Cabo Delgado: “O Al Shabaab aproveita-se de jovens em situação de desespero”

07 de abril 2021 - 10:11

O Esquerda.net falou com Sergio Chichava, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Moçambique, sobre a situação em Cabo Delgado, o surgimento do grupo terrorista no país, as suas motivações e fontes de recrutamento e as soluções para o conflito. Por Mariana Carneiro.

porMariana Carneiro

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Sergio Chichava
Sergio Chichava. Foto publicada na página de Facebbok do IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos (Moçambique).

Sergio Chichava é doutorado em Ciência Política pela Universidade de Bordeaux e docente no Departamento de Ciência Política e Administração Pública da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Atualmente é diretor do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) de Moçambique. Recentemente, junto com investigadores do IESE e associados, tem estado a desenvolver o programa de pesquisa sobre “Estado, Violência e Desafios de Desenvolvimento no Norte de Moçambique”. Entre outras obras, é coautor do livro Pobreza, Desigualdade e Vulnerabilidade em Moçambique. IESE: Maputo.

Em entrevista ao Esquerda.net, Chichava explica que o Al-Shabaad já andava a espalhar a sua ideologia muito antes de 2015 e que as autoridade moçambicanas ignoraram os alertas, assumindo que estavam perante um problema intra-religioso que devia ser resolvido entre os muçulmanos.

A presença do Al Shabaab ganhou relevo com os ataques de outubro de 2017 em Mocímboa da Praia. Mas os primeiros sinais da presença deste grupo na província de Cabo Delgado são anteriores. Creio que remontam, pelo menos, a 2015…

Em 2015 começaram a surgir algumas informações que circulavam na imprensa. Refiro-me a denúncias feitas por líderes religiosos, particularmente aqueles ligados ao Conselho Islâmico de Moçambique (Cislamo). Eles denunciavam a presença de indivíduos que faziam circular mensagens que, no seu entender, eram contrárias ao Islão.

Nessa altura, os líderes do Cislamo, uma organização criada em 1981 e legalizada em 1983, cuja maioria dos membros estudaram em países como o Sudão e a Arábia Saudita, foram os que estiveram mais em confrontação com o Al Shabaab. Eles alertaram os muçulmanos para terem cuidado com estes indivíduos que defendiam, por exemplo, que um muçulmano não podia trabalhar no Estado e que a venda de álcool tinha de ser proibida. Lembro-me que, em Macomia, um dia eles decidiram que não se vendia mais álcool e que ninguém podia consumi-lo. Foram recolher as bebidas nas lojas, o que criou uma confusão enorme. Os donos das lojas queixaram-se às autoridades. Quando estas foram tentar perceber o que se passava, apontaram um líder religioso como estando à frente desta ação.

Existia esta confrontação, que opunha estes dois grupos. Ambos consideravam ser os verdadeiros filhos de Maomé e achavam que os outros eram ignorantes.

E as autoridades tinham conhecimento deste confronto?

Um dos líderes proeminentes do Cislamo de Pemba, o Sheik Abdulcarimo Fadile, que estudou na Arábia Saudita, escreveu, inclusive, um texto intitulado “O problema do muçulmano ser um funcionário público”, em que denunciava essas práticas.

Estes indivíduos já andavam a espalhar a sua ideologia muito antes de 2015. É difícil estabelecer o ano exato, mas vamos dizer que foi depois de 2010 que eles apareceram. Isto criou um problema nas comunidades locais, porque eles diziam que o que os outros praticavam não era religião. E que os líderes muçulmanos, por exemplo, do Cismano, estavam a desvirtuar o Islão porque conviviam com outras religiões. Eles não aceitavam isso.

Em atos públicos organizados pela comunidade muçulmana de Cabo Delgado, foram elaborados documentos oficiais, que são públicos, em que é detalhado tudo o que estava a acontecer na província. Em novembro de 2016, foi organizada uma conferência islâmica. Um dos capítulos do relatório público deste encontro fala sobre as seitas emergentes em Moçambique.

Numa das entrevistas que fizemos, conversei com um jovem líder religioso de Mocímboa da Praia que me explicava que andava por ali um sheik tanzaniano que espalhava mentiras e era contra o Estado. Denunciámos o caso à polícia e ele foi preso. Mas, alguns dias depois, foi solto. Suspeitava-se que ele tivesse pago alguma coisa para ser libertado. Isso não posso confirmar. Mas o ponto é que estas práticas criaram problemas. A confrontação chegou a ser física, por vezes. Em alguns momentos, quando os confrontos entre os dois grupos se tornaram mais graves, as autoridades reagiram, como foi o caso de Chiúre. A polícia baleou alguns, capturou outros, destruiu a mesquita do Al Shabaab. Em Macomia diz-se que foi a população que destruiu a mesquita deste grupo extremista.

As autoridades deram a devida importância a todos estes alertas?

As denúncias no início não surtiram nenhum efeito porque as autoridades julgavam que era um problema intra-religioso que devia ser resolvido entre os muçulmanos. As autoridades não viam a situação como algo problemático.

Ninguém podia imaginar que chegaríamos ao ponto a que chegámos. Mesmo depois do ataque de 5 de outubro de 2017, lembro-me que o comandante-geral da polícia, Bernardino Rafael, apareceu a dizer que eles eram um grupo de bandidos e que lhes dava uma semana ou alguns dias para se entregarem.

Na mesma altura, um administrador de Mocímboa da Praia, Rodrigo Puruque, veio dizer que o problema estava associado às religiões e que estávamos perante indivíduos que aprenderam doutrinas radicais e queriam impor a sharia. Também ouvimos o mesmo discurso por parte do presidente da República, em comícios públicos, e do antigo ministro do Interior.

Nos primeiros dias após o ataque a Mocímboa da Praia, muitos muçulmanos, ou com “aparência muçulmana”, foram espancados, mortos, presos injustamente. Houve um pânico generalizado. Mas, mesmo assim, minimizou-se o impacto do Al Shabaab.

Em abril de 2020 afirmava que os ataques às vilas de Mocímboa da Praia e Quissanga, no final de março, não deixavam dúvidas de que os grupos armados são movidos pelo fundamentalismo islâmico. Assinalava, contudo, que era necessária uma investigação profunda sobre a identidade dos autores da violência e a matriz do conflito. Ainda que a motivação religiosa seja um ponto assente, existirão vários fatores. A investigação de que falava foi feita? Conhecemos mais sobre estes terroristas, sobre quem os apoia e financia? Sobre os interesses em jogo?

Essa é uma questão bastante complicada. Ainda não se sabe quem os financia. Alguns estudos, que não são da minha autoria, mostram que esse apoio pode vir de diversas fontes. Algumas delas associadas ao tráfico de vária ordem. Não posso confirmá-lo.

Mas o que eu sei é que, se olharmos para a liderança do grupo, são jovens locais que foram instrumentalizados. Estudaram doutrinas da religião islâmica em países como a Tanzânia ou o Quénia e voltaram com esta ideia de impor a sharia.

Alguns foram recrutados nos diversos campos de mineração ilegal.

Esse fenómeno está relacionado com o que aconteceu em Montepuez, com a instalação da Montepuez Ruby Mining (MRM), da Gemfields (inglesa)?

Existe uma conjugação de fatores. Mas esse é um dos fatores que acelerou o processo. Alguns elementos do Al Shabaab eram antigos mineiros. Mas existem tantos outros que não estavam nas minas de rubis e beberam as doutrinas desse Islão radical. Basicamente, de sheiks que vinham de outros países.

Não posso dizer diretamente quem os financia porque não tenho dados concretos. Estaria mesmo a dizer coisas que não posso sustentar. É uma questão bastante difícil.

Existe um estudo dos meus colegas chamado “Radicalização islâmica em Mocímboa da Praia" que tenta explicar quem pode estar a financiar o Al Shabaab. Falam no tráfico de marfim, por exemplo.

Do narcotráfico, também.

Exatamente. Mas, sinceramente, não posso confirmar. É uma questão complicada.

Ou seja, e corrija-me se estou enganada, esse estudo assinala que existia um espaço em Cabo Delgado que já estava ocupado por alguns interesses, das pedras preciosas, do narcotráfico, de outros tipos de contrabando. E que esses interesses se viram confrontados com o início da exploração de gás naquele território e com a entrada em jogo de outras potências. O estudo aponta que este confronto terá contribuído para incendiar o conflito na região.

É provável, sim. O estudo aponta isso.

Mas, mesmo nos relatos atuais de Palma, as pessoas dizem que estes indivíduos gritam “Allahu Akbar” durante os ataques. Pode ser que este grupo esteja a instrumentalizar o Islão e tenha outros propósitos. Mas a questão do Islão está sempre presente.

Se reparar, é uma questão muito sensível. Mesmo o Governo falou sobre a questão religiosa no início, o que causou imensos problemas com as organizações religiosas, particularmente com o Islão. Entretanto, o discurso mudou. Vieram dizer que o Islão é uma religião de paz. Mesmo entre as diferentes congregações religiosas que existem em Cabo Delgado, há uma espécie de tabu. Ninguém fala disto. Tentam dar uma ideia de harmonia. Mas são conhecidos casos concretos de ataques a instituições que representam a Igreja Católica. E as diferentes formas de interpretar o Alcorão, ou da maneira de ver o Islão, criou fissuras no seio dos próprios muçulmanos em Cabo Delgado.

Ainda antes do 5 de outubro de 2017, o Al Shabaad começou a dizer que os líderes religiosos que tinham denunciado os seus membros às autoridades tinham de ser “caçados” e mortos porque estavam a pôr em causa a religião muçulmana. Estou a trabalhar sobre essa questão atualmente. Estou a escrever um pequeno artigo para mostrar qual foi a reação do Al Shabaad a estas denúncias. É um assunto, na minha opinião, que precisa de ser esclarecido.

A minha dúvida é, realmente, se é algo genuíno ou se é apenas uma instrumentalização. Isto é difícil de dizer.

O ponto é que sabemos que, acho que em abril ou maio de 2019, houve a indicação de que o Al Shabaad estaria a fazer parte do Estado Islâmico. Até que ponto é que isso corresponde à verdade, não sabemos.

Há algo que tem de ficar registado. Conversei com pessoas que conviveram com jovens de Mocímboa da Praia que, hoje em dia, são membros desse grupo. Diziam-me: “Um deles, que era nosso vizinho, matou o nosso pai”; “Aqueles jovens acordavam de manhã e ficavam a escutar as cassetes daquele líder queniano Sheikh Aboud Rogo”; “Uns viajaram, foram para a Somália, para o Quénia… e depois voltaram”. Alguma coisa ligada à religião existe. Não se pode negar. O interessante é que hoje o governo já não fala sobre isso para não entrar em rota de colisão com a liderança islâmica em Moçambique.

E como justifica o tão elevado recrutamento interno no Norte de Moçambique, principalmente nas províncias de Niassa e Nampula, onde jovens estão a engrossar as fileiras do Al Shabaab?

Vou dar um exemplo. Conversei com um jovem líder religioso de Mocímboa da Praia, bastante influente lá, que agora está refugiado em Pemba. Penso que tirará as suas conclusões daquilo que eu vou contar. Ele dizia-me: “A minha mulher tinha uma casa, que herdou do pai. Essa casa estava alugada à Movitel [uma das maiores empresas de telecomunicações de Moçambique], e eles pagavam 80 mil meticais [a unidade monetária oficial de Moçambique] por mês. Eu não tinha falta de nada. Mas aqueles tipos vinham sempre a minha casa tentar convencer-me. Diziam-me que eu ia ter dinheiro, ia viajar, ter bolsa de estudo. Eu não precisava destas coisas. Eu vivia bem”.

Ou seja, o Al Shabaad aproveita-se de jovens em situação de desespero e sem perspetivas. Não se pode negar isso. Se tu não tens perspetiva nenhuma, se vives numa situação precária e depois aparecem indivíduos que te oferecem dinheiro e a possibilidade de estudar, é fácil. Lembro-me muito bem que, há uns anos, quando eu viajava para as províncias, o sonho daqueles jovens era vir para Maputo. Não há absolutamente nada lá para fazer. São jovens extremamente vulneráveis. Não têm nada, não têm trabalho…

Isso tem a ver também com algum desinvestimento do próprio Estado no norte de Moçambique?

Olhe, vai-me desculpar, mas já esteve em Moçambique nos últimos anos?

Não, infelizmente não. A minha mãe nasceu em Moçambique e é um país que quero muito visitar, mas ainda não tive oportunidade.

Al Shabaab existe em todo o lado. É uma metáfora. Eu estou a falar de Maputo. Aqui, ainda não tivemos incursões do Al Shabaad, mas a situação de insegurança é terrível. Rouba-se tudo. Tudo. E quem faz isso são os jovens, que não têm perspetivas nenhumas. Se a situação é assim na capital, onde pensa-se que se vive bem, o que é que acha que está a acontecer nos outros lugares deste país? É muito complicado. As pessoas não têm perspetivas, não têm nada. É uma situação desesperante.

Lembro-me que o próprio Cislamo, em coordenação com outra entidade, criou alguns cursos, de empreendedorismo, para jovens em Cabo Delgado, em Pemba. E fizeram-no porque tinham consciência de que aqueles jovens precisavam de ter alguma coisa para fazer. São um alvo fácil para quem tem algum dinheiro para oferecer, para os recrutar.

Nalguns lugares em que o Al Shabaab atacava, num grupo de dez casas eles só queimavam duas ou três casas. Os jovens das casas que não tinham sido queimadas tinham recebido dinheiro e tinham aceite juntarem-se ao Al Shabaab.

Neste momento estou a escrever a história de um jovem de Nangade, maconde [um dos grupos étnicos presentes em Cabo Delgado], que recebeu algum dinheiro para abrir um negócio e aderiu ao Al Shabaab. Alguns amigos dele também receberam dinheiro mas acabaram por não se juntar ao grupo. Como ele tem os seus contactos, liga-lhes para os avisar que têm de aderir ao Al Shabaab, caso contrário vão sofrer as consequências. Algumas destas pessoas tiveram de fugir, outras estão refugiadas.

Mas a população não está só sujeita às ameaças e à violência por parte do Al Shabaab, acaba também por ficar cercada pelos mercenários e pelas forças armadas e polícias ao serviço de Maputo…

Em contexto de guerra, estas coisas acontecem. Que eu saiba, a intenção dos mercenários não era de maltratar ou atacar a população. Houve erros, e esses erros também têm sido cometidos pelas Forças de Defesa e Segurança (FDS). Se reparar noutros contextos de guerra, como no Iraque ou na Síria, as próprias forças chamadas Aliadas às vezes bombardeiam infraestruturas públicas por engano. Daquilo que eu sei, parece que os mercenários bombardearam um hospital. Foi um erro.

Não considera existir um perigo na privatização da segurança? Não deveriam ser as próprias forças de segurança a estar melhor equipadas, melhor preparadas?

Deviam, mas não estão. Não estou a dizer que esta foi a melhor solução. Mas sem os mercenários, talvez aquela província já estivesse completamente ocupada. Não devemos ter ilusões em relação a isso. A força aérea que nós não temos, que Moçambique não tem, foi decisiva para refrear o avanço do Al Shabaab. Numa reportagem recente, há algo a reter no que o jornalista diz. A força aérea foi fundamental para recuperar Palma. Por mais que se diga que os helicópteros usados são velhos e arcaicos foram uma ajuda importante.

E em relação às Forças de Defesa e Segurança?

As FDS não estão capacitadas para lidar com este tipo de conflito e enfrentam problemas logísticos.

Há, por outro lado, alguns rumores. Temos tido oportunidade de entrevistar militares que nos dizem que não estão a entender esta guerra, na medida em que, quando estão a iniciar um ataque a uma posição inimiga são logo recebidos a tiro. Depois alguns militares desaparecem e os seus corpos não são encontrados. Ou seja, dizem-nos que parece haver infiltração no seio das FDS. O que não é admirar, tendo em conta que os militares ganham muito mal. Há rumores de que fazer parte do Al Shabaab é melhor do que fazer parte das FDS.

Há estas questões que é preciso resolver. E há outros rumores que não podem ser ignorados. Diz-se que esta guerra beneficia algumas pessoas. Fala-se no antigo ministro da Defesa.

Tudo isto acaba por criar uma certa desmotivação no seio das forças de segurança.

O que, na minha opinião, se deve fazer, e o mais rápido possível, é equipar as FDS, treiná-las devidamente. Sem isso, não vai ser possível travar o inimigo. Agora, vencer o inimigo parece-me muito complicado. Em alguns sítios, o Al Shabaab ganhou a adesão das pessoas, em vários locais conseguem penetrar ou atacar as posições das forças de segurança. Isto porque têm apoio da população local. Se é por coação ou não é um aspeto a investigar.

Acha que Moçambique está em condições de resolver este conflito sozinho?

Não. Não estou a dizer que a solução passa necessariamente pela presença de forças estrangeiras, mas sim pelo apoio no treinamento e capacitação. Apoio logístico e material, em termos de troca de informação, etc. Moçambique precisa disso, sozinho não vai conseguir nada. Está mais do que visto.

Para uma situação de curto prazo, os mercenários serviram. Houve atrocidades por parte dos mercenários e das forças de segurança que são de lamentar. São situações que não deviam acontecer e às vezes põem a população contra o Estado mas olhando para as guerras atuais, os abusos são situações que acontecem no teatro de guerra.

E a comunidade internacional não está acordar para o conflito agora? O que justifica o desinteresse e a inação, até há bem pouco tempo, de potências que têm, inclusive, interesses na região?

Tenho de dividir esta resposta em duas partes.

Da parte do governo moçambicano, existiram sempre reticências no que respeita ao envolvimento externo no conflito. Em algumas conversas com diplomatas ocidentais sediados em Maputo, eles dizem-me não estar a perceber o governo e questionam-se se não existe uma agenda obscura. Um dos países com interesses naquela região já terá apoiado um plano e comunicado a sua disponibilidade para dar apoio mas não tem resposta por parte do governo. Mesmo a nível da SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral] há quem diga que o governo de Maputo não dá respostas.

Falar de inação da comunidade internacional é complicado. Agora, hoje fala-se muito do conflito porque foi atacada Palma, onde existem esses enormes depósitos de gás que interessam a muitas multinacionais.

Eu diria que os jihadistas também conseguiram colocar o conflito moçambicano no mapa internacional. Havia a ideia de que eles estavam enfraquecidos e que já ninguém falava disso.

Acha que foi uma prova de força e que saíram, de certa forma, vitoriosos do ataque a Palma?

Sim, foi uma prova de força. É provável que eles estejam enfraquecidos. Mas, com aquele ataque, fizeram com que Moçambique fosse falado por todo o mundo. Não me recordo de quando Moçambique tinha sido tema na Sky News ou quando Moçambique tinha sido abertura de telejornais na France 24. Em todas as televisões ocidentais. Mesmo com outros ataques que já aqui tinham acontecido, durante os quais mataram muito mais gente, nunca houve tanta atenção sobre Moçambique.

Eu creio que os jihadistas fizeram uma boa leitura da situação. Foi um alvo muito bem escolhido. E conseguiram o seu objetivo. Hoje, Moçambique é falado em quase tudo o que é canto. Toda esta atenção pode vir a abrir-lhes portas para que tenham apoio de outras organizações similares. E se existir o envolvimento de países como Inglaterra e Estados Unidos haverá uma internacionalização do conflito. Os outros grupos da mesma estirpe que o Al Shabaab virão, com certeza, dar o seu apoio com a ideia de que estão a combater o ocidente. Acho que as reticências por parte do governo moçambicano em ter forças de outros países também têm a ver com esse receio.

Certo é que há a consciência de que Moçambique sozinho não vai conseguir resolver este conflito. A ideia de que, com as condições atuais, não será possível resolver o problema está claro.

Uma última questão que creio que não podemos deixar de abordar: os deslocados. Como está a situação no terreno, nomeadamente em Pemba, quem está a dar apoio a estas pessoas? É o governo, são as organizações internacionais?

A situação é dramática, como deve imaginar. As organizações que já se encontravam no terreno, como os Médicos Sem Fronteiras, a Cruz Vermelha, o PMA [Programa Alimentar Mundial], têm estado lá a fazer o seu trabalho, com algumas dificuldades. Sem essas organizações internacionais, a situação seria catastrófica.

O governo permite a atuação destas organizações mas tem de se ter em conta que estamos perante uma situação de conflito em que existe um forte controlo e algumas restrições. Sem estas organizações, o governo não tem condições de poder dar vazão a esta situação.

A situação estava a estabilizar um pouco nos últimos dois, três meses, praticamente não havia afluência de deslocados para a cidade de Pemba ou para outros locais e províncias vizinhas. Agora a situação ficou mais complicada. Só no ataque a Palma fala-se de milhares de pessoas que tiveram de fugir e chegaram a Pemba de uma vez só. É difícil lidar com uma situação destas. É preciso reconhecer que as organizações humanitárias internacionais e nacionais estão no terreno a trabalhar. Dentro das disponibilidades e restrições que são normais neste contexto em que não se sabe quem é quem e que é preciso ter muito cuidado. Teme-se que entre os deslocados possam existir indivíduos infiltrados. Alguns já foram identificados e traziam armas consigo. Dizer que estas organizações não estão a trabalhar não é verdade. Temos colaborado com algumas organizações que estão no terreno.

Mas não estão a substituir o Estado nas suas responsabilidades no processo de reassentamento dos deslocados?

Está a falar de um Estado enfraquecido, que quase não consegue prover as necessidades de mais de metade da sua população. É normal que isso aconteça. E não é novidade para nós. Não é escandaloso. Numa situação destas não há nada a fazer que não aceitar a situação tal como ela é. Não há como.

Mariana Carneiro
Sobre o/a autor(a)

Mariana Carneiro

Socióloga do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea. Ativista antirracista e pelos direitos dos imigrantes.