Em 1967, na sequência da ‘guerra de 6 dias’, Isaac Deutscher, eminente historiador marxista e judeu ideologicamente antissionista, deu uma entrevista à New Left Review em que ele proferiu a frequentemente citada parábola seguinte:
“Um homem saltou uma vez do último andar de uma casa em chamas, onde já tinham morrido muitos membros da sua família. Conseguiu salvar a sua vida; mas, ao cair, bateu numa pessoa que estava lá em baixo e partiu-lhe as pernas e os braços. O homem que saltou não teve escolha; no entanto, para o homem com os membros partidos, ele foi a causa da sua desgraça. Se ambos se comportassem de forma racional, não se tornariam inimigos. O homem que escapou da casa em chamas, depois de recuperado, teria tentado ajudar e consolar o outro sofredor; e este último poderia ter percebido que era vítima de circunstâncias sobre as quais nenhum deles tinha controlo.
Mas vejam o que acontece quando estas pessoas se comportam de forma irracional. O homem ferido culpa o outro pela sua miséria e jura fazê-lo pagar por ela. O outro, com medo da vingança do aleijado, insulta-o, dá-lhe pontapés e bate-lhe sempre que se encontram. O homem pontapeado jura de novo vingança e é de novo esmurrado e castigado. A amarga inimizade, tão fortuita no início, endurece e acaba por ensombrar toda a existência dos dois homens e envenenar as suas mentes.”
(Isaac Deutscher "The Arab-Israeli War", New Left Review (23 Junho, 1967)
Na altura - logo a seguir a guerra e o início da ocupação da Cisjordânia, os Montes de Golan, Gaza e Jerusalém oriental - esta perspetiva de Deutscher era conveniente e parecia mais que razoável e progressista. Há apenas 22 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, a criação do Estado de Israel, supostamente como abrigo nacional para o povo judeu martirizado, ainda parecia, para muitos, necessária, inevitável e justa - devido à sequência histórica de circunstâncias trágicas que conduziram à fuga desesperada da Europa entre 1932 e 1948 para Palestina de aproximadamente 370.000 refugiados e sobreviventes judeus do Holocausto. (Reza a Declaração de Independência proclamada no dia 14 de Maio de 1948: “O Holocausto nazista, que engolfou milhões de judeus na Europa, provou novamente a urgência do restabelecimento do Estado Judeu, que resolveria o problema da falta de um lar para os judeus, abrindo os portões para todos os judeus e elevando o povo judeu à igualdade na família das nações.”) Ainda hoje esta alegoria sossega a consciência de muita gente de boas intenções e incorpora as bases da legitimação da realização do projeto sionista da criação de um estado judeu na Palestina.
Pessach
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Mas há numerosos problemas com esta imagem do conflito e do seu enquadramento de reações mais ou menos racionais ou irracionais aos desastres sofridos pelas partes.
É uma narrativa parcial, que omite o contexto que precede ao salto da primeira vítima do incêndio e não toma em conta as falhas dos bombeiros. Inferimos imediatamente da citação de Deutscher que o incêndio é o Holocausto na Europa. No entanto, o contexto esquecido é o colonialismo britânico e a colonização sionista na Palestina mandatária; os bombeiros são as Nações Unidas, cujo plano de partição da Palestina, em vez de extinguir as chamas, foi a faísca de mais fogo.
Trata-se infelizmente de uma narrativa que foi construída no contexto do silenciamento da voz e apagamento da experiência do povo indígena da terra palestiniana. É uma narrativa que escamoteia o projeto colonizador sionista na sua origem, cuja pretensão a um estado judaico implicava a deslocação e expulsão da maioria dos habitantes da terra. É uma narrativa que ignora a intencionalidade estratégica dos fundadores sionistas do estado de Israel na conduta da sua ‘guerra de independência’, que, sobretudo através do ‘Plano Dalet’, provocou a Naqba palestiniana, ou seja, a expulsão de até 750.000 habitantes árabes e a destruição de mais que 400 aldeias. Como refere Rachid Khalidi na sua crónica sobre a guerra de 100 anos contra a Palestina (título na versão original em inglês), a Naqba representa uma viragem na história da Palestina de um país maioritariamente árabe para um país com uma maioria judia substantiva através da limpeza étnica e o roubo da propriedade abandonada pelos refugiados.
No rescaldo da guerra de 1967, a Naqba aprofundou-se quando o Estado israelita conseguiu ocupar o que restava da Palestina, que tinha estado nas mãos da Jordânia, da Síria e do Egipto. Seguiu-se à guerra mais um movimento ilegal de expropriação e colonização. Esse movimento, iniciado estrategicamente pelo governo trabalhista vitorioso, transformou-se nas últimas décadas num movimento nacional religioso fanático com a missão messiânica de expulsar a restante população palestiniana e ‘reclamar’ toda a terra da Palestina como o Grande Israel. Este movimento maligno, juntamente com o arrogante e belicista partido Likud, detém atualmente o domínio do Estado israelita. A realidade da Naqba hoje é a consolidação de um regime de ocupação, apartheid e bloqueio e, mais recentemente, a perpetração de uma guerra, de uma violência sem precedentes, contra o povo de Gaza, que Netanyahu e o seu governo de fascistas esperam que produza mais uma vaga de expulsões e morte.
O Isaac Deutscher foi um grande historiador e pensador; certamente, se tivesse vivido, ele teria feito uma autocrítica após a leitura dos trabalhos dos novos historiadores (Walid Khalidi, Benny Morris, Ilan Pappe, etc.) que desde os anos 1980s expuseram as limitações da sua parábola.
Não é (e nunca seria) a nossa intenção aqui demonizar ou culpabilizar a massa de judeus refugiados do antissemitismo e da perseguição e barbárie na Europa – entre os quais encontraram-se parentes nossos. Esses foram efetivamente vítimas de um genocídio e nenhum das potências europeias - nem os Estados Unidos - lhes proporcionou alternativas adequadas. (Além de mais, as potências chaves foram ao longo do tempo promotores de um projeto neocolonial e imperialista para o Médio Oriente em que o Estado de Israel, armado até os dentes, é um pivot fundamental; simultaneamente os Estados Unidos tornou-se o grande defensor das piores tendências políticas israelitas, inclusive promovendo emigração de União Soviética e dos EUA para Israel de gente que vieram a servir a expansão de colonatos nos territórios ocupados.) Mas, ao nosso ver, o não reconhecimento pelo estado e povo de Israel (e dos seus apoiantes e aliados) dos factos inegáveis do Naqba - e a ausência de reparações e compensações significativas - é a fonte de uma cegueira coletiva voluntária que tem permitido a governos sucessivos recusar resolver o conflito, aprofundar a ocupação do povo palestiniano, continuar um projeto de apropriação da Palestina e justificar o bloqueio de Gaza e os crimes de guerra atuais. Nós, ao contrário, reconhecemos o carácter colonial do sionismo e do estado de Israel e a realidade da Naqba palestiniana que esteve na base da fundação do estado. Também reconhecemos que a Naqba de 1947-48 constituiu o ponto de partida de um genocídio prolongado no tempo, realizado por etapas de que o massacre atual em Gaza é o clímax.
É evidente que não podemos voltar atrás e alterar o curso da história. As soluções para o futuro da Palestina e Israel, e as formas de reconciliação pelas injustiças cometidas, terão de ser encontradas reconhecendo as realidades do nosso mundo de hoje. Mas, não é o nosso objetivo hoje propor soluções que, alias, terão de emergir na luta e nas negociações eventuais pela paz. Hoje, as mais evidentes realidades são uma guerra indefensável, assassina e fútil em Gaza, em que mais uma vez Israel se ultrapassa na sua criminalidade, nas suas infrações às leis de guerra, ao direito internacional humanitário ao mesmo tempo se acelera e se exacerba a violência dos colonos e do exército na Cisjordânia. As realidades de hoje necessitam de medidas urgentíssimas: um cessar-fogo imediato e o provisionamento de toda a ajuda humanitária para salvar a população de Gaza e libertação dos reféns. É por isso que estamos aqui a exprimir a nossa solidariedade com o povo palestiniano neste Dia da Naqba.