Mariana Mortágua criticou a atitude incendiária da extrema-direita e a atitude de indiferença do Governo face a mais uma vítima mortal da PSP na periferia de Lisboa. E defendeu que a igualdade perante a lei “tem de valer para todos”.
Odair Moniz tinha 43 anos e deixou três filhos. Morreu na segunda-feira baleado por um agente da PSP no bairro da Cova da Moura. Não é a primeira, não é a segunda pessoa a morrer desta forma naquele e noutros bairros da periferia de Lisboa, mortes sem uma explicação plausível ou credível, sem consequências, sem justiça. Recordamos o assassinato de Elson Sanches, KuKu, de 14 anos, na Amadora e os atos de tortura na esquadra de Alfragide, ambos encobertos com versões falsas da polícia sobre os acontecimentos. E é sob o peso desta impotência e deste menosprezo que hoje se levantam jovens em várias periferias de Lisboa.
Ontem à noite, a casa da viúva e dos filhos de Odair Moniz foi visitada por quinze agentes da PSP. Iam armados de shotguns e arrombaram a porta. Três agentes introduziram-se na habitação e dois familiares de Odair foram agredidos. Os agentes não puderam ser identificados porque estavam encapuzados e sem as placas de identificação obrigatórias. Regressaram mais tarde e só recuaram ao constatarem a presença da advogada da família.
Não há vestígio de legalidade nesta atuação da polícia. Não há mandado judicial, não há motivo, não há identificação dos agentes. É uma atuação contra a ordem pública, contra a segurança das pessoas, uma atuação que funciona como uma provocação, que alimenta uma escalada de ressentimento e violência e que esvazia as palavras de lamento que a PSP incluiu no seu primeiro comunicado.
Não foi ainda concluído qualquer inquérito e o agente que matou Odair Moniz foi constituído arguido. Perante esta situação, há três atitudes possíveis.
A primeira é a atitude incendiária. É o discurso de quem exige a condecoração do agente arguido. Morreu um cidadão negro? Saia uma medalha para quem o matou. Não importa a investigação, não importa a culpa, não importam os factos. Só importa o ódio e o insulto racista contra uma comunidade inteira. São negros, são bandidos. São de bairros pobres, da Cova da Moura, da Damaia e do Zambujal, são bandidos.
A segunda atitude é a da indiferença. É a atitude do governo. Aconteça o que acontecer, faça a polícia o que fizer, morra quem morrer, o governo afirma a confiança sem crítica na versão policial. Daqui recordo uma coisa ao governo: a lei atribui às forças policiais o monopólio do uso da força e das armas, mas essa força responde a um mandato democrático exercido por um Órgão de soberania. É em nome de todos os cidadãos e da República que as polícias devem atuar.
A atitude de indiferença perante o abuso da força e perante a revolta é uma forma de abandono. E estão à vista os resultados de anos e anos desse abandono das populações mais pobres e sem acesso à justiça. E abandono também das forças policiais: nestas zonas, onde não se investe em escola de qualidade e serviços sociais fortes, as forças policiais são deixadas como única presença visível do Estado; em contrapartida, todos os abusos de poder são apagados, encobertos e ficam, muitas vezes, impunes. Sobre nada disto se ouve o governo. O ódio alimenta o ciclo da violência, mas a indiferença nada faz para o travar.
A terceira atitude possível é a única compatível com a República democrática. A da igualdade perante a lei, que tem de valer para todos. Esta é a atitude do país que se constrói tratando como iguais as pessoas que a vida colocou em lugares diferentes. Aí regressaremos sempre porque o racismo existe, as instituições refletem-no e praticam-no. Por isso Portugal é sistematicamente apontado como um recordista nos casos de violência policial discriminatória por organizações como o Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa. O Estado tem de ser ativo no combate ao racismo e ao racismo das suas próprias instituições.
Em vez disso, o que vemos é uma intensificação da resposta repressiva aos problemas das periferias empobrecidas das grandes cidades. As Zonas Urbanas Sensíveis de que agora tanto se ocupam os noticiários são definidas pelas autoridades em função da sua composição étnico-racial. A lei define meios materiais próprios e procedimentos especiais para a intervenção policial nessas zonas, ou seja, cria um estado de exceção permanente e localizado que legitima e promove práticas discriminatórias, práticas que estão na base de abusos e de mortes como a Odair Moniz, 43 anos, dois filhos.
Nestes bairros esquecidos, o Estado só entra de shotgun e capuz, revista sem antes perguntar o nome, arromba antes de tocar à campaínha e dispara sem que seja necessário.
Essa abordagem falhou, falhou aos moradores, falhou à polícia, falhou à democracia, falhou a Portugal. O resultado está à vista.
Os incêndios apagam-se com justiça e igualdade, que são as regras da nossa República.
Intervenção na Assembleia da República a 23 de outubro de 2024.