Direitos dos imigrantes

"Nunca podemos abandonar a palavra de ordem de documentos para todos". Entrevista a Timóteo Macedo

20 de outubro 2024 - 10:58

Em resposta à retirada do direito à manifestação de interesse, as associações e coletivos de imigrantes marcaram uma ação de protesto em frente à Assembleia da República. Timóteo Macedo, dirigente da Solidariedade Imigrante, fala ao Esquerda sobre esse processo de luta.

porDaniel Moura Borges

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Timóteo Macedo
Timóteo Macedo. Fotografia de Esquerda.net.

Ao retirar o direito à manifestação de interesse em vésperas das eleições europeias, o governo de Luís Montenegro dificultou a vida a milhares de imigrantes em Portugal. O mecanismo da manifestação de interesse permitia aos imigrantes que não estivessem regularizados em Portugal, darem início ao seu processo de regularização.

Em resposta, 57 associações de imigrantes, coletivos e organizações da sociedade civil convocaram uma ação de protesto para dia 25 de outubro, pelas 15h, em frente à Assembleia da República. Com um espaço público em que cada vez há mais ataques aos imigrantes, e um contexto político de tendência para a extrema-direita, os trabalhadores e trabalhadoras imigrantes vão sair à rua para se manifestarem pelo retorno das manifestações de interesse.

Timóteo Macedo é presidente e ativista da Solidariedade Imigrante, uma das associações que convoca a manifestação e que lida no terreno com os processos de integração dos imigrantes. Em entrevista exclusiva ao Esquerda, fala sobre a ação de dia 25 de outubro, a crescente retórica anti-imigrante e os processos de luta coletiva e de alianças contra essa mesma retórica e política.


Que expectativas tens sobre a ação de protesto marcada para dia 25 de outubro?

Vai ser enorme, na minha perspetiva, pelo trabalho que a Solidariedade Imigrante está a fazer. Pertencemos a um movimento subscrito por mais 57 associações de imigrantes, coletivos e organizações da sociedade civil, e no terreno estamos a trabalhar bastante. Fomos a São Teotónio na semana passada, no próximo domingo vamos outra vez ao Alentejo falar com trabalhadores agrícolas. Queremos mobilizá-los para terem voz, porque os imigrantes são os principais protagonistas desta luta, não é mais ninguém. E se eles não lutarem pelos seus direitos, ninguém vai lutar por eles. Por isso é que nós estamos a fazer este apelo. Vai ser um momento importante para que o mecanismo para a regularização permanente dos imigrantes possa efetivamente retornar à lei de imigração.

Qual é a importância do retorno desse mecanismo?

Nós queremos políticas públicas que devem ser justas, humanas, que devem contemplar o próprio, a própria integração dos imigrantes na sociedade portuguesa, e que devem combater a exploração escrava que existe, infelizmente. Nunca houve portas escancaradas neste país. As pessoas vieram e havia sempre o cuidado de que as pessoas quando chegam e trabalham devem estar protegidas, devem ter a sua manifestação de interesse ou outro mecanismo que possibilite que as pessoas digam: “Estou aqui, estou a trabalhar estou a descontar para a segurança social, eu mereço ser respeitado”. E é por isso que estamos aqui a combater a exploração escrava. No futuro, Portugal precisa de milhões de pessoas. A Europa precisa de milhões de pessoas. Portugal não pode ser um país de porta fechadas, portanto este Governo atual não pode andar de cedência em cedência às políticas da extrema-direita.

Há um contexto mais profundo na convocação desta ação de protesto, então.

Ela vem no contexto da aplicação do plano da imigração deste país que, para além de ter representado uma política eleitoralista em vésperas das eleições para o Parlamento Europeu, vem no seguimento de uma cedência clara à extrema-direita, que a extrema-direita portuguesa efetivamente aplaudiu. Foi péssimo. E as associações, movimentos sociais, as organizações da sociedade civil rapidamente se juntaram para protestar e por isso lhe chamamos uma ação de protesto. Para protestar contra estas políticas que além de cederem à à extrema-direita nacional portuguesa, também cederam à extrema-direita da Europa. Porque hoje na Europa existe um ciclo que empurra os imigrantes para situações difíceis, com a criação de centros de detenção de imigrantes, por exemplo. Não podemos continuar com nesta com esta dinâmica da extrema-direita na Europa, precisamos efetivamente de ter outras políticas que não tenham a ver com as políticas que retiram direitos às pessoas.

Essas cedências à extrema-direita colocam numa situação ainda mais precária os trabalhadores migrantes?

Sem dúvida. No Alentejo nós vimos centenas, com bastantes imigrantes e vamos reunir com mais. Vimos muita gente a trabalhar sem manifestação de interesse e sujeitos a uma exploração desenfreada por parte de patrões sem escrúpulos. São pessoas que estão ali e que têm como futuro, se calhar, a sua deportação. Porque seguindo as indicações do Pacto Europeu para as Migrações existe aqui um caminho para a sua deportação. Não é por acaso que este Governo está a criar um mini-SEF, acoplado à Polícia de Segurança Pública, para controlar as fronteiras e para expulsar emigrantes. Estão-se a construir as políticas mais securitárias que já existiram em Portugal, e não podemos aceitar isso, vamos lutar sempre até ao fim.

O que é que têm verificado no terreno em comparação com a altura em que havia manifestações de interesse?

A fragilidade não existia tanto, porque as pessoas sabiam que tinham um instrumento para se regularizarem. Faziam a sua candidatura - não significa que faziam a manifestação e já estavam regulares. Isso é mentira. As pessoas candidatavam-se a serem ou não regularizadas e depois, mediante determinados requisitos, se tinham condições avançavam. E as pessoas normalmente estavam cá em Portugal a trabalhar. É gente boa, é gente que contribui, é gente que quer estar connosco, quer viver connosco, partilhar sabores, cultura, vivências. Querem isso tudo e nós só temos que acolher bem as pessoas com direitos que lhes são inerentes.

Para além do retorno de um mecanismo permanente de regularização de imigrantes, há outras reivindicações para a ação de protesto?

Sim. Mas quando falamos com imigrantes, eles querem saber qual é o seu próximo passo. Nós nunca podemos abandonar a palavra de ordem ou reivindicação de documentos para todos. Quando dizemos documentos para todos, falamos em regularização para toda a gente. É pela igualdade que estamos a lutar, no fundo. É isso que nós queremos num futuro próximo e a médio e longo prazo. É a igualdade no tratamento, nos serviços públicos de qualidade. Os imigrantes devem ser atendidos onde são atendidos os portugueses normalmente. E não precisam de ser acompanhados por advogados, porque não se trata de nenhum crime, não são processos judiciais. E hoje a AIMA aposta na subcontratação de serviços. Em vez de se apetrechar como um serviço público de qualidade, está tudo subcontratado e temos um serviço público que está em limbo.

O Alentejo e o trabalho na agricultura é um dos exemplos mais gritantes de como a imigração ilegal pode ser usada para aumentar lucros e reduzir direitos. Que outros exemplos é que existem?

Há trabalhos que são praticamente invisíveis. Nomeadamente as cuidadoras informais, o trabalho doméstico, são trabalhos que normalmente só associações como a nossa, que têm uma relação íntima com as pessoas é que conhecem melhor, porque os trabalhadores podem chegar aqui e desabafarem connosco aquilo que se passa no dia-a-dia. Não só o assédio laboral, assédio sexual e outros abusos e ilegalidades que se cometem neste trabalho. Depois existe outro caso que é o trabalho na restauração e na hotelaria. São salários baixos. É preciso que os trabalhadores imigrantes, nos vários setores, seja na construção civil, restauração ou hotelaria, efetivamente se juntem aos trabalhadores portugueses na luta por melhores condições. Os imigrantes não podem ser discriminados só porque são cidadãos que nasceram noutro lado. Têm de ter os mesmos salários de quem faz o mesmo trabalho, de quem tem a mesma categoria profissional. Têm de ter ser remunerados tal e qual como são os cidadãos portugueses. Os imigrantes não são ilegais nem criminosos. São pessoas que procuram melhores condições de vida.

Essa ideia de que os imigrante são ilegais tem vindo a ser reforçada na sociedade pela extrema-direita e também pela narrativa do Governo. Como é que vês o combate a essas narrativas num futuro próximo?

O futuro não é muito risonho. Se estas políticas continuarem em Portugal e na Europa, naturalmente não é muito risonho para as pessoas que procuram melhores condições de vida. Portugal tem que repensar também as suas políticas, é preciso fazer muita coisa para efetivamente mudar o olhar em relação à imigração. Muitas vezes estes governos de direita e de extrema-direita são governos que têm uma mentalidade neocolonial. Pensam que podem pôr e dispor como querem e têm um olhar de cima para baixo. Nós temos de olhar de igual para igual e dizer que as pessoas têm pernas para andar, têm braços para trabalhar, têm de cabeça para pensar. Sabem e conhecem os seus direitos e precisam de alguma orientação, nomeadamente tendo em conta a burocracia que existe neste país, mas podem efetivamente andar.

Nos últimos tempos, face à ameaça da extrema-direita, tem havido também uma mobilização forte de movimentos antirracistas. Há aqui alianças para construir um movimento mais abrangente pelos imigrantes?

Há sempre pontos para aliança. Nós estamos solidários com essas lutas todas. Mas a mobilização para uma coisa muito concreta, que diz respeito às vidas das pessoas, não tem a mesma intensidade de outra questão mais genérica que a pessoa não sente tanto. É preciso muitas vezes nós sabermos lidar com estes casos [de racismo], não é só retórica, é trabalhar com as pessoas em concreto. Para tentar resolver os problemas que as pessoas têm. Assim, as pessoas são mobilizáveis. Com discursos, só participam as pessoas que têm um determinado nível de consciência social e política, não é a generalidade dos imigrantes.

Se a manifestação de interesse não voltar a ser introduzida, como é que achas que o futuro guarda para os trabalhadores imigrantes?

Aquilo que já tivemos em anos anteriores. Não é a primeira vez, isto funciona por ciclos. Muitas vezes depende da nossa força, e dos próprios imigrantes, são eles que vão dar a cara. No dia 26 de outubro, vão chegar aqui imigrantes, porque estamos abertos ao sábado. E vêm lamentar-se por causa dos processos, das renovações que não são feitas, por não terem direito ao reagrupamento familiar. E nós dizemos: ontem houve uma ação de luta, tu foste? Não. É por isso que muitas vezes as coisas acontecem. Temos também de responsabilizar as pessoas e não andar com atitude paternalista. Por isso é que nós dizemos: se vocês não lutarem, meus amigos, as coisas vão piorar. Nós temos que fazer tudo para que as coisas avancem e queremos muito que os portugueses sejam solidários com a causa da imigração, mas não é assistencialismo, é solidariedade ativa.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.