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“Cabo Delgado é hoje um negócio de guerra”

Quitéria Guirengane explicou ao Esquerda.net que “não há interesse que a guerra termine nos próximos anos” e que a extração de gás é uma “maldição” para o povo moçambicano. A presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes descreveu ainda as atrocidades que estão a ser cometidas contra as mulheres de Cabo Delgado. Por Mariana Carneiro.
Quiteria Anicia Fernandes Guirengane. Foto retirada da sua página de Facebook.

Quiteria Anicia Fernandes Guirengane é mestranda em Direitos Humanos e Governação, ativista política e social, comentadora do Programa Opinião no Feminino da Stv e presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes de Moçambique. Nas eleições gerais de 2019, foi mandatária nacional do partido Nova Democracia.

Em entrevista ao Esquerda.net, Quiteria Guirengane denuncia a estratégia de desinformação sobre o que se passa em Cabo Delgado e fala sobre os interesses que estão em jogo. A ativista refere ainda as dimensões que devem ser consideradas na resposta ao conflito e relata as atrocidades de que as mulheres desta província estão a ser alvo.

Considera que existe uma estratégia de desinformação dos cidadãos e cidadãs sobre o que se está a passar em Cabo Delgado?

Existe, sem dúvida. Costuma-se dizer que na guerra o que mais sofre é a verdade. E é isso que está a acontecer em Cabo Delgado. As guerras atuais são, basicamente, feitas com informação. Em Cabo Delgado há desinformação de ambos os lados. Os grupos terroristas fazem a sua propaganda constante em relação às suas ações, para espalhar o terror. Mas o governo, em vez de resolver o problema da propaganda criada pelos grupos terroristas repondo a verdade, faz também a sua propaganda, para dar uma sensação aos cidadãos de que nada se passa em Cabo Delgado.

Pior ainda que a desinformação é a censura. Nós, como cidadãos, e particularmente como ativistas políticos, sociais, defensores dos direitos humanos, sofremos muita sevícia e perseguição por passar informação ou por tentar trazer a verdade em relação ao que está a acontecer em Cabo Delgado. Esta é a questão mais crítica.

E qual tem sido o papel da imprensa?

Na imprensa pública e privada há colaboração na censura da informação. Se, por um lado, muitos órgãos de comunicação social privados reclamam o facto de não terem acesso a Cabo Delgado, e não só, por outro lado, muitos deles também estão condicionados. Quando são levados nas comitivas, que são escolhidas a dedo, é-lhes dada uma pauta com o que é que se pode ou não dizer.

Há evidências, nomeadamente gravações em vídeo, de que a sociedade civil é constantemente intimidada pelo secretário de Estado, pelo comandante da polícia, para que não tirem fotos, para que não circule nenhum áudio, nenhuma gravação sobre o que está a acontecer.

Todas estas questões fazem com que a informação sobre o que realmente acontece em Cabo Delgado sofra bastante controlo.

A opinião pública mundial acaba por ter uma visão muito parcelar da situação...

Se olhar para as informações sobre Cabo Delgado que saíram para o público, para o mundo, são dos ataques de Mocímboa da Praia e de Palma. Porquê? Em Mocímboa da Praia os terroristas controlaram o porto e o aeroporto, que são locais estratégicos de escoagem de produtos. É o porto estratégico em que se confiava para o negócio do gás. Enquanto que Palma é o centro do negócio de gás. Por isso é que saiu para o público, por isso é que o mundo está concentrado em Cabo Delgado. Foram atacados estrangeiros e não havia como escondê-lo.

Mas quando moçambicanos são atacados em Macomia, Quissanga, Ibu, em vários outros distritos que já sofreram bastante com o terrorismo, incluindo Nanguade, ninguém fala nisso. É proibido falar sobre isso, é proibido passar informação sobre isso.

Temos estado a conversar com uma série de deslocados, sobreviventes do terrorismo, que nos contam situações bastante dramáticas que o governo constantemente desmente.

É importante referir que há uma estratégia de desinformação que tem sido articulada por grupos de choque criados pelo sistema, pelo regime, para condicionar a forma como as pessoas sentem o conflito em Cabo Delgado.

A afirmação do presidente Filipe Nyusi de que os moçambicanos não deveriam ficar “atrapalhados” causou alguma indignação. Desde então, o que existiu de novo nas declarações, nomeadamente as de quarta-feira, do presidente, que, inclusive, também já foi ministro da Defesa do país?

Sim, já foi ministro da Defesa, na altura do escândalo das dívidas.

E o presidente da República fez pior. Depois de ter dito que éramos “atrapalhados”, que nos estávamos a “atrapalhar”, veio de novo a público dizer que os moçambicanos estavam a lutar por causa do gás. E fazia recorrentemente essas afirmações durante inaugurações que não tinham nada a ver com o contexto, para proveito político. Mandava bocas à sociedade civil, dizendo que nós é que nos estávamos a agitar. As ações de Filipe Nyusi criaram uma onda de indignação pública, o que gerou, por sua vez, uma agenda de pressão.

Sou comentadora de um programa de televisão de opinião política [Programa Opinião no Feminino da Stv], onde abordei a questão dos pronunciamentos do presidente da República como uma questão de insensibilidade, de desumanismo. Este vídeo viralizou e, de alguma forma, contribuiu minimamente para que esta onda de indignação fosse um passo mais além.

No âmbito da Rede de Mulheres Jovens Líderes de Moçambique, da qual sou presidente, dinamizámos a campanha Mulheres em Luto, promovida por organizações feministas moçambicanas. Fizemos uma pressão muito grande, afirmando que não celebraríamos o dia 7 de Abril por conta da situação em Cabo Delgado e das atrocidades que estão a ser cometidas contra as mulheres. Não queríamos que a celebração fosse um momento de entretenimento político.

E foi por isso mesmo que o presidente da República escolheu o dia 7 de abril para a sua intervenção. Houve, de facto, uma alteração do discurso que me encoraja de certa forma, dado que resultou da nossa mobilização.

E qual foi o conteúdo da intervenção de Nyusi?

Foi a primeira intervenção com o mínimo de respeito e dignidade que o presidente fez nos tempos recentes em relação à situação em Cabo Delgado. Creio que a pressão internacional, aliada à pressão nacional que se gerou em relação a este assunto, fez com que o presidente da República revisitasse a sua consciência. No seu discurso, Nyusi tentou explicar o contexto do que está a acontecer em Cabo Delgado, quando é que tudo começou.

O facto de ter havido uma onda de pressão, de terem sido promovidas campanhas devidamente organizadas a repudiarem a ação do presidente da República e a exigirem resposta, contribuiu para que Nyusi viesse pedir desculpa aos cidadãos, de forma indireta. Na sua intervenção, o presidente disse que, de facto, os moçambicanos tinham motivos para estar indignados e para se preocuparem. Creio que foi a primeira intervenção em que o presidente da República teve este mínimo de humildade na sua abordagem.

O que acontece quando as mulheres se unem??? Transformamos o dia da mulher num dia verdadeiramente de activismo e luta...

Publicado por Mulheres Jovens Líderes de Moçambique em Quinta-feira, 8 de abril de 2021

Outra questão de fundo é que o presidente falou sobre as ações que têm tido lugar, inclusive a reunião da SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral], e referiu que este era um assunto que merecia um tratamento inclusivo, que todos os cidadãos deveriam participar na resposta. Foi a primeira vez que ele reconheceu claramente que não é possível que os militares resolvam a questão de Cabo Delgado sozinhos. É preciso envolver todos os setores da sociedade, envolver todos os moçambicanos na resposta.

O que se espera da task force criada para atender à situação em Cabo Delgado e da reunião do Conselho Nacional de Defesa e Segurança que foi agendada?

É preciso referir que foi reconhecido no relatório da SADC, foi reconhecido a nível mundial, e em estudos nacionais, que Moçambique não tem capacidade para responder a este assunto sozinho. O facto de se criar um task force é já um passo para a resposta coletiva. E o facto de Moçambique também se estar a tornar um pouco mais humilde e menos arrogante na abordagem ao terrorismo é um passo importante.

É necessário reconhecer que o terrorismo é resultado de uma soma de causas internas e causas externas.

É necessário reconhecer que o terrorismo é resultado de uma soma de causas internas e causas externas. Há atores internos envolvidos, há interesses das elites políticas…

A colaboração, a resposta devem ter em conta que a questão do terrorismo é muito sensível e que a SADC deve tornar-se num organismo mais operante.

No seu histórico, a SADC e a União Africana (UA) são organismos inoperantes, pelo menos para nós, cidadãos. E a própria UA provou isto, porque foi o último organismo no mundo a pronunciar-se sobre a situação de Cabo Delgado. Só depois deste ataque a Palma vitimar uma série de indivíduos, entre os quais cidadãos estrangeiros, é que a UA se pronunciou.

Espero que a questão da SADC, da troika, da task force, vão um pouco para além do discurso e passem do papel para a prática, reconhecendo que a insegurança em Moçambique ameaça a segurança em qualquer outro lugar na região.

A verdade é que é preciso fazer uma análise profunda. Embora discutíssemos que a insegurança em Moçambique é insegurança na Tanzânia e no Malawi, há uma outra corrente que defende a questão da soberania, que defende a ideia de que a insegurança em Moçambique é a proteção do vizinho. Ou seja, muitos países podem estar receosos de que, se for resolvido o problema em Moçambique, o problema pode passar para os seus territórios.

E que dimensões devem ser consideradas na resposta à situação em Cabo Delgado?

Para mim, o mais importante é perceber que não estamos a conseguir responder sozinhos. O apoio e a abordagem de resposta integrada passa por três dimensões específicas. E não só pela militar. Não acredito no mito da resolução da violência com violência. Se a componente militar é importante, também é importante a componente da inteligência [informação] e a componente da inclusão sócio-económica.

A situação de Cabo Delgado mostrou-nos que os terroristas já não estão a agir sozinhos. Estão a ter base de apoio popular. Em Palma foi criado um ambiente que favoreceu que muitos terroristas se infiltrassem nas residências dos habitantes. O que é que aconteceu? Quando os terroristas cortaram as vias de acesso até Palma, deixou de ser possível garantir o abastecimento por via terrestre. Todos os alimentos eram passados por via marítima. E, mesmo por via marítima, por vezes existiam incidentes, ataques a barcos. Quando isso aconteceu, o governo chegou a acordo com a Total e com as restantes companhias que operavam em Palma para garantir a sua segurança. Todos os trabalhadores das empresas, dos bancos, passaram para os hotéis. Ou seja, a comida não chegava à população de Palma, mas chegava aos hotéis. Os poucos navios que conseguiam atracar em Palma iam primeiro abastecer os hotéis e os acampamentos das grandes empresas. Aquela população ficou esfomeada. Tão esfomeada que antes comprava um quilo de açúcar por 50 meticais, 90 meticais, e passou a comprar a 500 meticais. Um litro de combustível, que antes custava 50 meticais, 60 meticais, passou a custar 1000 meticais.

É preciso resolver a questão da inclusão sócio-económica. Aqueles jovens têm de perceber que, no fim do dia, aquele gás vai beneficiá-los e não só às elites políticas no poder; têm que perceber que aqueles projetos não são mais importantes do que as suas vidas.

Isto é uma violência visceral contra os cidadãos, dos quais depois o governo quer o apoio na resposta ao terrorismo. Não é possível que  apoiem. A população começou a perceber que existiam pessoas que continuavam a comer bem naquele distrito. E podemos imaginar o que acontece quando um terrorista aparece com uma mala de um milhão de meticais para dar a uma pessoa que está a passar fome, que não tem capacidade para comprar produtos básicos. Essa pessoa hospeda o terrorista. Quando um terrorista chega e não só utiliza a doutrina do extremismo islâmico mas fala sobre desigualdades sociais, mostra que a vida da população não importa e que se um popular for decapitado ninguém se preocupa, porque só se preocupam com a vida dos estrangeiros, muitos jovens são apanhados na rede.

É falacioso afirmar que o governo responde a este problema dizendo “jovens, não vendam a vossa alma”. Porque esta questão de vender a alma começou nas eleições. O partido no poder constantemente paga a jovens para alterar os resultados das eleições. Os jovens já estão acostumados. Ser comprado para vender o país é um ato normal para eles.

É preciso resolver a questão da inclusão sócio-económica. Aqueles jovens têm de perceber que, no fim do dia, aquele gás vai beneficiá-los e não só às elites políticas no poder; têm que perceber que aqueles projetos não são mais importantes do que as suas vidas.

E é preciso assumir que os conflitos entre os maconde, os macua e os mwani também estão na origem deste conflito.

Se não se olhar para estas questões, por muitos acordos que o SADC faça, por muitos treinos militares que se façam, por capacitação, por equipamento, por dinheiro que se invista, não se vai resolver o problema, porque em Cabo Delgado está a haver delapidação de recursos, tráfico de pessoas, tráfico de drogas e todo o tipo de violência. E muitas destas coisas estão a acontecer com a infiltração e com o apoio de pessoas tanto a nível local, como a nível central. Este problema tem de ser abordado de forma bastante realista para que futuramente possamos pensar numa resposta coletiva.

Universidades do Estado como a Universidade Joaquim Chissano e a Universidade Rovuma fizeram estudos que mostraram o descontentamento da população em relação à resposta governamental. Se o governo levasse estes estudos a sério, a esta altura estaria, efetivamente, a usar esses estudos para reaproximar-se dos cidadãos e para elevar a resiliência dos moçambicanos em relação ao terrorismo. Isso não está a acontecer. É preciso que isso primeiro aconteça para que as medidas de resposta à situação em Cabo Delgado possam ter alguma essência.

A outra questão prende-se com o reforço das fronteiras. Temos fronteiras bastante porosas. A SADC e a task force têm de olhar para a questão das fronteiras. Estamos a receber iranianos, paquistaneses, pessoas de nacionalidades diversas que estão a passar, quer por via marítima quer pelas fronteiras terrestres, sem passaporte, sem documentação, sem registo. É assim que os terroristas continuam a entrar. E usam equipamento sofisticado.

Como é que o dinheiro que os terroristas usam para recrutar os jovens tem entrado? O volume dos capitais desviados anualmente de África atinge 50 biliões de dólares. Esta questão não pode ser olhada de forma leviana.

São estas questões que devem ser endereçadas. São estes fluxos líquidos que devem ser abordados realisticamente. Para que efetivamente tenhamos uma resposta continental, uma resposta regional que faça o mínimo de sentido. E sobretudo para recuperar a confiança que os cidadãos perderam em relação à SADC. Os moçambicanos não confiam na SADC. Embora estejamos a exigir uma resposta, o nível de expectativa em relação a estes organismos é muito baixo. Eles têm de nos surpreender olhando realisticamente para estas questões.

Falou na questão dos interesses em jogo e no financiamento do terrorismo. O que sabemos sobre esses interesses e sobre quem financia os terroristas?

Há interesses diversos. Primeiro, é o negócio de armas. Há muito mercado de venda de armas por todo este mundo.

Segundo, para os mercenários é um negócio muito lucrativo que a guerra de Cabo Delgado continue. Essas guerras são pagas com recursos, com pedras preciosas.

Terceiro, o próprio negócio das dívidas ilegais. As armas que foram compradas no âmbito das dívidas ilegais desapareceram. Os barcos que foram comprados não funcionam. Os sistema de segurança marítima que foi criado no contexto das dívidas ilegais ninguém sabe a quem é que está a servir. Até existe a questão da forma discricionária como os passaportes diplomáticos foram emitidos em Moçambique e que permitem a movimentação de malas sem qualquer controlo. Há uma série de elites neste país que recebem e ninguém sabe como é que recebem.

Fora do país, temos o próprio negócio do gás. Há estudos que mostram que o Daesh foi perdendo espaço na região da Síria, do Iraque na exploração de gás e que precisava de outros mercados para se abastecer. O facto de Moçambique se ter tornado num mercado para a exploração de gás, com uma segurança e um sistema de controlo bastante frágeis, interessa em muitos contextos.

É muito difícil dizer que o interesse interno ou externo é apenas limitado a um ou dois cidadãos. O partido no poder, a Frelimo [Frente da Libertação de Moçambique], recebeu 10 milhões de dólares do valor das dívidas ilegais. Esses pagamentos de subornos e luvas têm razão de ser. Falamos de um negócio que nunca aconteceu e que nunca beneficiou o país. Aquele dinheiro era para quê?

Mesmo os próprios mega projetos, o grande capital que opera nas zonas de exploração de recursos, têm capacidade para extrair gás mesmo quando as zonas estão em conflito.

Portanto, muitos ganham com esta guerra. O ministério da Defesa está a ter muitos mais recursos, que são desviados do orçamento da Saúde, da Educação em nome desta guerra.

O último fator que é importante analisar é que também havia um interesse fundamental em promover um reassentamento compulsivo da população de Cabo Delgado. Nos últimos anos, a sociedade civil reforçou as suas capacidades. E, ao reforçar as suas capacidades, começou a apoiar as comunidades. A demandar indemnizações justas nas zonas de exploração de recursos. Toda a província é uma zona rica em recursos. Temos rubis, ouro, gás. Temos uma série de recursos. Indemnizar a população toda, cada vez mais consciente dos seus direitos, iria implicar uma situação de difícil controlo. É só ver o vídeo divulgado a nível internacional em 2017, antes dos ataques terroristas, de garimpeiros e locais que estavam a ser brutalmente espancados. E o facto de aquele vídeo ter sido divulgado fez com que as elites que estão interessadas na exploração dos recursos já não pudessem continuar a torturar aquelas pessoas.

O que aquela população estava a protestar é que não é possível que nós que vivemos aqui, que somos donas das terras, não possamos beneficiar dos rubis quando vemos tanzanianos, somalis, tailandeses, inclusive pessoas que vêm de países ocidentais a explorar os rubis.

Empresas ocidentais como a britânica Gemfields…

Exato, através da Montepuez Ruby Mining (MRM), uma subsidiária da mineradora britânica.

Neste momento, as torturas já não podiam ser feitas da mesma forma porque já havia maior consciência dos cidadãos. E ganhou-se um processo contra a Gemfields em Londres. Mas as indemnizações não foram pagas até hoje.

Indemnizar as populações no âmbito de todos os mega projetos instalados em Cabo Delgado iria implicar muito dinheiro, incluindo para as elites políticas da Frelimo. Isto criava, sem dúvida, um interesse no reassentamento da população. Uma população que vê a sua casa queimada, vê os seus familiares decapitados, não é capaz de voltar àquele lugar, mesmo que digam que estão a criar condições para o efeito.

Diz-se que hoje Mocímboa da Praia é um distrito onde só vivem militares. Fiz entrevistas com deslocadas de Cabo Delgado e algumas diziam-me: “Olha, Quitéria, ficámos muito tristes porque começámos a ver aqui em Pemba os militares a chegarem com os nossos televisores, os nossos congeladores… Mas quando lhes perguntámos como estavam as nossas casas eles disseram que tinha tudo sido queimado. Agora perguntamo-nos como é que os nossos bens estão assim a circular”. Para aqueles militares não dizerem efetivamente o que está a acontecer naqueles distritos, em que estão a ser extraídos recursos, onde se faz tráfico de órgãos humanos, significa que, muitas vezes, estão a ser compensados com os bens da população.

Mais ainda. É preciso também considerar que há relatos, e não são poucos, segundo os quais várias pessoas avisaram administradores distritais, presidentes de municípios de que existiam casas ocupadas por terroristas. E essa informação nunca foi usada. Num vídeo que nós fizemos agora com uma deslocada de Quissanga, ela testemunha que, duas semanas antes do ataque, apareceu um senhor que tinha sido capturado pelos terroristas a dizer que eles lhe pediram para dar o recado de que iam atacar aquele distrito em alguns dias. O comando distrital da polícia disse às pessoas para se acalmarem e que era tudo mentira. Um pouco antes do ataque, o administrador distrital foi visto com o comandante da polícia a ser escoltado pelos militares para um barco. Foram evacuados antes dos ataques começarem. Entretanto, a mesquita começou a transmitir, a partir das 15h, informações numa língua estranha. Só aí a população percebeu que os terroristas já se estavam a instalar.

Esses relatos são iguais a relatos de Mocímboa da Praia, de Palma, de uma série de pessoas que foram assistindo, vendo vizinhos a acolher terroristas. Outros falam em primos de administradores que estavam envolvidos com os terroristas, ou de pessoas que foram presas e depois foram libertas estando associadas a terroristas…

Toda essa informação dá-nos a indicação de eles sabem o que está a acontecer. Mesmo a morte estranha do Chefe do Estado Maior-General das Forças Armadas de Defesa de Moçambique [Eugénio Ussene Mussa], que não chegou a estar um mês no poder, mostra-nos que as infiltrações nas forças de defesa e segurança são ao mais alto nível e que não há interesse específico que esta situação seja resolvida.

A teoria do reassentamento compulsivo não é única, é uma das teorias que temos explorado. Mas pode significar que há interesse que as pessoas abandonem as suas casas e que Cabo Delgado se transforme numa zona militarizada para que os recursos possam ser extraídos sem controlo.

A teoria do reassentamento compulsivo não é única, é uma das teorias que temos explorado. Mas pode significar que há interesse que as pessoas abandonem as suas casas e que Cabo Delgado se transforme numa zona militarizada para que os recursos possam ser extraídos sem controlo. Porque nem os ativistas nem os jornalistas têm coragem de visitar aquelas zonas para saber se, efetivamente, há algum avanço.

Veja bem, o jornalista Ibraimo Mbaruco desapareceu depois de ter dito que estava a ser cercado por militares, David Matsinhe, da Amnistia Internacional foi preso. Houve uma série de pessoas que foram presas em Cabo Delgado.

Quando o ministério da Defesa disse que recuperou Palma, criou uma delegação ampla de jornalistas que levou à vila. Mas não os deixou sair de uma mata. Não puderam entrar em Palma para confirmar se tinha sido recuperada. Nenhum jornalista compreendeu o que se passava.

Estranhamente, no dia seguinte a eu abordar a questão num programa de televisão, começou uma movimentação secreta para organizar uma nova visita, para a qual só foram convidadas a televisão pública e uma jornalista da Sky News. Ninguém mais foi informado daquela visita. Se, de facto, Palma tinha sido reconquistada e a situação estava segura, por que é que os jornalistas que foram chamados na primeira visita não puderam participar na segunda comitiva? Isto mostra que há um interesse obscuro que não se quer partilhar.

Em relação às multinacionais que operam em Cabo Delgado, e especificamente sobre a Total, sabemos que a atividade foi suspensa com o ataque em Palma. Mas depois surge o anúncio, a 4 de abril, da Air France de que vai passar a ter dois voos semanais para Maputo, via Joanesburgo, a partir de junho. Isto quando as outras companhias têm voos quase vazios. E, em vésperas de ver terminado o seu contrato com o governo, ouvimos o presidente do grupo militar privado sul-africano Dyck Advisory Group (DAG), Lionel Dyck, a dizer que as forças de defesa e segurança do país não têm quaisquer condições para travar os terroristas e que o papel da DAG é imprescindível. E dá o exemplo de Palma. Serão indicadores de que a Total regressará em força e que a DAG se prepara para se manter no terreno e continuar a explorar o negócio da guerra?

Sim, efetivamente. Cabo Delgado é hoje um negócio de guerra.

É natural que a Total, envolvida ou não, informe que vai suspender as suas atividades. Primeiro, porque tem responsabilidades em relação à segurança dos seus funcionários.

Segundo, porque isto também eleva o seu poder negocial. Se o governo prometeu segurança e não cumpriu, a Total poderá querer renegociar os termos da sua permanência em Moçambique. E, inclusive, receber ainda mais benefícios fiscais. Mas também pode fazer o seu negócio de guerra de explorar os recursos sem sequer se saber qual a quantidade que está a ser explorada. E ninguém fala sobre os impactos ambientais da exploração, de estudos de verificação, de planos de encerramento. De nada. A Total tem um poder de negociação maior.

A DAG, na semana dos ataques, saiu ao mundo a insultar o ministério da Defesa. Deu entrevista à CNN a dizer que Moçambique estava completamente despreparado, que houve um pré-aviso daquele ataque… Mas hoje diz que vai permanecer no país. Há sinais muito claros de que nos estão a fazer de malucos. Estamos a ser tratados como se fossemos estúpidos.

Palma só foi notícia por causa dos cidadãos estrangeiros. Se fossem novamente os cidadãos moçambicanos a morrer, ninguém se preocuparia em dizer nada

Cabo Delgado é, efetivamente, um negócio de guerra. Não há interesse que a guerra termine nos próximos anos. Duvido muito que vá terminar. Não há preocupação com os cidadãos moçambicanos lá. Como eu disse no início, Palma só foi notícia por causa dos cidadãos estrangeiros. Se fossem novamente os cidadãos moçambicanos a morrer, ninguém se preocuparia em dizer nada. Estamos a morrer desde 2017. Indigna-nos tudo isto.

E chamo à atenção de que algo não está muito bem nesta equação. A Total não vai sair, os mega projetos vão manter a exploração de gás. E este negócio não vai beneficiar nenhuma moçambicano.

Quando começámos a ouvir falar na exploração de gás em Moçambique perguntámos se era uma bênção ou uma maldição. E veio-se a provar que é, efetivamente, uma maldição. As população estão a ser expropriadas das suas casas mas não vão beneficiar em nada.

Gostaria que nos falasse sobre de que forma este conflito está a afetar particularmente as mulheres, se são alvo de violência e intimidação específica. Sabemos também que, entre os deslocados, há várias famílias chefiadas por mulheres e que o número de crianças órfãs tem vindo a aumentar.

A situação da mulher em Cabo Delgado é bastante precária. Na campanha Mulheres em Luta, elencámos 13 razões pelas quais as mulheres não iriam celebrar o Dia da Mulher Moçambicana.

Uma delas é porque as mulheres estão a ser raptadas em Cabo Delgado. Aquilo que aconteceu na Nigéria, em 2014, que deu azo à campanha 'Bring Back Our Girls' está a acontecer todos os dias em Cabo Delgado.

No negócio da guerra, as mulheres servem como escravas sexuais, tanto para os militares e mercenários como para os terroristas; são violadas; servem como cuidadoras dos combatentes feridos; servem como cozinheiras nos campos dos militares e dos terroristas, e não só; são utilizadas como isco nas emboscadas. É mais fácil colocar uma mulher intimidada no meio da estrada para que ela mande parar carros do que um homem. Há evidências disto.

Há um áudio que nós fizemos com uma deslocada que testemunha essa situação e conta, por exemplo, o caso de uma senhora cuja família foi decapitada: o marido e os filhos. Os terroristas disseram-lhe que ela iria acompanhá-los porque gostavam dela. Ela recusou-se e disse que preferia morrer. Foi decapitada no momento. Foi uma forma de resistência. Mas há muitas mulheres que nem sequer estão a ter essa hipótese.

A situação é gravosa. Já em 2019 reportámos casos de mulheres que foram raptadas desde os onze anos de idade. Uma delas é esposa de um pastor de uma igreja da Assembleia de Deus. E o caso de uma jovem de 15 anos, a Fátima. Mas ninguém deu atenção. Os pais têm medo de falar sobre isto abertamente porque temem represálias. Isto está a acontecer há muito tempo na província de Cabo Delgado.

Depois há a questão das mulheres deslocadas, que ultrapassam uma série de barreiras. Temos várias mulheres a fazer os partos nas matas. Mulheres estão a dar à luz no meio da mata sem assistência médica, estão a transportar bebés.

Há uma situação que ainda não está a ser falada. É possível que, no processo de fuga, essas mulheres tenham que sacrificar os seus filhos. Que lhes digam para matar os seus filhos. Porque um bebé na mata que esteja a fazer barulho chama a atenção e denuncia os locais onde se estão a esconder.

Uma outra situação é que as mulheres têm, muitas vezes, de fazer a travessia dos mangais. Há mulheres que nos contaram que tiveram de atravessar a pé o mangal de Quissanga até a ilha do Ibu para se refugiarem. Não havia nenhum barco a aceitar fazer a travessia. Elas aproveitaram o momento em que a maré estava baixa para atravessar com a água até ao pescoço, e, por isso, não puderam levar nada. Agora, se não puderam levar nada, pergunto-me onde é que ficaram os bebés e as crianças.

Uma outra situação que também se reporta. Mesmo quando há um parto nos locais para deslocados, não há assistência médica.

Com apenas 18 anos e ainda com o trauma de ter visto o seu marido ser decapitado pelos terroristas, hoje 07 de Abril, ela deu parto nesta cabana sem assistência médica em Nanjua. #semotivosparacelebrar

Publicado por Mulheres Jovens Líderes de Moçambique em Quarta-feira, 7 de abril de 2021

Em Cabo Delgado já nem se fala de covid. É como se na província as questões sanitárias já não existissem. Dados oficiais falam em 600 mil deslocados, mas o número é muito maior.

Um estudo do Instituto Nacional de Estatística, em parceria com a Universidade Joaquim Chissano, defende que 49% da população de Cabo Delgado está hoje deslocada. Uns por deslocamento preventivo, outros por deslocamento como vítimas de terrorismo.

A mulher deslocada com quem falámos está a dividir o quarto com mais cinco outras pessoas. E este é um caso normal, porque há casos em que 30 pessoas que não se conhecem dividem o mesmo quarto, com capacidade para uma pessoa.

Mesmo nos centros de deslocados, é exigido sexo às mulheres em troca de donativos. E basta imaginar um centro de deslocados que é partilhado por mulheres e homens. Não há separação entre eles. A iluminação é condicionada. Ninguém sabe o que acontece lá quando elas se deslocam à casa de banho.

As mulheres deslocadas estão proibidas de falar ao público. Para se visitar um centro de deslocados existe um sistema de controlo extremamente elevado. E elas são instruídas sobre o que podem ou não falar, sobre pena de serem expulsas, assassinadas…

O nível de violação sexual que está a acontecer tanto dentro como fora dos locais ditos seguros, até por aqueles que têm o dever de protegê-las, é extremamente elevado.

O nível de violação sexual que está a acontecer tanto dentro como fora dos locais ditos seguros, até por aqueles que têm o dever de protegê-las, é extremamente elevado.

Outra situação está relacionada com os apoios. O principal apoiante em todo este processo é o PMA [Programa Mundial para a Alimentação]. Mesmo no caso das deslocações em Palma, quem levou mais helicópteros e mais navios foi o PMA. O governo não assistiu as pessoas no processo de fuga porque ainda não estava lá no distrito. Tenho conhecimento de que a força governamental foi enviada para Montepuez para reforçar a segurança do presidente da República, que estava lá em visita dois dias antes dos ataques.

Para além das mulheres não terem tido contacto com os militares no processo de fuga, uma delas conta-nos no vídeo que, quando chegaram a Pemba, a confiar que estavam num local seguro, os militares disseram que não poderiam entrar porque não tinham documentação. Os deslocados, homens e mulheres perguntaram: “Mas como é que vamos ter documentação se estamos a fugir do terrorismo?”. Os militares responderam que sem documentação não era possível provar que eles eram moçambicanos e que não eram terroristas. Os militares revolveram as suas pastas e perguntaram como é que os deslocados não tinham conseguido levar documentação mas alguns tinham telefone. E as pessoas explicaram que alguns tinham conseguido levar o telemóvel porque era um meio de auxiliar a fuga, de comunicar com os familiares. Mesmo assim, os militares disseram que quem quisesse passar tinha de pagar pelo menos 200 meticais. Foi o valor mínimo que aceitaram. E os deslocados começaram a pagar via M-Pesa, que é um sistema de pagamento via telefone. Os deslocados não comiam há mais de três dias porque não tinham dinheiro para comprar comida.

Começa a violência a partir do momento da receção. Não estamos a dizer que todos os militares estão a fazer isto, mas alguns estão.

Depois, nas residências, os deslocados têm de se registar num sistema, junto do secretário do bairro, para que possam receber subsídios. Mas, no fim, não recebem o apoio de deslocados.

É verdade que existe uma estratégia importante de garantir que as comunidades que acolhem os deslocados não se sintam desencorajadas. O erro que se verifica é que o apoio só está a ser dado às famílias recetoras.

O que os deslocados reclamam é que não lhes estão a ser dadas casas. Ou estão alojados com a sua família ou estão a arrendar a casa. Para eles, a questão é que, se estão a arrendar a casa, e a pagá-la com o seu próprio dinheiro, porque não recebem nenhum apoio?

Os secretários de bairro estão a fazer negócio. Alguns combinam com famílias, dividem o dinheiro e recebem deslocados. E os deslocados nunca veem apoio nenhum.

Noutros bairros dividem-se as senhas de abastecimento. A maior parte das pessoas que as estão a usar não são deslocadas, são pessoas que estão nas zonas seguras. E utiliza-se o argumento de que é para incentivar as famílias a continuarem a alojar deslocados.

Existem inúmeros casos de denúncia de que, no final do dia, as famílias nem dividem com os deslocados as coisas que compram. Esta situação está a gerar muita indignação no seio dos deslocados, e em particular das mulheres, que são, muitas vezes, chefes de família.

Outra questão que me preocupa bastante como presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes é que se chegou a uma circunstância em que as mulheres deslocadas começaram a ser alvo de muita desconfiança governamental. E também da desconfiança dos terroristas.

Se uma mulher é encontrada na mata pelos terroristas enquanto não tem o seu marido consigo, desconfia-se que ela seja esposa de um militar ou de alguém do governo ou que o seu familiar ficou para trás porque está com as forças do regime. Então essa mulher é decapitada.

Por outro lado, quando as mulheres chegam nas zonas ditas seguras e explicam que o marido foi decapitado ou foi sequestrado, os militares não acreditam, o governo não acredita. Dizem que há muitas mulheres que são infiltradas, que os seus maridos são terroristas e que elas desaparecem para lhes levarem informações e depois voltam. Então, muitas mulheres estão a ser decapitadas, presas, torturadas para confessar que são enviadas dos terroristas. Estão a sofrer tripla violência em todos os locais onde vão.

Houve uma cessação de direitos humanos de todas as pessoas que estão deslocadas em Cabo Delgado. Elas perderam o acesso aos direitos.

De forma resumida, estas são as principais violências que as mulheres estão a sofrer. Para além da própria violência doméstica. Uma mulher refugiada, deslocada não tem capacidade para contar. Mesmo quando é assediada, ela pensa de que vale a pena queixar-se se nem sítio para ficar tem. Se se queixar, para onde poderá ir?

Na verdade, houve uma cessação de direitos humanos de todas as pessoas que estão deslocadas em Cabo Delgado. Elas perderam o acesso aos direitos.

E há qualquer tipo de atuação sobre as denúncias, os abusos, sobre os crimes de guerra que estão a ser cometidos pelas forças no terreno?

Não, não há. Eu fico encorajada, porque, por força da nossa campanha, na quarta-feira o Presidente da República fez o seu primeiro discurso humilde. Antes éramos recebidos com discursos de arrogância.

Realizámos Diálogos de Alto Nível sobre Paz e Segurança em Moçambique, envolvendo vários atores, inclusive do governo, atores religiosos, academia, das Nações Unidas. Mas por parte do Ministério da Defesa não tivemos qualquer atenção.

A Amnistia Internacional fez um relatório em que trouxe dados de uma série de violações dos direitos humanos que aconteceram em Cabo Delgado.

É muito difícil que se ouça aquilo que Moçambique diz. Quando, finalmente, a Amnistia Internacional dá eco ao que os moçambicanos dizem, gerou-se uma grande preocupação

Quando nós, moçambicanos, falávamos sobre a violação dos direitos humanos, geralmente não éramos ouvidos. Porquê? Porque falávamos em português. E, como sabe, o português não é língua oficial das Nações Unidas, então as Nações Unidas pouco ouvem o que é dito em português. E acontece o mesmo a nível mundial, e até em termos da região. É muito difícil que se ouça aquilo que Moçambique diz. Quando, finalmente, a Amnistia Internacional dá eco ao que os moçambicanos dizem, gerou-se uma grande preocupação. A Amnistia Internacional já escrevia em inglês. Esta questão parece uma piada mas é uma questão muito séria para Moçambique.

Quando o relatório sai, o Ministério da Defesa começa uma campanha ainda maior de desinformação, de perseguição para perceber quem foram as fontes. E tenta descredibilizar o relatório, dizendo que se não se disser quem foram as fontes, então é porque não existiam fontes. Mas a ideia era perseguir quem tinha denunciado aqueles casos.

As denúncias dos abusos, das violações de direitos humanos não são levadas a sério. Ibraimo Mbaruco foi raptado por falar de terrorismo. Não sabemos se está vivo ou não. Os jornalistas que falam de terrorismo são presos, as pessoas são perseguidas. Já me disseram várias vezes que eu estou sempre a falar na televisão e que tenho de ter cuidado. E que só não me balearam ainda porque sou mulher, mas, mesmo sendo mulher, pode acontecer alguma coisa.

Há um clima de insegurança generalizada que se vive. Felizmente, eu dou graças a Deus porque falo estas coisas abertamente e até agora não me aconteceu nada. Sou cidadã moçambicana de direitos e tudo o que estou a falar não constitui mentira, por isso não percebo por que é que teria de me acontecer algo. Mas, efetivamente, muita gente diz que não fala sobre a questão e não conta o que se está a passar por receio de sevícias.

As mulheres que falaram connosco sobre a situação de Cabo Delgado, que enviaram os vídeos, pediram que protegêssemos a sua identidade. Sabem que, se descobrirem quem é que está a falar sobre isto, vão sofrer represálias.

Há um clima de medo. Um secretário de Estado e um comandante da polícia vieram dizer que podem cessar os direitos porque estamos em situação de guerra. Isto quando o presidente da República nunca veio declarar que estamos em estado de guerra, apesar de a Constituição o exigir. O facto de dizerem à frente das câmaras que quem da sociedade civil contar o que estão a tratar durante esses encontros será levado à polícia é já uma forma de intimidação.

Estou consciente de que o contexto de guerra não é um contexto fácil. É verdade que o que a sociedade civil fala com o governo nem sempre deve vir a público. Se estiverem em causa informações de segurança que possam ser usadas pelos terroristas.

Estamos conscientes de que há muita coisa que o governo não quer divulgar porque é preciso controlar o nível de informação que circula, principalmente sobre a estratégia das forças de defesa e segurança para fazer face ao terrorismo.

Não estamos a dizer que tudo tem de ser tornado público. Estamos a dizer que, quando há questões centrais que não estão a devidamente tratadas e que vêm a público, as pessoas não deviam ser recebidas com chacota, com perseguição.

Existe ainda o grupo de choque nas redes sociais criado pelo governo para desacreditar as pessoas, para perseguir, para insultar. Até para denegrir a imagem das pessoas que falam.

Há uma questão que eu me esqueci de abordar quando falámos das mulheres. E que é uma questão importante. As mulheres ativistas de direitos humanos não têm a mesma proteção que os homens.

Em Moçambique não existe nenhum mecanismo de proteção dos defensores dos direitos humanos. Os mecanismos estão fora de Moçambique. Quando um ativista que é famoso, que é jornalista e aparece nas capas dos jornais, é seviciado, é torturado, esses mecanismos são acionados para levar esse defensor para um local seguro. Mas, nos distritos de Cabo Delgado, estas situações acontecem todos os dias. E como não são pessoas famosas ninguém se importa, ninguém fala.

Algumas mulheres ativistas estão à procura de tratamento psicológico ou psiquiátrico. Há uma forma de perseguição de que ninguém fala. Às vezes, quando eles percebem que uma ativista está a falar demais, montam algumas armadilhas. Incluindo armadilhas que têm a ver com a vida íntima das ativistas. Enviam pessoas para se envolverem com elas e fazem gravações de vídeos íntimos. Conheço três casos. Não vou referir os nomes, até porque elas não falaram sobre a questão publicamente. As ativistas são chamadas e ameaçadas. Se continuarem a falar, o vídeo em que aparecem a ter relações sexuais com determinada pessoa vai circular nas redes sociais.

Aquela antiga deputada da Renamo [Resistência Nacional de Moçambique], a Rosa Chukwa, que foi assassinada juntamente com a sua amiga, em Niassa, é um exemplo claro de que quando uma mulher ativista, ou uma mulher que faz política ativa, é assassinada, não se dá atenção ao caso. Ninguém mais fala do caso da Rosa Chukwa e da sua amiga, que foram baleadas barbaramente em frente à casa do diretor provincial do SERNIC [Serviços Nacionais de investigação Criminal] em Niassa, em novembro do ano passado.

Desconhecidos baleam mortalmente duas mulheres, uma das quais antiga deputada da Renamo, em Lichinga O assassinato...

Publicado por Política de Moçambique em Sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Essas situações todas desencorajam que mulheres defensoras de direitos humanos entrem no ativismo. Até as suas famílias dizem que isto não é para mulheres. É como se continuasse a ideia de que as mulheres não são feitas para o espaço público, foram feitas para o espaço privado.

Temos informações de que em Cuamba [província de Niassa] há assassinatos, há decapitações à luz do dia, há raptos. Existe uma série de informações a circular nesse sentido, mas ninguém faz nada porque a intenção é apenas espalhar a ideia de que Cabo Delgado é o único sítio onde isto está a acontecer. Que nada mais se está a passar em nenhum outro ponto do país.

Tudo isto causa uma indignação generalizada. Mas também nos convoca à ação. Temos consciência de que, enquanto nós, moçambicanos, não agirmos, nada disto será resolvido.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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