Sociedade

Teach for Portugal: um projeto para privatizar o ensino em Portugal

03 de fevereiro 2025 - 10:19

Braço português da Teach for All terá objetivo de "chegar a 10%" das escolas públicas portuguesas. Com um modelo de alta rotatividade, organização não-governamental é alvo de críticas da Fenprof.

porDaniel Moura Borges

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Teach for Portugal
Lançamento da TfP. Fotografia via website da Teach for Portugal

“O projeto que ajuda a diminuir negativas e a motivar os alunos”, é assim que o Expresso define a Teach for Portugal num artigo de janeiro de 2024. Segundo o jornal, o projeto de apoio educativo reduziu as negativas nas turmas que acompanhou de forma expressiva. De longe, parece um programa que beneficia o sistema de ensino português, mas como funciona ao perto?

A Teach for Portugal é uma organização não-governamental (ONG) que pertence à rede Teach for All, com um modelo de trabalho que teve início nos Estados Unidos da América, em 1989, com a Teach for America. Com uma narrativa de combate às desigualdades, o seu projeto educativo aposta na introdução de “mentores” nas salas de aula da escola pública, para auxiliar os professores nas tarefas educativas.

Segundo o Expresso, numa amostra composta por 3.700 alunos do ano letivo de 2022/2023, nas turmas com a presença de mentores da Teach for Portugal, as avaliações negativas diminuíram 44%. Mas esta diminuição não contrasta com os resultados das turmas sem mentores da ONG, porque nessas as negativas também diminuíram 29%. O que se nota é uma diferença de 15% que poderá ser de facto explicada pela presença de um auxiliar ao professor.

Mas, mesmo notando-se uma melhoria marginal nos resultados dos alunos, isso não significa que o impacto da Teach For Portugal seja positivo no seu todo. De facto, em 2019, a Federação Nacional dos Professores (Fenprof) já alertava para os perigos deste projeto educativo no ecossistema do sistema educativo português.

A federação de sindicatos denunciou que os “fundos comunitários ‘afogam’ as escolas em projetos que não construíram”. Isto é, os fundos da União Europeia para a educação foram desviados para projetos como a Teach for Portugal em vez de serem aplicados diretamente nas escolas. Isso significa que os meios e técnicos alocados às escolas (desde psicólogos e terapeutas a educadores sociais) não pertencem às escolas, mas sim a estas organizações, deixando de trabalhar nas escolas quando os programas financiados terminarem.

Ou seja, em vez de as escolas desenvolverem os seus próprios projetos, usando o financiamento europeu para melhorar a qualidade da educação de acordo com as suas necessidades específicas, o dinheiro é direcionado para organizações não-governamentais que desenvolvem programas temporários de apoio às escolas.

Esse desvio do financiamento, aponta a Fenprof, acontece com a colocação dos financiamentos comunitários destinados a estes projetos nas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), aos quais depois se candidatam as Comunidades Intermunicipais no âmbito do Plano Integrado e Inovador de Combate ao Insucesso Escolar.

O próprio Ministério da Educação é parceiro de projetos privados financiados por fundos comunitários através da Direção-Geral de Educação (DGE), da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) e da Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional (ANQEP). A DGE, em particular, acompanha vários projetos, entre os quais a Teach For Portugal.

Um projeto internacional

O projeto da rede Teach for All não tem apenas como objetivo captar financiamentos públicos. Com início ainda na década de 1990, a Teach for America tinha como modelo de funcionamento a captação de jovens diplomados para os colocar a ensinar em escolas o mais rápido possível, sem formação em ensino. Ao operar com uma força de trabalho jovem e sem experiência, que apenas assumia um compromisso de dois anos de ensino, a organização não-governamental conseguiu cortar custos às escolas públicas, externalizando os professores.

O chamado “esquema Teach for All” rapidamente se desdobrou em mais de cinquenta países ao longo de trinta anos. Numa revisão de literatura elaborada em 2012 a pedido da Associação de Professores do Ensino Pós-Primário da Nova Zelândia, no contexto da introdução do esquema Teach for All nesse país, denota-se a criação de um “regime acelerado” de formação de professores.

Os investigadores apontaram os dois principais problemas que as investigações sobre o esquema Teach For All tinham levantado. Por um lado, a colocação de professores sem formação em ensino, por outro, a criação de uma força de trabalho com alta rotatividade, sem capacidade de acompanhar a longo termo as necessidades educativas de uma comunidade escolar. Ambos consequências de um esquema alinhado com “o aumento da desregulamentação, da escolha e da mercantilização, elementos-chave de uma agenda de reforma educativa neoliberal/neoconservadora”.

Um outro estudo de 2016 à atuação da Teach for America concluiu que o modelo dessa organização não-governamental funcionou num embaratecimento da força laboral docente no país. Também as mais variadas estruturas sindicais ligadas à educação denunciaram a “desprofissionalização” e a “alta rotatividade”, os “piores resultados de aprendizagem”, e o “enfraquecimento da defesa dos direitos profissionais” que o esquema da Teach For All produz.

Externalização à portuguesa

Em reunião com a Direção-Geral de Educação, a Fenprof confirmou que para além do programa de “mentores”, a Teach For Portugal pretendia operar em Portugal como uma entidade “formadora” de docentes. No entanto, a legislação portuguesa é incompatível com o “regime acelerado” de formação de professores da rede internacional.

Ainda assim, a organização não-governamental expandiu a sua presença e influência, beneficiando de financiamentos europeus acumulados em 786,79 mil euros, segundo o portal Mais Transparência. Entre os mecanismos de financiamento estão o Portugal 2020, o Programa Operacional Inclusão Social e Emprego e o Plano de Recuperação e Resiliência.

No ano letivo de 2023/2024, a Teach For Portugal celebrou parcerias com 48 escolas e colocou 70 “mentores”, recolhendo uma vasta gama de parceiros, entre os quais a Sonae, o BPI, a Fundação Vasco Vieira de Almeida, a Deloitte, e o Grupo José de Mello. Desenvolveu também colaborações com várias Câmaras Municipais, em particular a do Porto e a de Lisboa.

Em 2024, o Executivo de Carlos Moedas avançou com a criação do Programa de Mentorias, que tinha como objetivo colocar mentores em várias salas de aula nos dois próximos anos letivos. O projeto, que iria abranger cerca de 2.000 alunos do 2º ciclo através da parceria direta entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Teach for Portugal, foi, no entanto, chumbado na Assembleia Municipal.

O investimento, que seria de 729.937 euros – pouco menos do que a totalidade dos apoios recolhidos pela Teach for Portugal em fundos europeus – foi travado pelo Bloco de Esquerda, Livre, Partido Ecologista “Os Verdes”, Partido Socialista, PAN e Chega. Os deputados municipais opuseram-se devido ao elevado montante de investimento e a falta de um concurso público. Segundo denúncia do Bloco de Esquerda, não haveria também “um diagnóstico e não existem metas a alcançar”, o que tornaria o financiamento num cheque em branco para a Teach for Portugal.

Um episódio semelhante ocorreu com um outro projeto parecido. Nesse caso, Carlos Moedas queria montar uma academia privada de formação digital em Lisboa que iria custar à Câmara cinco milhões de euros, e seria entregue sem concurso público a um amigo de Carlos Moedas: Pedro Santa Clara.

Também nesse caso, a oposição pediu mais transparência e concurso público, e a ideia acabou por cair. A CNN explica como antes de sequer ser presidente da Câmara, o próprio Carlos Moedas propôs a ideia a Pedro Santa Clara, professor de Economia na Nova School of Business and Economics, mandatário da Iniciativa Liberal nas eleições legislativas e membro do instituto +Liberdade (desse mesmo partido).

Os dois planearam trazer a Lisboa o projeto TUMO, através da associação Top Sail – constituída pelas mesmas pessoas da empresa de Pedro Santa Clara, a Shaken Not Stirred, que lançou na capital a Escola 42, uma escola de engenharia de software. Essa associação, criada em novembro de 2021, assinou um contrato de franchising com a TUMO, e abriu um projeto em Coimbra, com um custo de 250 mil euros – muito inferior ao custo que o projeto teria em Lisboa.

Curiosamente, ainda em 2019, Pedro Santa Clara convidou o co-fundador e diretor geral da Teach For Portugal, Pedro Almeida, para inaugurar um ciclo de debates na sua empresa a que chamou “Shaken Talks”.

Formação intensiva

Os “mentores” da Teach For Portugal são formados com uma academia de verão intensiva, sem remuneração com a duração de oito semanas. Os recrutados deslocam-se à freguesia de Cernache, em Coimbra, onde ficam a habitar durante o período da formação.

Eduardo Couto, um desses recrutados, diz que os portões da casa de jesuítas onde a formação acontece “eram trancados às 22h – mais tarde à meia-noite – e mesmo quem vivia perto do local era obrigado a dormir nas camaratas com outras 12 pessoas”.

Na formação, os recrutados serão informados de que o objetivo da Teach For Portugal é chegar a 10% das escolas portuguesas e é-lhes realizado um “Plano de Desenvolvimento em Liderança”, preenchido pelos tutores de cada recrutado. Na formação, que segundo Eduardo não tem qualquer carácter legal, cada pessoa será obrigada a partilhar informação sobre a sua vida privada e recebe uma nota semanal de 0-10 (cujos parâmetros não são claros) e, se na terceira semana a nota for inferior a 5, os recrutados são “convidados a voltar no ano seguinte”.

Eduardo explica ter sido penalizado por “não estar alegre durante o dia”, recusar-se a fazer “biodança e ativações corporais de sorriso de manhã” e “contestar o que quer que seja”. Depois da formação, como noutros casos internacionais da Teach For All, os “mentores” têm um contrato de dois anos, ao fim do qual é oferecido um valor de 2.000 euros. Segundo Eduardo, quem continuar a trabalhar numa escola é “obrigado a partilhar questões da vida pessoal” com os tutores da Teach For Portugal.

Também Marco Seabra, agora professor em Lisboa, participou na formação da Teach For Portugal. Critica principalmente o facto de fazer uma formação que ocupa o dia inteiro, sem remuneração, mas admite que o estilo da formação também é bizarro.

“Há uma pressão, como se fosse uma seita, para te abrires e contares os teus traumas, como se depois fossem resolver os teus problemas”, conta. “Tens de estar sempre feliz” e “alinhado com as ideias da formação”, porque senão “não estás preparado para ir fazer o trabalho”.

Marco explica também que não há flexibilidade para enquadrar situações de emergência pessoal ou familiar na formação. “Uma das pessoas tinha um familiar doente de quem tomava conta na área de Coimbra, e queria ficar em casa, mas foi feita uma pressão enorme para ficar a dormir no espaço, e ela foi obrigada a dormir três dias por semana lá”.

“Noutro caso, havia uma pessoa que tinha uma relação familiar problemática, recebeu uma chamada e teve um desconcerto, mas foi criticada por faltar às sessões e na avaliação foi criticada por ter ficado emocionada”, diz.

O agora professor diz que a formação tem algumas coisas úteis sobre a preparação da sala de aula, mas que sobre as complexidades de lidar com crianças no ensino, não se disse nada. “Sobre a diversidade, a capacidade de lidar com alunos com diferentes níveis de aprendizagem”, a formação “não ajuda em nada”.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.