Em declarações à agência Lusa, o diretor executivo da Amnistia Internacional em Portugal denuncia o clima de terror em que vive a população da província de Cabo Delgado, sujeita à violência exercida quer pelas forças militares, quer pelo grupo armado jihadista e pelas empresas militares privadas que operam no local.
“Até agora, todos os atores têm agido com total impunidade, mesmo antes” do recente ataque à vila de Palma, no norte da província, afirmou Pedro Neto. “Nós estávamos no terreno sofremos ameaças, os jornalistas foram presos em Cabo Delgado por causa de denunciarem a situação, o próprio bispo, Luís Fernando Lisboa, que é o bispo de Pemba teve de sair há alguns meses de Pemba, não por sua vontade, mas porque foi ameaçado de morte inúmeras vezes, e, portanto, houve uma tentativa de encobrimento de toda esta situação”, afirmou o ativista.
Por seu lado, o Presidente da República de Moçambique continua a desvalorizar a gravidade dos ataques que terão feito dezenas de mortos na semana passada. “Não foi maior que tantos outros que tivemos”, afirmou Filipe Nyusi numa cerimónia transmitida pela Rádio Moçambique e citada pela Renascença.
“Não percamos o foco, não fiquemos atrapalhados. Vamos abordar o inimigo como temos estado a abordar, porque a falta de concentração é o que os nossos inimigos - internos e externos – querem”, disse o chefe de Estado, atribuindo o impacto mediático internacional deste ataque ao facto de ter ocorrido “numa zona da periferia dos projetos em curso naquela província”, nomeadamente pela multinacional francesa Total. Enquanto isso, milhares de pessoas em fuga após os últimos ataques continuam a chegar à cidade de Pemba, a mais de 400 quilómetros de distância da vila de Palma.
"Nenhum dos três beligerantes respeita o direito dos civis à vida nem as regras da guerra”
O relatório da Amnistia Internacional divulgado no início de março reuniu 79 testemunhos para documentar “graves violações do direito internacional humanitário por todas as partes, resultando em morte e destruição generalizadas e uma crise humanitária que obrigou mais de meio milhão de pessoas a fugir”.
Entre os relatos recolhidos neste relatório intitulado “O que Vi foi a Morte: Crimes de guerra no ‘Cabo Esquecido’”, mais de 50 testemunhas dizem ter visto os paramilitares do Dyck Advisory Group, uma empresa paramilitar privada sul-africana contratada pelo governo moçambicano, a terem “disparado metralhadoras a partir de helicópteros, lançado granadas de mão contra multidões e disparado também repetidamente contra infraestruturas civis, incluindo hospitais, escolas e habitações”. Nem a empresa nem o Governo moçambicano responderam às questões colocadas pela ONG na preparação do relatório.
O documento calcula que centenas de civis tenham sido mortos por esta empresa de mercenários, pelos jihadistas do Al-Shabaab e pelas forças de segurança governamentais.
“Os residentes de Cabo Delgado estão encurralados entre as forças de segurança moçambicanas, as milícias privadas que estão a lutar ao lado do governo e o grupo de oposição armada – e nenhum dos três beligerantes respeita o direito dos civis à vida nem as regras da guerra”, comenta Deprose Muchena, diretor da Amnistia Internacional para a África Oriental e Austral, citado no relatório.
A Amnistia apela ao Governo de Moçambique que “em vez de perseguir quem denuncia a situação, [até porque] já não há como esconder a situação, ela é clara, está à vista do mundo, agora é a hora de enfrentar os problemas, resolvê-los e contar com a colaboração internacional para o fazer”. E também que sejam criadas condições para a entrada urgente da ajuda humanitária “de socorro e assistência urgente de que aquela população necessita”.
Por outro lado, a ONG quer também “a responsabilização pelos abusos dos direitos humanos que foram cometidos num tempo de impunidade total e de perseguição de quem denunciava os abusos que estavam a ser cometidos, quer ao bispo da diocese, quer a jornalistas, quer à própria Amnistia Internacional”, continuou.
Para que a estabilidade possa ser reposta na província de Cabo Delgado, é necessário também “um investimento sério do Governo” numa região marcada pela pobreza extrema, apesar da riqueza dos recursos naturais atualmente explorados por multinacionais. Mas essa riqueza “não beneficia a população, de modo nenhum, e esta injustiça social, esta revolta, é terra fértil para fenómenos como o terrorismo”, afirma Pedro Neto.
“As pessoas vivem em situação de muita pobreza por falta de investimento do governo em infraestruturas de desenvolvimento local. Que de uma situação de caos e tragédia possamos fazer um caminho com várias etapas, que seja sólido, em direção à estabilidade e prosperidade” é o desejo do diretor executivo da Amnistia Internacional em Portugal.