).

A extinção das Manifestações de Interesse concretizou-se no próprio dia 3 de junho, com um decreto “supersónico”, promulgado pelo presidente da República poucas horas após o seu anúncio. Marcelo Rebelo de Sousa alegou querer “evitar sobrecarregar os processos de regularização em curso” e veio afirmar, numa reunião a 14 de julho com vários coletivos, acreditar tratar-se de uma medida temporária. Isto apesar de, manifestamente, e segundo as garantias do próprio executivo de direita, não o ser.

Mas afinal, o que são as Manifestações de Interesse? O que é que foi extinto, de facto?

A Manifestação de Interesse, criada em 2007, permite, a pedido do próprio migrante, a regularização de quem já vive, trabalha e paga impostos em Portugal. Uma via que contrasta com a arbitrariedade de outros processos com caráter excecional. As Manifestações de Interesse submetidas antes de 3 de junho continuam o seu curso, mas, a partir dessa data, deixou de ser possível submeter novos pedidos.

E a Manifestação de Interesse foi uma prenda generosa de qualquer governo?

Evidentemente que não. Resultou, isso sim, de uma luta aguerrida das e dos migrantes e das organizações que reivindicam os seus direitos. E essa luta continuou a dar frutos ao longo dos últimos anos. Exemplo disso são as alterações ao “regime jurídico de entrada, permanência e afastamento de estrangeiros do território nacional” que retiraram o caráter excecional ao procedimento e diminuíram a margem de discricionariedade e de arbitrariedade por parte dos serviços de imigração. Ou, posteriormente, as alterações que estabeleceram uma presunção de entrada legal na concessão de autorização de residência para o exercício de atividade profissional.

A propósito dessa luta podemos invocar momentos cruciais, como as várias concentrações em frente à Assembleia da República, com a mobilização de migrantes das estufas de Odemira, que se quotizaram para pagar os autocarros que os transportaram. Ou as manifestações massivas e os cortes do trânsito na Avenida António Augusto de Aguiar, protagonizados por migrantes de inúmeras nacionalidades. As reivindicações desta luta foram então acolhidas e plasmadas em propostas apresentadas no Parlamento por partidos como o Bloco de Esquerda.

O dia a seguir: porta escancarada ao abuso

O que se seguiu à extinção das Manifestações de Interesse?

As expeditas garantias aos patrões não tardaram. O ministro adjunto e da Coesão Territorial, por exemplo, assegurou “medidas pontuais” para não pôr em causa a concretização do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) no setor da construção civil. “O importante é procurar que as medidas do Governo não dificultem a quantidade de mão de obra necessária para conseguirmos executar as empreitadas que temos de fazer”, dizia Manuel Castro Almeida, a 27 de junho.

Seguiu-se, também, a oposição frontal das e dos migrantes e das organizações que reivindicam os seus direitos, que se mobilizaram, com pedidos de reunião com partidos políticos, presidente da República e primeiro-ministro, uma petição para reverter a medida, comunicados vários, e a manifestação de 25 de outubro.

Seguiram-se, ainda, as evidências de que a extinção das Manifestações de Interesse não fechou fronteiras, não impediu a entrada de migrantes. E quem o diz, é, por exemplo, as organizações que estão no terreno em Beja, como a Solidariedade Imigrante – Associação para a Defesa dos Direitos dos Imigrantes, a Estar, a Cáritas, que sublinham que continuam a chegar migrantes em ritmo acelerado para trabalhar na apanha da azeitona. Ainda assim, e segundo o atual presidente da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), algumas confederações empresariais têm sinalizado dificuldades em contratar imigrantes, o que confirma que a economia portuguesa continua dependente do seu esforço e do seu trabalho.

Mas o que de mais dramático, o que de mais brutal, se seguiu à extinção das Manifestações de Interesse foi a porta escancarada à exploração, à clandestinidade, à invisibilidade, ao abuso generalizado, à destruição de direitos, às vidas suspensas. Esta brutalidade recai sobre quem já estava a trabalhar, quem já tinha contrato e já pagava os seus impostos, e não teve tempo sequer de submeter a sua Manifestação de Interesse, face à surpresa absoluta da medida. Sobre quem tinha pedido proteção internacional, aguardava decisão, e, entretanto, viu o seu pedido indeferido, não tendo agora qualquer alternativa para se regularizar. Ou sobre quem chega ao nosso país, respondendo ao apelo da própria economia, e a quem só é oferecida exploração.

Não ter documentos equivale a estar condenado ao trabalho clandestino, escravo, sem contrato, sem garantia de salário, sem seguro, com jornadas ilimitadas. Não há acesso a direitos e serviços básicos. A esta condenação corresponde uma pena impensável: a da não existência, a de uma vida suspensa por um fio.

Mini-SEF e caça ao migrante

O Plano de Ação para as Migrações do atual Governo veio contemplar também a criação de um mini-SEF: a UNEF – Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras na Polícia de Segurança Pública (PSP), que herdou missões anteriormente sob alçada da AIMA. Esta unidade, que tem como funções o controlo das fronteiras aéreas, a realização de operações de fiscalização, assegurar o retorno e afastamento de migrantes em “situação irregular”, traduz-se num novo ímpeto de securitização, de criminalização das pessoas migrantes.

E o aparecimento desta unidade surge acompanhado, no terreno, pela repressão quotidiana, com ações de inspeção recorrentes por parte das forças policiais nos transportes públicos, a perseguição de vendedores ambulantes, dos migrantes em situação de sem-abrigo, e das múltiplas abordagens de agentes “à civil”, que tentam fazer a triagem de quem poderá ser ameaçado e incentivado a abandonar o país, ou mesmo encaminhado para centros de instalação temporária.

Impedir acesso a direitos e suspender vidas

O garrote que pende sobre os pescoços das pessoas migrantes não se esgota aqui.

Os procedimentos inovadores adotados por alguns executivos de juntas de freguesias, como a de Arroios, em Lisboa, no que respeita aos atestados de morada, impede o acesso a direitos e condiciona, inclusive, o cumprimento de obrigações legais. Exigir uma autorização de residência para aceder a este documento constitui uma manifesta extrapolação de competências, amplamente denunciada, inclusive pela ANAFRE – Associação Nacional de Freguesias. Esta decisão condiciona o processo de regularização da pessoa migrante, o seu acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), à Educação, impede-a de atualizar o seu domicílio junto da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) ou obter uma simples senha para o Portal das Finanças.

A alteração de procedimentos posta em curso pela Segurança Social (SS) nos últimos meses é outro exemplo do bloqueio ao exercício de direitos e cumprimento de obrigações. A par de passar a exigir o comprovativo do pedido de autorização de residência e o contrato de trabalho para atribuição do Número de Identificação de Segurança Social (NISS), a SS apenas permite o pedido de NISS mediante o preenchimento de um formulário preenchido online. Em caso de indeferimento, este pedido dá origem a uma resposta padronizada, sem espaço para contestação. Acresce que os atrasos na atribuição de NISS são inaceitáveis.

A este respeito, refira-se que o número de entidades patronais que se recusa a formalizar um contrato de trabalho, ou mesmo uma promessa de contrato de trabalho, sem NISS é elevadíssima. E as entidades patronais que aceitam fazê-lo, mediante os atrasos generalizados da SS, arriscam-se a ficar numa situação de incumprimento. Nos casos de contratos de muito curta duração, como na agricultura, esse risco é mais elevado. Mas, sem contrato, o migrante não pode ter NISS.

Os bloqueios também são a regra quando se pretende abrir uma simples conta bancária. De acordo com a informação recolhida junto de diversos balcões, surgiram ordens superiores internas no sentido de exigir uma autorização de residência no momento do pedido de abertura de conta. Sem esse documento, nada feito. E a esse documento deve juntar-se ainda o passaporte, NIF, contrato de trabalho, comprovativo de morada do país de origem e comprovativo de morada em Portugal. E a soma necessária para a abertura de conta. Mas, se, por exemplo, os portadores de uma Manifestação de Interesse estão legalmente autorizados a trabalhar no país como poderão receber o seu salário se não podem abrir conta? As entidades patronais não podem pagar grandes somas em numerário. Que alternativas restam então aos migrantes? Isto para não falar no facto de que algumas entidades patronais exigem à partida existência de conta bancária para firmar contrato.

Ora bem, somemos a tudo isto a ausência de informação sobre os seus direitos e obrigações, a dificuldade em aceder aos tão propalados cursos de Português Língua de Acolhimento, a ausência de serviços de tradução em serviços essenciais, os atrasos e tempos de espera infindáveis generalizados no acesso a direitos, bens e serviços.

Perante o resultado desta soma, facilmente concluímos que, para uma pessoa migrante, viver é uma luta diária, desgastante. Que uma pessoa migrante está sujeita a um garrote permanente, a uma chantagem permanente. E que a resiliência de todos os migrantes no nosso país é incrível. É incrível a sua determinação em aqui viver e aqui trabalhar. E é indigna, inaceitável, inqualificável, a desumanidade das políticas e dos procedimentos a que são sujeitos.

Luta feroz e intransigente pelos direitos de todas e todos

A exigência do retorno da Manifestação de Interesse deve ser uma prioridade na nossa agenda reivindicativa. E essa exigência deve ser acompanhada por uma recusa contundente de medidas de excecionalidade que excluem tantas e tantos migrantes.

Devem ser também repudiadas, perentoriamente, todas as estratégias e táticas divisionistas e de fragmentação da luta que têm como alvo os próprios migrantes, e que colocam os “nós” contra os “outros”: os que são oriundos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) contra os migrantes de outras nacionalidades, numa clara tentativa bafienta e colonialista de assimilação; os que já têm Manifestação de Interesse e, supostamente, estão protegidos, contra os que se encontram num limbo, sem forma de garantirem a sua regularização documental.

Temos de nos empenhar na desmontagem de fake news e do ruído que por aqui prolifera, do discurso tão precioso para a extrema direita e tão bem acolhido pelo atual governo. Para esse efeito, temos de conhecer e mobilizar, incansavelmente, números, estatísticas, factos.

É igualmente imperativo reforçar que esta não é uma luta das pessoas migrantes, mas sim uma luta de todas e todos nós. As consequências da exploração e do abuso são dramáticas para todas as pessoas que trabalham em Portugal, a quem são diminuídos salários e retirados direitos. Esta é uma luta por direitos humanos, uma luta por Igualdade, Justiça, Dignidade.

A mobilização, que deve invocar, entre outras, as lutas que resultaram na conquista da Manifestação de Interesse, deve ser alimentada por um trabalho de base, no terreno, que nos permita conhecer e denunciar a atual política de “caça ao imigrante”, e dar força às reivindicações das suas principais vítimas e protagonistas deste combate.

É, a meu ver, necessária uma luta unitária sem sectarismo e divisionismos, sem lutas de egos que apenas servem para nos enfraquecer e para cimentar os retrocessos com que nos confrontamos.

Uma luta feroz e intransigente pelos direitos de todas e de todos. Nada menos do que isso.

Mariana Carneiro
Sobre o/a autor(a)

Mariana Carneiro

Socióloga do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea. Ativista antirracista e pelos direitos dos imigrantes.