Até quando vamos fingir que não há uma crise humanitária muito grave em Cabo Delgado?

porAlexandra Vieira

26 de março 2021 - 21:32
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O que está a suceder, no momento atual, na província do norte de Moçambique de Cabo Delgado, ou Cabo Esquecido como alguns já o referem, pode ser visto como um dos exemplos de tudo o que representou a colonização e a pós-descolonização.

As antigas potências colonizadoras europeias, das quais Portugal faz parte, terão, para todo o sempre, responsabilidades históricas no que acontece no continente africano, desde as fomes aos conflitos, passando pelo movimento massivo de populações em busca de uma vida melhor, até às 3 décadas que as populações tiveram de esperar para terem acesso aos medicamentos retrovirais para o tratamento da infeção por HIV-SIDA, sem que nunca tenha havido lugar a reparações. Nem mesmo o mecanismo da ajuda ao desenvolvimento consegue resolver as abundantes e extremadas vulnerabilidades em várias regiões de África. Pelo contrário, em função de uma reorientação dos objetivos recentes, agrava a situação, pois em lugar de chegar às populações a que se destina, é usada para criar uma “Europa fortaleza”, com milhares de milhões a serem negociados com países terceiros para impedir a chegada de pessoas ao continente europeu.

Estando Portugal a presidir ao Conselho Europeu, sendo parceiro de Moçambique na CPLP, não se compreende porque tarda em diligenciar uma ação conjunta que faça chegar ao terreno a ajuda humanitária urgente o mais depressa possível

Desde há muito que as Organizações Não Governamentais ao Desenvolvimento têm vindo a desenvolver ações na região. Aldeias, casas, escolas, igrejas, mesquitas, centros médicos, distribuição de alfaias agrícolas e sementes e a formação em técnicas agrícolas foram sendo implementadas em Cabo Delgado e, segundo o último relatório da UNICEF, os níveis de pobreza e de escolaridade melhoraram. Todo esse esforço de empoderamento e de escolarização das populações tem vindo a ser desbaratado desde que eclodiu o conflito.

Desde 2017 que um grupo de insurgentes, forças mercenárias e o exército moçambicano se digladiam num conflito sem fim à vista nesta região esquecida. Os números são avassaladores: quase 2 mil mortos, mais de 700 mil pessoas deslocadas, das quais 300 mil são crianças.

Neste momento, pessoas morrem de forma violenta, entre elas muitas crianças, outras vivem no desespero e na violência extrema.

Quem consegue fugir, desloca-se em direção à capital Pemba e é acolhida em acampamentos onde tudo falta: água, alimentos, medicamentos, escolas, abrigos contra as intempéries. A ajuda humanitária que consegue chegar aos acampamentos não está organizada e não há quem coordene a distribuição de bens, rapidamente transacionados no florescente mercado paralelo. Prevê-se que a fome também grasse em Pemba muito em breve.

Mais uma vez, um drama como este ocorre num remoto canto do mundo que de pobre nada tem: as maiores jazidas de gás natural situam-se no norte da província. As multinacionais preparam a sua exploração e extração para a qual contratam trabalhadores de outras proveniências, já que os jovens locais não têm as qualificações necessárias. Para manter as operações de montagem da atividade extrativa são criados cordões de segurança, pagos pelas multinacionais, cada vez mais difíceis de manter. Mas os trabalhos no megaprojeto de gás continuam e prevê-se que a exploração se inicie em 2024, sem que a crise humanitária afete o andamento do processo.

O relatório recente da Amnistia Internacional descreve a situação grave do ponto de vista dos Direitos Humanos que ocorre em Cabo Delgado. Na semana passada, a organização não-governamental Save The Children alertou para a violência extrema que afeta cerca de metade das pessoas com menos de 18 anos, que presenciam a violência e também são o seu alvo quando recusam o recrutamento.

E a comunidade internacional permanece inoperante e negligente? Tudo indica que sim. Inexplicavelmente. A crise humanitária grave que se instalou em Cabo Delgado requer uma ação concertada e em colaboração com a comunidade internacional, nomeadamente a União Europeia. Estando Portugal a presidir ao Conselho Europeu, sendo parceiro de Moçambique na CPLP, não se compreende porque tarda em diligenciar uma ação conjunta que faça chegar ao terreno a ajuda humanitária urgente o mais depressa possível.

Artigo publicado em plataformamedia.com a 25 de março de 2021

Alexandra Vieira
Sobre o/a autor(a)

Alexandra Vieira

Professora de História e Sociologia da Educação. Dirigente do Bloco de Esquerda
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