A 24 de março, a Organização das Nações Unidas apontava “motivos razoáveis” para considerar a atuação do Estado israelita em Gaza como um genocídio. Na verdade, estamos a assistir a um genocídio em direto (quando as televisões decidem mostrar o que realmente se passa). A guerra em direto não é uma novidade. A invasão norte-americana ao Iraque no início do século foi um primeiro ensaio do que viria a ser um formato de narrativa informativa onde, por vezes, o facto das imagens se repetirem vezes sem conta desumaniza o espectador, ao invés de o alertar contra a política das armas e das bombas. Perante o atual ataque hediondo orquestrado pelo governo de extrema-direita liderado por Benjamin Netanyahu os principais decisores políticos, ao mesmo tempo que lamentam “a situação”, desculpam sempre o papel criminoso de Israel.
A revolta contra o atual estado de coisas e o encolher de ombros por grande parte dos países do norte ocidental fez brotar, nos Estados Unidos da América, enormes movimentações de denúncia do papel do Estado sionista. Há um povo a ser dizimado e foi isso que os estudantes norte-americanos quiseram dizer ao mundo. Também no Estado espanhol, a luta estudantil deu frutos. Todas as 76 universidades públicas e privadas anunciaram que vão suspender acordos com faculdades e centros de investigação israelitas caso o governo de Telavive não acabe de imediato com a guerra em Gaza. Noruega e Irlanda seguiram-lhes o exemplo. A onda estudantil pró-Palestina chegaria a Portugal dias mais tarde.
Solidariedade com Palestina
Universidades de Espanha suspendem parcerias com Israel. Em Lisboa chamam a polícia para reprimir estudantes
A 8 de maio, Lisboa foi palco de mais uma ação coletiva estudantil. A ação ficou marcada pela detenção dos estudantes, após repressão por parte da PSP. O caso criou burburinho na opinião pública, mas nada que obrigasse todos os atores políticos a tomarem uma posição clara sobre a intervenção das autoridades policiais dentro de uma faculdade (mais uma vez). Beatriz Realinho é estudante do mestrado de Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) e fala-nos um pouco da experiência das últimas semanas a este respeito:

As ocupações da FPUL, FCSH e FBAUL denunciam a neutralidade e a imparcialidade das instituições de ensino, reivindicando uma academia crítica e que recuse a cumplicidade com Israel. As estudantes exigem uma tomada de posição pública das instituições de ensino superior em solidariedade com o povo palestiniano e o fim das relações e parcerias institucionais com empresas que lucram com o sistema colonial de Israel. Reivindicamos ainda o boicote económico, cultural e académico com Israel, o reconhecimento do Estado da Palestina pelo Governo Português e o cessar-fogo imediato.
Quanto à ação da polícia, chamada pelos responsáveis das instituições, infelizmente estas ações violentas na polícia no seio estudantil não são de agora, nos últimos dois anos as direções de instituições de ensino têm vindo a quebrar o legado das instituições de ensino superior como lugares de liberdade e democracia, com chamadas de forças de segurança para dentro de escolas e faculdades para reprimir de forma abusiva ações pacíficas de estudantes.
Solidariedade
Da Palestina a Nova Iorque: Globalizando a Intifada
Gonçalo Pessa e Ricardo Martín Coloma
Enquanto estudantes, continuamos a defender que o espaço das nossas faculdades devem ser locais de aprendizagem, de igualdade, de transformação social e de imaginação política e continuaremos a exercer o nosso direito ao protesto.
As ações têm sido pensadas dia-a-dia através da realização de Assembleias de Estudantes. Continuaremos a luta através de reivindicações e ações que seguem o exemplo dos movimentos estudantis por todo o mundo em solidariedade com o povo palestiniano. As jovens estudantes são hoje a vanguarda internacionalista na solidariedade com a luta de libertação da Palestina.
Polícia fora da Universidade!
A relação da autonomia universitária com as autoridades policiais tem um contexto histórico em Portugal. Até ao 25 de Abril, eram comuns as cargas policiais sobre estudantes, sempre que o regime fascista entendia conter as revoltas. Aconteceu na crise académica de 1962 em Lisboa, na crise académica de 1969 em Coimbra, na repressão policial no festival de Coros (Porto, 1972) e em praticamente toda a segunda metade do Estado Novo, quando os estudantes se afirmaram enquanto sujeito de transformação social. Essa memória da brutalidade policial sobre os estudantes construiu, em grande medida, um consenso no pós 25 de Abril: a polícia não tem lugar no perímetro académico. Esse consenso foi rasgado em 2016 e 2017, quando, chamada pelo Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), a PSP voltou a ocupar as escadas principais desta faculdade, intimidando e empurrando estudantes em protesto. A este respeito, é imperativo lembrar Ribeiro Santos, estudante e militante do MRPP assassinado pela PIDE numa reunião de estudantes em 1972. A memória não é eterna e, rapidamente, o que era inimaginável aconteceu; o que era excecional, rapidamente se tornou regra. A autoridade não tem autoridade para atuar como atua.
Também no dia 8 de maio, a academia portuense organizou uma assentada em frente à reitoria, na Praça dos Leões. Durante a tarde, dezenas de ativistas ocuparam a praça. Uma delegação da organização foi recebida por responsáveis da reitoria e apresentou a moção que, dias antes, tinha circulado entre a comunidade estudantil.
Uma semana após a primeira ação de protesto, os estudantes voltaram em força. No passado dia 15 de maio, uma concentração de algumas dezenas de pessoas preencheu a Praça dos Poveiros. A seguir, no jardim da Faculdade de Belas-Artes floriu uma grande assembleia estudantil. A discussão, que se iniciou pelas 19 horas, transferiu-se para o anfiteatro principal da faculdade e só terminou já depois das onze da noite. Ali se delinearam as próximas ações reivindicativas.

António Soares é estudante do Mestrado em Geografia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e é um dos ativistas deste movimento em solidariedade com o povo palestiniano.
O movimento estudantil já começava a organizar-se um pouco por toda a Europa antes do ataque a Rafah, mas penso que este foi o impulsionador que fez aproximar muitos colegas estudantes, professores, pessoal não docente e movimentos da sociedade civil para a causa da palestina e do seu povo, bem como para a ocupação dos espaços das universidades que simbolizam também um espaço de resistência que ainda não está ao acesso de todos. Além disso, a Naqba faz 76 anos e, com todos os acontecimentos recentes, esta efeméride ganha uma dimensão que não teve (infelizmente) noutras ocasiões.
A academia portuense está agora a começar a organizar-se com mais força. Até aqui existiam movimentos sociais na cidade do Porto já em prol da luta palestiniana, um pouco na onda das lutas internacionais nas faculdades, começou a introduzir se esta luta no seio da universidade e das suas faculdades. A universidade do Porto e alguns dos seus centros de investigação estão ligados ao Estado de Israel e a empresas israelitas. Por isso, essas ações são cruciais para promover o boicote. Em Barcelona essas ocupações conseguiram o fim dos acordos com os israelitas, na UP estamos agora a começar. Prevejo muita união de toda a comunidade académica.
No mesmo dia 15, dia da Nakba, o movimento “Academia pela Palestina Braga” pôs em marcha uma agenda de atividades que se iniciaram pelas 17 horas com uma concentração estudantil, a que se seguiu uma assembleia de estudantes e ainda um jantar comunitário com sessão de cinema e debate ao longo da noite. Teresa Amorim, uma das ativistas e organizadoras deste movimento fala-nos da importância de construção destes espaços de contra corrente:
Temos tido uma receptividade positiva às nossas ações de diferentes pessoas da comunidade académica da Universidade do Minho, além de estudantes, daí o nome do nosso coletivo. Temos ex e atuais estudantes nacionais e internacionais, professores/as, investigadores/as a participar na organização e dinamização das nossas ações. Somos um grito de revolta que abana as silenciosas estruturas da Universidade. Até agora, o genocídio perpetrado na Palestina é um não assunto na academia. Isto é o mínimo que podemos fazer.

A ideia de formar o Coletivo Academia Pela Palestina surge em novembro durante uma das vigílias que tem havido todas as sextas-feiras em Braga, das dez à meia-noite, reunindo estudantes, ex-estudantes e ativistas de vários movimentos sociais de Braga. Sentimos todas a necessidade de criar um movimento de solidariedade e resistência com o povo palestiniano que abrangesse não só a comunidade da UMinho, mas também as pessoas bracarenses. Fizemos a nossa primeira ação no dia 23 de novembro com um protesto estudantil junto ao Prometeu na UMinho, em seguida desenrolámos também nos campus uma lista com nomes de pessoas assassinadas no genocídio e participámos ativamente na manifestação nacional pela libertação da Palestina. Depois da greve estudantil convocada para dia 15 a assinalar a Naqba, as estudantes presentes decidiram manifestar-se no dia 25 de maio.
Miguel Martins, representante dos estudantes no Conselho Geral da Universidade do Minho, levantou o tema de Gaza numa das reuniões do órgão:
Quando propus no Conselho Geral da Universidade do Minho um voto sobre a situação em Gaza, tive como objetivo levar o órgão máximo da UMinho a tomar uma posição concreta. Aquando da apresentação deste Voto, Israel já tinha destruído todas as Universidades de Gaza, assassinado centenas de estudantes e dezenas de professores e académicos. Perante o genocídio em direto, a Universidade deveria pronunciar-se.
Entrevista
“Perante invasão de Rafah, TPI deve levar a sério o seu mandato”
porJorge Costa
Na discussão no Plenário, houve bastante resistência por parte da Presidente do Conselho Geral, Joana Marques Vidal (ex-Procuradora Geral da República) e de outros elementos. Senti que havia um certo receio que o CG se pronunciasse - o que não tem qualquer sentido, dado que há autonomia para tal.
Para minha surpresa, quando já era consensual avançar com um texto, a Presidente da Associação Académica ainda afirmou que se deveria fazer um comunicado contra todas as guerras que existem no mundo, o que esvaziaria o comunicado relativo à Palestina, ignorando o genocídio. Essa proposta não teve seguimento. Infelizmente, o comunicado continua por redigir, dado que já houve uma reunião do Plenário e não foi apresentado. Na próxima reunião do órgão retomarei este tema, para que haja pronúncia como aquando do início da guerra na Ucrânia. Ou só se irá pronunciar quando já não houver Palestina?

Esta reportagem estará sempre incompleta. Neste preciso momento, os estudantes do Porto ocupam a Faculdade de Ciência da Universidade do Porto (FCUP) há mais de 24 horas. Solicitam comida, bebida e querem manter-se lá, até serem expulsos. A sua resistência é a voz do povo palestiniano que, neste momento, está a ser morto, dia após dia, hora a hora. Há um povo que está a desaparecer, pelas mãos de um criminoso fascista.
Que a memória do Holocausto não nos confunda: o que devemos retirar dela não é a justificação para toda e qualquer ação do Israel, mas o contrário disso. Essa História e essa Memória sublinham a importância de não deixar que o fascismo passe. O genocídio é a resposta dos que não imaginam mais nada a não ser o fim da Humanidade como constelação de cores, territórios, geografias, géneros, idades, experiências, povos.