Na semana passada, Edson Cortez foi o convidado do podcast assinado por Daniel Oliveira Perguntar Não Ofende sobre o conflito em Cabo Delgado. Fundador e diretor do Centro de Integridade Pública (CIP), uma organização da sociedade civil, fundada em 2005 com o objetivo de contribuir para a promoção da Transparência, Anti-corrupção e Integridade em Moçambique, Cortez esteve recentemente em Nampula e Niassa para acompanhar a situação dos deslocados.
Edson Cortez falou sobre o recente ataque a Palma e sobre a dificuldade em conhecer a realidade no terreno, na medida em que existem “informações muito difusas” e várias fontes de informação, oficiais e não oficiais.
“Em Moçambique há sempre uma tentativa por parte do Governo de controlar a informação”, apontou, sublinhando que, desta forma, se “abre espaço para que várias fontes de informação, algumas delas falsas, tenham voz”.
Com cerca de 20% da população deslocada, o diretor do CIP referiu que, “depois da guerra civil, esta é maior crise humanitária” a assolar o país. Cortez explicou que a maior parte dos deslocados são dos distritos costeiros, como Quissanga, Macomia, Palma ou Mocímboa da Praia.
Governo demorou a “assumir que estava a enfrentar um conflito armado”
Edson Cortez assinalou ainda a demora por parte do governo moçambicano “em assumir que estava a enfrentar um conflito armado” e não um “problema de ordem pública”. Bem como em assumir a sua responsabilidade no processo de reassentamento.
A larga maioria dos deslocados estão hospedados com familiares e amigos, o que está a causar uma enorme pressão sobre os já escassos recursos das comunidades de acolhimento. O responsável do CIP lembrou que o investimento público nos distritos afetados “foi sempre o mínimo possível”, e que Cabo Delgado é “a província moçambicana com maior nível de analfabetismo” e com uma pobreza estrutural.
Até quando vamos fingir que não há uma crise humanitária muito grave em Cabo Delgado?
Cortez destacou que o governo também não está a dar resposta a uma realidade dramática, que se prende com o número de crianças órfãs em resultado deste conflito.
Conforme recordou o diretor do CIP, Cabo Delgado está a 3000 km de Maputo, onde está o governo central. “Até hoje, as classes médias e altas de Maputo não têm dimensão da tragédia humana que está a acontecer em Cabo Delgado”. Estas, e “a elite governativa, estão mais preocupadas com a covid”, frisou.
Acresce que “o Governo estava concentrado no escândalo das dívidas ocultas, que estava no auge e tinha criado um verdadeiro terramoto político” (Para mais informação ler artigo A dívida escondida ilegítima de Moçambique), assinalou Cortez. Esta crise política, que arrastou para a prisão vários ex-governantes e na qual o atual presidente também se viu envolvido, tem ainda consequências económicas profundas para o país, já que os parceiros do apoio programático se retiraram e deixaram o Estado com falta de liquidez.
Pobreza e falta de oportunidades justificam elevado recrutamento interno
Assumindo que alguns homens que se juntaram ao grupo terrorista e fundamentalista islâmico Al-Shabaab são oriundos do Congo, Uganda, Tanzânia, Cortez realçou que a maioria é de Nampula, Cabo Delgado, Niassa.
Sobre as razões que justificam este elevado recrutamento no norte de Moçambique, o diretor do CIP afirmou que “a pobreza e falta de oportunidades que se sentem na região norte podem ter funcionado como catalisador para que jovens fossem aliciados e se juntassem a estes grupos”.
Falamos de uma região em que “não há esperança ou futuro para a maioria dos jovens” e com uma pobreza estrutural, onde mais de metade da população vive abaixo do limiar da pobreza.
A chegada a Cabo Delgado das multinacionais do setor do gás veio agudizar a situação. Cortez descreveu que estas empresas recrutam a mão de obra especializada do sul do país, principalmente de Maputo, e que o sentimento da população é de que “vêm para apropriar-se das riquezas” locais.
Em Cabo Delgado, a existência de um estado centralizado, em que “Maputo dá as ordens e todo o país tem de cumprir”, apesar de desconhecer a realidade no terreno, também causa indignação.
As pessoas da província “não conseguem vislumbrar qualquer ganho com este boom de recursos naturais”, disse Cortez.
Cabo Degado tem três principais grupos étnicos: os maconde, os macua, o maior grupo étnico, e os mwani.
O diretor do CIP explicou que os maconde são o grupo que mais beneficia das transferências de dinheiro, fazendo parte do grupo dos guerrilheiros de Libertação Nacional. Generais da Frelimo, que vivem em Maputo, têm vários interesses na província, como a extração de rubis. “Outrora foram libertadores, mas agora não fazem mais do que partir e repartir a riqueza do país”, avançou Cortez. Para os deslocados maconde, detentores de cartão bancário, “a readaptação é mais fácil”.
Os mwani são o grupo que mais sofre com o conflito. Essencialmente pescadores, foram reassentados no interior, sem possibilidade de retomar a sua atividade.
Neste processo, os distritos que receberam deslocados não puderam usufruir de qualquer orçamento retificativo. Não foi alocado mais dinheiro, mesmo perante a crise de cólera e a consequente pressão sobre os serviços de saúde. Ao mesmo tempo que deixa para as famílias de acolhimento um custo que devia suportar, o governo moçambicano cria “cargos para acomodação”. Cortez deu o exemplo da figura de secretário de Estado, que é o representante do governo na província e controla as finanças. Este elemento tem direito a um carro de mais de 100 mil dólares, assessores e uma escolta consideravel.
“Há gente que está a lucrar no meio do caos e desordem”
Edson Cortez lembrou que os próprios “líderes religiosos muçulmanos locais alertaram para a chegada de islamitas radicais que desvirtuavam o islamismo” praticado na zona e apontou que a questão religiosa “é um dos fatores, mas não é o fator predominante”.
O representante do CIP considera que o conflito tem mais a ver com “o boom dos recursos naturais”. Quando as “elites políticas de Maputo perceberam que ali pode estar o El Dorado”, o Estado “movimentou-se para Cabo Delgado para ocupar um espaço que não estava vazio”. Existiam na zona “outros atores, outras lógicas”, associados, nomeadamente, ao tráfico de madeira, exploração de rubis, narcotráfico. Os representantes públicos, que também vão defender interesses privados, vêm conflituar com os esquemas já instalados.
Cortez defendeu ser importante para conhecer o conflito perceber quais as fontes de financiamento do grupo terrorista: “Há gente que está a lucrar no meio do caos e desordem”, apontou, dando o exemplo dos 148 contentores de madeira não processada que tinham sido apreendidos pela alfândega e que, misteriosamente, saíram recentemente do país pelo porto de Pemba.
“Multinacionais estão habituadas a fazer exploração de recursos em contexto de guerra”
De acordo com Cortez, nos centros de acolhimento provisório, há quem defenda que o conflito serve para promover um reassentamento sem pagamento de compensações. A grande parte da população dos distritos costeiros abandonou a sua casa e receia perder direitos de propriedade de terra.
Sobre o impacto do conflito para as grandes empresas, o diretor do CIP enfatizou que as multinacionais “estão habituadas a fazer exploração de recursos em contexto de guerra”, como acontece na Nigéria. Não só conseguem laborar durante o conflito como podem negociar a sua segurança diretamente com os grupos armados. Por outro lado, o regulador, o Instituto Nacional de Petróleo, “não tem capacidade técnica e musculatura financeira” para monitorizar a sua atividade, ficando dependente das informações que as empresas dão. Esta situação traduz-se numa perda de receitas em impostos.
No final das contas, “o povo e estado moçambicano serão sempre os maiores prejudicados”, lamentou.
População encurralada entre Al-Shabaab, mercenários e forças de segurança
Cortez avançou que a população de Cabo Delgado não só tem motivos para temer os terroristas do Al-Shabaab como também se procura defender das forças de segurança – forças armadas e polícia – que primam pela "falta de respeito pelos direitos humanos".
Já os mercenários, como o grupo militar privado sul-africano Dyck Advisory Group (DAG), promovem ataques indiferenciados que resultam na morte de civis.
Para Cortez, a “privatização da segurança” é um problema a não ser descurado. A “forma de reprodução” destes mercenários “é baseada na existência de guerras”. Neste contexto, contratar mercenários de guerra para terminar uma guerra, que, se acaba, põe em causa a sua importância e o seu contrato, “é uma estratégia que não faz sentido”, defendeu.
“Aqueles indivíduos precisam que aquele conflito se mantenham para continuarem a ganhar dinheiro”, reforçou.
O diretor do CIP assinalou que “alguém no topo está a ter uma fatia de leão neste contrato” e recordou que o jornalista que denunciou que dinheiro pago pela Total para segurança ia diretamente para as contas do antigo ministro da defesa e do antigo ministro do interior foi levado a tribunal, acabando por ser ilibado.
Sobre a questão do apoio internacional, Cortez considera que “não há atualmente pro-atividade” por parte do governo moçambicano no sentido de garantir apoio militar no terreno. O representante do CIP referiu que tem muitas dúvidas que Moçambique aceite outro tipo de apoio por parte de Portugal que não a assistência técnica, até porque, para os grandes chefes da Frelimo, isso representaria um “atestado de incompetência”.
Edson Cortez apontou que, perante a inação do governo no terreno, são os organismos das Nações Unidas, como o Programa Mundial de Alimentação (PMA), a Unicef ou a Acnur, que estão a garantir o apoio alimentar.
Mas faltam apoios para que os deslocados consigam recuperar e reiniciar as suas vidas, alertou Cortez. E, para isso, é necessária uma “abordagem holística para perceber as diferenças que existem neste grupo de deslocados”.