Paulo Freire e Amílcar Cabral: A descolonização das mentes

O Esquerda.net transcreve neste artigo a apresentação do livro Paulo Freire e Amílcar Cabral: A descolonização das mentes, de José Eustáquio Romão e Moacir Gadotti, escrita pelos autores.

12 de setembro 2024 - 14:05
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Amílcar Cabrral e Paulo Freire

Este pequeno livro que a Editora e Livraria Instituto Paulo Freire (Ed,L) entrega aos leitores em 2012 é uma das expressões do tema proposto para o interstício de dois encontros internacionais do Fórum Paulo Freire. Ou seja, desde 1998, quando se realizou o primeiro, em São Paulo, a cada dois anos, tem se vindo a realizar esse evento internacional, cada vez num país diferente: em 2000 foi em Bolonha (Itália); em 2002, em Los Angeles (Estados Unidos); em 2004, na cidade do Porto (Portugal); em 2006, em Valência (Espanha); em 2008, de novo no Brasil, na cidade de São Pau-lo e, finalmente, em 2010, em Praia, capital de Cabo Verde.

De cada encontro resultou uma “Carta”, firmada pelos representantes dos diversos Institutos Paulo Freire, com uma temática central a ser desenvolvida no intervalo do biénio.

No último Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, realizado, pela primeira vez, em solo africano, o tema da “Carta de Praia de Cabo Verde” foi o da “Descolonização das Mentes”. Este tema aparece na obra de Paulo Freire como “Conscientização” e, na de Amílcar Cabral – o grande líder e mártir da independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau –, como “Africanização dos Espíritos”.

Como é orientação costumeira do Fórum Paulo Freire, o tema de um Encontro Internacional deve ser a preocupação axial das unidades (institutos, cátedras livres, grupos de estudo etc.) da comunidade freiriana espalhadas pelo mundo, durante o biénio, ou seja, ele deve estar presente nos levantamentos, estudos, investigações e intervenções, até a realização do subsequente Encontro Internacional, quando, então, é proposto outro tema. Assim, “Descolonização das Mentes” é o mote dos freirianos de todo o mundo, até setembro de 2012, quando deverá realizar-se o VIII Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, novamente em Los Angeles, nos Estados Unidos.

Por isso, “Descolonização das Mentes”, como foi afirmado no início deste prefácio, constitui o assunto central desta pequena obra, composta por dois textos, escritos por dois fundadores do Instituto Paulo Freire.

O primeiro deles, de autoria de José Eustáquio Romão, centra-se no conceito de “Razão Revolucionária”. O autor rastreia o conceito de Razão (racionalidade) e de Revolução em quase todos os textos de Paulo Freire e de Amílcar Cabral, para verificar as aproximações e os distanciamentos, as convergências e as diferenças, ou até mesmo as divergências, entre o legado freiriano e o pensamento e a ação do líder da independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau.

Um dos aspectos para o qual este texto chama a atenção é a constatação de que ambos, Freire e Cabral, são atores da práxis, isto é, homens comprometidos com o pensamento crítico. Para eles, o conhecimento só pode ser legitimado, epistemologicamente, se tiver origem na prática e, politicamente, se se tornar instrumento de intervenções mais qualificadas (mais conscientes) na mesma prática. Além disso, para eles, a revolução é permanente, porque a libertação definitiva não vem com a proclamação da independência política de uma nação, tampouco com a sua libertação económica; ela só se plenifica quando o povo dessa nação pós-colonial se liberta das racionalidades que os colonizadores deixaram profundamente enraizadas no solo da consciência dos “ex-colonizados”. É que o sistema simbólico, como demonstrou Friedrich Engels na obra Origem da família, da propriedade privada e do Estado (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975), é mais lento, anda mais devagar do que os sistemas produtivo e associativo e, portanto, os fundamentos, os princípios, os valores, as projeções e os ideais decalcados nas mentes colonizadas pelo opressor, acabam por transformar o oprimido em hospedeiro do seu próprio opressor. A partir daí, ele lê o mundo com os olhos e a partir da perspectiva da visão de mundo do opressor, ficando muito mais difícil completar-se a tarefa da libertação. Daí, o texto encaminha a conclusão de que a “Razão Revolucionária” tem um nexo profundo com a descolonização das mentes e com o processo de conscientização, que é sempre processo de autoconscientização.

Já o segundo texto, de autoria de Moacir Gadotti, procura as relações mais gerais entre o pensamento e a ação de Paulo Freire com a luta e as reflexões de Amílcar Cabral. Ao rastrear a obra do educador pernambucano, destaca a sua peregrinação concreta e reflexiva pelo continente africano, já que ele trabalhou ou manteve relações muito próximas com várias nações daquele continente: Cabo Verde, Guiné-Bissau, Nigéria, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Zâmbia etc.

Gadotti chama a atenção para um aspecto muito interessante do movimento dialético permanente do pensamento e da ação freirianas: é no momento em que trabalha para o Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, que o seu pensamento mais se radicaliza e mais se aproxima do materialismo dialético, levando-o a estabelecer relações mais profundas entre processos simbólicos (alfabetização e pós-alfabetização, por exemplo) e processos produtivos, ratificando a determinação económica em última instância – princípio axial do pensamento marxista.

A colaboração de Paulo Freire para a construção de identidades nacionais das jovens nações africanas – algumas delas, como é o caso de Cabo Verde e Guiné-Bissau, ainda lutando pela sua independência –, faria com que a sua pedagogia ganhasse uma forte conotação política, como também enfatiza o texto de Gadotti.

De igual forma que Amílcar Cabral, como está destacado no texto de Romão, Paulo Freire percebeu a relação entre o processo de libertação das colónias africanas portuguesas e a “Revolução dos Cravos”, que libertaria Portugal da ditadura salazarista em 25 de abril de 1974. Amílcar vai um pouco mais longe, ao perceber que a luta anti-imperialista ajudaria o povo português na sua pugna pela redemocratização – a longeva ditadura de Salazar fora implantada em Portugal desde 1933 –, mas o contrário, obrigatoriamente, poderia não ocorrer. Segundo ele, a redemocratização portuguesa não garantia a descolonização, até porque o governo democrático no solo lusitano poderia continuar a patrocinar a empresa colonial.

Outro aspecto dialético que merece destaque na análise de Gadotti é que Paulo Freire reconheceu-se na cultura africana, pois ao entrar em contacto com aquela realidade, registou impressões de “estar a voltar para casa”. Aprendeu com a África, enquanto deu uma dimensão mundial à sua pedagogia do oprimido.

As reflexões que Paulo Freire e Amílcar Cabral desenvolveram sobre língua e linguagem e a sua relação com a cultura, a educação e o poder também foram sublinhadas no texto de Gadotti que, nesse particular, destaca uma diferença significativa de interpretação entre ambos, provocando, como resultante, uma divergência, também, em relação à língua a ser trabalhada na alfabetização. Esta questão merece ser verificada com mais cuidado no texto deste livro.

Outros aspectos relacionais poderiam ser destacados em ambos os textos de estudos comparados que compõem esta obra, mas, com isso, corremos o risco de o(a) potencial leitor(a) contentar-se com a leitura deste prefácio, abandonando a riqueza das reflexões dos textos originalmente escritos para compô-la.

Por isso, preferimos parar por aqui, convidando a todos, independentemente de serem freirianos, à leitura deste livro profundamente provocador e útil para todo e qualquer educador, bem como para o público em geral, porque as suas reflexões são oportunas para todos(as) os(as) que estão comprometidos(as) com a construção de sociedades mais humanas, mais justas e mais democráticas.

Os autores

Pode aceder aqui ao livro em pdf.

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