A primeira grande Marxa Kabral está marcada para dia 21 de setembro. O seu objetivo é resgatar a figura e o imaginário de Amílcar Cabral e trazê-lo para o centro do debate. A iniciativa parte do movimento negro está a ser convocada com a participação de vários grupos e ativistas antirracistas.
O Chega marcou uma manifestação anti-imigração para o mesmo dia, procurando capitalizar a demagogia e o crescente sentimento anti-imigração na sociedade portuguesa. Nesse contexto, a figura de Amílcar Cabral e a Marxa Kabral ganham um novo sentido no combate contra o fascismo, o racismo e o neocolonialismo.
Vânia Andrade Puma é uma das organizadores da manifestação. Em entrevista exclusiva ao Esquerda fala dos objetivos da manifestação, do legado de Amílcar Cabral e das novas ameaças que saem à rua contra as pessoas racializadas e imigrantes.
Como é que surgiu a ideia de fazer esta marcha no centenário de Amílcar Cabral?
O Apolo de Carvalho fez uma chamada a todos os movimentos e todas as pessoas que estivessem interessadas para se reunirem e comemorarmos o dia de África. Fizemos uma concentração em que conseguimos reunir várias mulheres. E dessa concentração nasceu a ideia de comemorarmos o centenário de Amílcar Cabral. Quisemos também trazer o Amílcar Cabral pensando o 25 de abril, pensando a marcha que se faz do Marquês de Pombal todos os anos e achámos que o centenário era uma forma de tornar algo pontual em algo anual.
Pegar no legado de Amílcar Cabral tem significado muito concreto. Era revolucionário, lutador pela libertação, e essa escolha também significa trazer um pouco disso para Portugal.
Sim, para ele a primeira arma é a educação. O desenvolvimento de todas as crianças, jovens e adultos para que possam criar projetos de vida dignos justos. Nós queremos trazer de volta essa ideologia, porque há uma ideia muito distante dele. As pessoas pensam no Amílcar Cabral apenas como uma pessoa que lutou para a libertação de Cabo Verde e Guiné-Bissau e foi isso, mas foi muito além de pegar em armas. Para Amílcar Cabral, a principal guerra era a educação. Formar, potencializar e dar essa arma de informação às pessoas. Nós queremos aproximá-lo. Queremos que as pessoas não pensem no Amílcar Cabral apenas com uma pessoa que lutou com armas.
Pegaste no 25 de abril, e as lutas de libertação encabeçadas por Cabral foram uma das causas da revolução em Portugal. Mas passados 50 anos ainda há muito por fazer e muita desigualdade. É importante lembrar Amílcar Cabral perante as desilusões da democracia?
Acho que é o momento perfeito para trazermos de volta Amílcar Cabral. Para reafirmarmos que o 25 de abril tem sido uma comemoração incompleta, porque não tem lembrado todos os líderes que estiveram dentro desta luta e que foram os que possibilitaram o 25 de abril. A revolução não existiria sem a luta dos povos africanos. É uma afirmação bem poderosa e nós queremos que esse legado fique. E os movimentos pan-africanistas e os movimentos negros também podem trazer as suas novas ideias. E nós lembramo-nos de Cláudia Simões, Danijoy, Alcindo Monteiro, muitos nomes que têm vindo a cair por terra e que viveram a violência constante que a ideologia portuguesa continua a manter.
Esta marcha junta o movimento negro sob a figura de Cabral, mas também lhe dá reivindicações concretas contra o fascismo, contra a xenofobia e o neocolonialismo, não é?
Sim. É uma forma de nós pensarmos os vários ismos e tentarmos juntar todos, e é interessante que nós temos conseguido juntar principalmente muitas mulheres já mais velhas, e muitas destas Mulheres são batucadeiras que através da sua música conseguem pensar a experiência do imigrante em Portugal. Fazem parte do movimento negro. É importante que não sejam só as pessoas da academia, e pensarmos quem são as pessoas que estão na base. Temos vários lugares e temos pessoas pensantes, como o Apolo, mas depois conseguimos trazer várias pessoas, como a Vida Justa, o LBC, pessoas da capoeira. É interessante pensar como a ideologia cabralista consegue juntar várias camadas, com um pensar do próprio movimento negro.
Sobre essa relação entre periferia e centro, a escolha do Marquês de Pombal serve para dar visibilidade também a essa desigualdade entre territórios?
Exato. E fazer as pessoas pensarem: “porque é que eu devo ir a esta manifestação?” É uma ideia de ir a este sítio e juntarmo-nos e conversarmos uns com os outros. Porque às vezes esta ideia da manifestação afasta as pessoas já não querem ir a manifestação porque pensam nisso apenas como um cartaz, um grito, uma faixa e não é só isso. É irmos e conversarmos com as pessoas que lá estão percebermos que ideias é que elas trazem para quererem estar naquele lugar. É uma grande oportunidade de pensarmos: "a Avenida da Liberdade é para quem? Quem é que pode ir à Avenida da Liberdade?".
Achas que a marcha, sob a bandeira de Cabral, trará novas pessoas para juntar ao movimento e criar força?
Assim espero. O que eu quero deixar especialmente claro é que não é preciso ser cabralista ou pan-africanista ou pertencer ao movimento negro para conhecer as ideias de Cabral. A informação não rouba tempo, só nos faz descodificar todos estes códigos, faz-nos pensar que não temos só de acordar e trabalhar. Podemos ter algum conhecimento e que podemos dar aos nossos filhos algo além daquela informação muito deturpada que está nos livros e, por exemplo, dizer aos nossos filhos quem é Cabral. Há essa necessidade de desconstruir um pouco aquilo que é a ideia do 25 de abril, e se nós nos sentarmos e lermos aquilo que está nos livros de História é completamente assustador e nós vamos querer emancipar-nos.
Falaste na educação como uma forma de repensar o passado, mas também o presente. E o futuro?
Penso que é algo que nós vamos ter de trabalhar mais. Mas esta marcha já é o início dessa educação. Porque a nossa ideia é que isto seja feita a 21 de setembro de cada ano. Para nós isto já é o início. Alguém que não tenha muito conhecimento sobre o Cabral e receba o nosso panfleto, mesmo que não vá à manifestação, queremos que fique com aquela semente. Qualquer árvore não nasce do dia para a noite, leva anos até que as suas raízes possam brotar e muitas vezes fazer os passeios abrirem caminho.
Mas a par desse trabalho há um contexto nacional e internacional que vem no sentido contrário. A extrema-direita sobe, há um sentimento anti-imigração. Como é que se constrói o movimento come esses obstáculos?
O movimento negro tem trabalhado para dar resposta. Neste último sábado tivemos a manifestação com a Cláudia Simões. Muito mais do que darmos resposta a essa chaga que tem chegado é dizer que nós temos feito algo que é pensar daqui para a frente como é que nós temos que trabalhar. Porque temos imensas pessoas nos Anjos, imensas pessoas novas que chegaram, pessoas negras de outros países africanos e que precisam dessa resposta. A AIMA precisa de acompanhar a globalização que está a chegar a Portugal e realmente nós vamos dar resposta com manifestações, com encontros, com conversas. E muito mais do que combatermos, é trabalharmos por dentro. Nós estamos a organizar-nos e estamos a trabalhar para que isso se possa fazer, muito mais do que trabalhar contra as chagas que estão a nascer e que já existiam. Portugal está desesperado, então quer assustar o movimento negro e nós estamos a dar resposta.
Que legado de ação concreta é que Amílcar Cabral deixa para o século XXI?
Eu penso que é repensar a nossa forma de encontrar as melhores armas para lutarmos. E pensarmos profundamente que armas é que nós queremos trazer para um futuro próximo. Porque é um pouco assustador. Pensar a violência policial que tem vindo a crescer, a violência daquilo que poderia ser a segurança e pensar seriamente nisso. Pensar que é nossa obrigação unirmos forças para trabalharmos contra essa violência. Acho que mais do que nunca é necessário porque a violência policial que tem acontecido parece que não vai acabar. Mas é preciso que exista uma resistência. Para que mesmo que essas chagas venham, nós estarmos prontos para dizer basta. Manifestarem-se contra a imigração num país que emigra é uma coisa que não faz sentido. Portugal é um país muito emigrante, então qual é o sentido de nós fazermos isso? É preciso repensar muitas coisas e apelar mesmo às pessoas para que venham à marcha. Mas se não se sentirem confortáveis, venham ao Casal da Boba, venham ao espaço do Bazofo na Cova da Moura, criem os vossos espaços dentro dos vossos bairros para poderem pensar.