Num comunicado emitido esta quarta-feira, a organização humanitária internacional assinala que “embora o conflito tenha ocorrido desde 2017, recebeu muito pouca atenção política dos governos regionais ou atores internacionais - exceto aqueles interessados nas reservas de gás de Moçambique ou contratos militares privados”.
“Muito menos atenção tem sido dada ao número crescente de pessoas deslocadas - agora mais de 700.000 - e à crítica crise humanitária que a província enfrenta”, escrevem os Médicos Sem Fronteiras.
De acordo com Jonathan Whittall, diretor do Departamento de Análise da organização, “Cabo Delgado pode não ser um conflito esquecido, mas certamente é uma crise humanitária negligenciada”.
“E agora, com a atenção da região da SADC e dos apoiantes internacionais do governo moçambicano fixados quase exclusivamente na ‘luta contra o terrorismo’, as soluções propostas podem mais uma vez ignorar a necessidade urgente de salvar vidas e aliviar o sofrimento de dezenas de comunidades afetadas pelo conflito”, alerta Whittall.
O responsável dos Médicos Sem Fronteiras refere ainda que, “embora as razões para este conflito possam ser multifacetadas e complexas, as consequências da violência são extremamente simples: medo, insegurança e falta de acesso às necessidades básicas de sobrevivência, incluindo comida, água, abrigo e cuidados de saúde urgentes”.
"Escala da resposta humanitária não corresponde de forma alguma à escala das necessidades”
Enquanto isso, continua Jonathan Whittall, “restrições significativas são colocadas ao aumento da resposta humanitária devido à contínua insegurança e aos obstáculos burocráticos que impedem a importação de certos bens e a emissão de vistos para trabalhadores humanitários adicionais”.
Whittall regressou recentemente de Cabo Delgado e viu “em primeira mão como a escala da resposta humanitária não corresponde de forma alguma à escala das necessidades”.
“O que parece prestes a aumentar é a operação de combate ao terrorismo com apoio regional e internacional que poderá impactar ainda mais uma população já vulnerável”, explica.
O representante dos MSF testemunha como, em muitos conflitos, da Síria ao Iraque e Afeganistão, “as operações de contraterrorismo podem gerar necessidades humanitárias adicionais, ao mesmo tempo que limitam a capacidade de resposta dos trabalhadores humanitários”.
Jonathan Whittall alerta que muitas organizações evitam prestar ajuda humanitária de forma imparcial e negociar com qualquer grupo que controle territórios ou que possa prejudicar os seus doentes e funcionários em locais onde um grupo foi designado como “terrorista”, por medo de entrar em conflito com a legislação antiterrorismo. E lembra que “o governo dos Estados Unidos designou um grupo armado de oposição que operava em Cabo Delgado como uma organização ‘terrorista’ e enviou conselheiros militares para treinar o exército de Moçambique em medidas de combate ao terrorismo”.
"Organizações como os MSF precisam de ser capazes de trabalhar de forma independente”
A organização Médicos Sem Fronteiras realça que “as operações de contraterrorismo tentam colocar as atividades humanitárias sob o controlo total do estado e das coligações militares que as apoiam”.
Neste contexto, “a ajuda é negada, facilitada ou fornecida a fim de aumentar a credibilidade do governo, ganhar corações e mentes para a intervenção militar ou punir comunidades que são acusadas de simpatizar com um grupo de oposição”.
“Os mais vulneráveis muitas vezes podem cair nas brechas dessa abordagem, e é por isso que organizações como os MSF precisam ser capazes de trabalhar de forma independente”, lê-se no comunicado.
Whittall aponta ainda que, “em guerras de contraterrorismo em todo o mundo, frequentemente vemos vítimas civis a ser justificadas devido à presença de ‘terroristas’ entre a população”.
“É nessas situações que frequentemente vimos hospitais destruídos e aldeias inteiras arrasadas em ataques que não conseguem distinguir entre alvos militares e civis. As comunidades costumam ficar presas entre a violência indiscriminada de grupos armados e a resposta antiterrorista do Estado”, acrescenta.
Para Jonathan Whittall, “o atual enfoque no ‘terrorismo’ serve claramente os interesses políticos e económicos daqueles que intervêm em Moçambique”.
“No entanto, não deve ser feito à custa de salvar vidas e aliviar o imenso sofrimento que enfrenta o povo de Cabo Delgado”, remata.