Centenário de Amílcar Cabral

No centenário de Amílcar Cabral, lembramos o percurso, o pensamento e o legado de uma das principais figuras do movimento pela libertação e contra o colonialismo português. Do pensamento sobre a resistência cultural, aos avanços táticos da luta pela libertação, reunimos textos que aprofundem o conhecimento sobre o revolucionário guineense. Dossier organizado por Daniel Moura Borges.

12 de setembro 2024 - 14:11
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Amílcar Cabral
Fotografia de Fundação Amílcar Cabral

Há cem anos nascia Amílcar Cabral. Há altura ainda era colónia portuguesa, mas o trabalho político de Cabral faria nascer ali e em Cabo Verde uma inquietação que só se resolveu com a vitória dos movimentos de libertação. Não só ali mas também em Angola e Moçambique. Afinal, Amílcar Cabral foi protagonista não só das lutas de libertação lideradas pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde mas também de um movimento mais largo pela libertação dos países africanos ainda sob o jugo do colonialismo.

O assassinato de Amílcar Cabral, em 1973, foi um golpe duro ao processo revolucionário e de luta armada que se desenvolvia na Guiné, mas nem por isso significou o fim da esperança e da revolta. O revolucionário morre, mas o seu trabalho permanece. Oito meses depois do seu assassinato, o PAIGC proclamava unilateralmente, nas matas de Madina do Boé, a independência da Guiné-Bissau. Sete meses depois disso, fruto do desgaste do regime com a guerra colonial, o Movimento dos Capitães derrubava a ditadura fascista em Portugal e abria caminho aos processos de descolonização. Cabral lutou pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, e a sua luta fez florescer a democracia em Portugal.

Esse é o seu legado material, mas o revolucionário deixa-nos também um outro. O legado imaterial que foi o seu contributo para o marxismo e o seu pensamento sobre a prática revolucionária, sobre a cultura, sobre o colonialismo, sobre a terra e sobre a democracia. Um legado que temos o dever de estudar, cuidar e aprofundar a cada contradição do sistema capitalista. Este dossier é dedicado a esse legado.

Começamos com um artigo de Ricardo Corrêa, que faz um apanhado do percurso de Cabral, num “recorte biográfico” cujo objetivo é deixar claras as suas principais contribuições para a teoria e para a prática revolucionária, especialmente no pensamento da cultura e da educação. Como conclui o autor, “em Amílcar Cabral ainda há muito a ser explorado”, mas este texto é uma belíssima introdução.

Depois segue-se uma reflexão de Hanna Eid sobre o legado que Amílcar Cabral deixa e a sua utilidade hoje. Eid aproveita particularmente a ligação que o revolucionário guineense fez sobre a ligação entre a terra e o povo para fazer um paralelo com a luta pela libertação da Palestina e com o genocídio em curso. Mas ao passar por esse tema fala de muito mais: do anti-dogmatismo, da luta armada e da grande necessidade de compreender a realidade concreta de um território e de um povo para conceber as táticas de luta.

Em terceiro lugar temos a republicação de um texto do próprio Cabral, um discurso feito durante uma cerimónia realizada em homenagem de Eduardo Mondlane, no qual o autor pondera a cultura enquanto elemento de resistência aos processos coloniais e ao imperialismo. Esse papel libertador e unificador da cultura é bem descrito quando o revolucionário diz: “Quando Goebbels, o cérebro da propaganda nazi, ouvia falar de cultura, empunhava a pistola”, e conclui que os nazis “tinham uma clara noção do valor da cultura como fator de resistência ao domínio estrangeiro” e por isso é que esmagavam a cultura dos países que ocupavam.

À conversa com Fernando Rosas e Luís Trindade, Julião Soares Sousa, historiador guineense, recorda o papel de Amílcar Cabral nas lutas de libertação salientando o papel da sua memória em Cabo Verde e na Guiné, hoje. E discute o impacto que essa memória pode ter numa perspetiva anti-colonialista e antirracista.

Republicamos também uma entrevista da Jacobin a Flora Gomes, realizador guineense que foi enviado por Amílcar Cabral a Cuba para aprender a filmar, como objetivo de documentar a proclamação da independência do seu país. Flora voltou ao país em 1972 e Cabral morre no início de 1973, mas o realizador conseguiu cumprir o seu compromisso e continua a fazer filmes sobre o seu país. Na entrevista, fala sobre Cabral e sobre a sua perceção do colonialismo e do fascismo português, confirmando a ideia de que o revolucionário não fazia guerra contra o povo português, mas sim contra a classe dirigente fascista.

Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes” é a transcrição da apresentação do livro com o mesmo nome. A ideia é a traçar os pontos de encontro entre o revolucionário guineense e o pedagogo brasileiro. De facto, Paulo Freire foi um grande admirador de Amílcar Cabral e chegou mesmo a apelidá-lo de “pedagogo da revolução”. Esses pontos de encontro serão certamente centrados na ideia de descolonização das mentes e da cultura, através de uma práxis crítica.

O artigo de Álvaro Arranja procura um ângulo mais histórico para uma abordagem à prática política de Cabral e do PAIGC. É um pedaço de história sobre as tensões e relações entre o governo fascista português e os movimentos de libertação. Neste caso, sobre a proposta de negociações por parte do PAIGC, que acaba, no entanto, por culminar numa guerra provocada por Salazar. Uma guerra que procura colocar povo contra povo e que acaba com o desgaste do regime fascista e a vitória dos povos de Portugal, da Guiné-Bissau, de Cabo Verde e de muitos outros países em 1974.

Já quase a encerrar o dossier regressa Julião Soares Soura, com a sessão apresentada no Fórum Socialismo 2024, precisamente sobre o centenário de Amílcar Cabral. É o apanhado de todas estas vertentes do trabalho político de Cabral que fez e que constroem o legado teórico e prático que o revolucionário deixa.

Terminamos com o último discurso de Cabral, difundido na Rádio Libertação em 1973. É um discurso que acontece num ponto de viragem para a luta armada do PAIGC, com a implementação democrática já à vista, mas também com o surgimento de vários novos desafios para o movimento de libertação sobre a capacidade de organização de uma democracia. Cabral explana o processo concreto de luta contra o colonialismo português e as suas fragilidades nacionais e internacionais. É um discurso esperançoso, mas prático. Poético, mas exato. Inteligente e perspicaz. Em suma, aquilo a que nos habituou o seu autor.

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