O longo simulacro do Governo na negociação com os médicos

01 de novembro 2023 - 12:14

O Governo arrasta há dois anos a negociação com os médicos. Conheça as manobras de Manuel Pizarro face às soluções propostas pelos médicos para resolver o impasse do SNS.

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Foto de António Pedro Santos, Lusa.

O Governo do PS está empenhado em transferir para os privados cada vez mais recursos e utentes, mas a solução passa por trazer para o SNS mais profissionais. Isso só será possível com melhoria de salários e de condições de trabalho. Para que não continuem a sair médicos do SNS, para que não continuem a emigrar, para que os concursos de admissão não continuem a ficar desertos.

É por tudo isto que os sindicatos têm lutado nos últimos meses: condições para termos mais médicos e melhor SNS. Porque o SNS não pode estar alicerçado em milhões de horas extraordinárias nem pode desbaratar centenas de milhões em prestadores de serviços.

Que propõem os médicos? Aumentos salariais para fixar e atrair profissionais; mais profissionais para que acabe o recurso a horas extra ilegais; a redução da carga de trabalho para que se aumente a segurança clínica; a diminuição do horário obrigatório em urgência para que haja mais tempo para consultas de especialidade e para cirurgias.

Com estes compromissos no centro, foi assinado em 2022 um protocolo negocial entre Ministério da Saúde e sindicatos médicos. Desde então, o Governo não tem feito mais do que simular negociações e boicotar reuniões. Cá fora, diz que está muito disponível para acordos; lá dentro, não assume compromisso nenhum. Meses a fio de simulacros fazem crer que o objetivo do Governo não é negociar o que quer que seja. É tentar passar para os médicos a culpa do caos que se vive no SNS quando essa culpa é única e exclusivamente do Governo.

Veja-se:

Só em novembro de 2022 (meses depois da assinatura do protocolo negocial) é que o Governo fez a primeira reunião com os sindicatos médicos. Seguiram-se reuniões consideradas “inúteis” pelos sindicatos, onde nada de concreto foi apresentado pelo Governo. Quando algo foi pela primeira vez apresentado, o Governo piorava as condições de trabalho, ao aumentar a idade para realização de urgências e o número de utentes por cada médico de família.

Após quase um ano de reuniões, em junho de 2023, o Governo não tinha apresentado nada sobre grelhas salariais, acordo coletivo de trabalho, alterações de carreira, melhoria das condições de trabalho. Só dois dias antes do fim do prazo negocial é que aparece algo de concreto: qualquer melhoria de remuneração seria sob a forma de bónus, suplementos e produtividade. Nenhuma melhoria de salário: pagar um pouco mais, só se os médicos trabalhassem muito mais.

Desde então o Governo tem insistido nesta toada. Os médicos propõem limitação das horas extra, redução do horário de trabalho e aumento de salários. O Governo ignora e contrapõe com o regime a que chama de "dedicação plena" e que é um mero suplemento que obrigaria à perda do descanso compensatório ou ao aumento das horas extraordinárias obrigatórias. O que o Governo tem proposto é que os médicos sejam obrigados a trabalhar o equivalente a 14 meses por ano para alcançar algum tipo de suplemento.

Inaceitáveis foram também as últimas propostas do Ministério da Saúde, que pretende fazer depender a redução do horário de trabalho e a redução do trabalho em urgência da aplicação de métricas que exigem mais trabalho aos médicos. 

O que é exigido pelos profissionais é que o Governo contrate mais quadros para o SNS e não que aumente a carga de trabalho sobre quem já está exausto.

O que está em causa é a sobrevivência do SNS. Como se tem visto com os encerramentos constantes de urgências e de outros serviços, o SNS está preso por arames e só tem funcionado porque os seus profissionais têm aceitado executar milhões de horas extra. O governo recusa investir nos trabalhadores do SNS. Recusa aumentar os salários base e insiste numa visão produtivista da saúde. 

O Governo prefere impor o encerramento de urgências do que chegar a um acordo com os médicos. Um acordo que significaria mais médicos no SNS, mais segurança clínica e redução de listas de espera.

Cronologia das propostas apresentadas pelo Governo:

Julho 2022 – protocolo negocial entre MS, FNAM e SIM. Foi acordado incluir no protocolo matérias como regime de dedicação, organização do trabalho médico e grelhas salariais. Conclusão do processo até final de junho de 2023.

Agosto/setembro 2022 – demissão de Marta Temido e posse de Manuel Pizarro.

Novembro 2022 – Só a 9 de novembro há a primeira reunião para dar cumprimento ao protocolo negocial assinado em julho. Ministério afirma querer negociação célere e chegar a acordo em matérias para a valorização do trabalho médico. Numa primeira fase, a negociação é centrada no acordo coletivo (ACT), na organização do trabalho médico e na valorização do trabalho em urgência. Para uma segunda fase, a decorrer no primeiro semestre de 2023, a negociação das grelhas salariais. 

28 de novembro 2022 – FNAM considera a reunião como uma “desilusão”. Refere avanços em normas particulares de organização e disciplina do trabalho, mas sublinha a falta de vontade do governo em abordar questões como grelhas salariais e trabalho extraordinário. 

15 de dezembro de 2022 - É constituído um grupo de trabalho para a revisão das grelhas salariais e outro grupo de trabalho para os Cuidados de Saúde Primários, nomeadamente para o redimensionamento das listas de utentes. 

9 de janeiro de 2023 – Médicos falam numa “perda de tempo” e numa “inutilidade”. Nenhuma medida concreta apresentada pelo Governo, nomeadamente sobre grelhas salariais e salário base, apenas intenções de pagar por mais produtividade.

Fevereiro de 2023 - nova reunião negocial. No final, “continuamos no mesmo impasse. Estas reuniões começam a revelar-se inúteis. Estamos a 1 de fevereiro de 2023 e não temos ainda nenhuma medida concreta que resolva os problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”. Governo altera a ordem de trabalhos da reunião e não seguir o protocolo negocial.

2 de março de 2023 - “A FNAM sai de mais uma reunião negocial praticamente como entrou: sem receber proposta de grelhas salariais e quase sem avanço nas normas particulares de organização do trabalho médico. Houve, no entanto, uma surpresa: o Ministério da Saúde apresentou duas propostas de perda de direitos e de piores condições de trabalho para os médicos, que a FNAM considera absolutamente intoleráveis: 1) fim do limite das listas de utentes por médicos de família, o que representaria um retrocesso na proximidade dos cuidados de saúde primários e na relação entre os médicos e os seus utentes, à custa da exaustão dos médicos de família; 2) aumento do limite de idade dos médicos para o trabalho noturno, de 50 para 55 anos, e do trabalho em serviço de urgência, de 55 para 60 anos.

8 e 9 de março de 2023 - Greve nacional de médicos marcada pela FNAM

16 de março - Ministério desmarca reunião com os Sindicatos, a terceira consecutiva.

31 de março - O Governo mostra abertura para finalmente negociar a revisão das grelhas salariais e um regime de dedicação exclusiva. Segundo a FNAM: “após meses de negociações, é assinalável que o Ministro da Saúde, Manuel Pizarro, após a greve médica de 8 e 9 de março, tenha estado presente e considerado incontornável a valorização do trabalho médico e se tenha mostrado disponível para negociar os princípios do regime de dedicação exclusiva, opcional e majorada, defendida pela FNAM”. 

24 de abril - Ministro volta reitera disponibilidade para avanços, mas não se compromete com nenhuma medida concreta. A FNAM relembra as propostas que tem enviado e pede mais profissionalismo na preparação das reuniões, uma vez que o Ministério da Saúde não envia ordens de trabalho, documentos ou sequer atas das reuniões que, desde fevereiro, passou a realizar em separado com os dois sindicatos médicos.

23 de maio – O Ministério da Saúde voltou a não apresentar proposta de grelhas salariais, assunto fundamental para o sucesso do concurso para recém-especialistas. A FNAM responder com a escusa de realização de horas extraordinárias além das 150 horas anuais obrigatórias, e com períodos de greve durante o verão.

20 de junho – Governo adia reunião marcada para dia 20 de junho, a 11 dias do fim do protocolo negocial.

29 de junho – A dois dias do fim do protocolo negocial, o Ministério da Saúde volta a não apresentar valores para as grelhas salariais nem proposta de dedicação plena. A FNAM declara-se disponível até ao último minuto, mantém as greves para 5 e 6 de julho e marca nova greve para agosto.

30 de junho – Um ano depois do início do processo negocial, o Governo apresenta a primeira proposta concreta aos sindicatos. No entanto, ao invés de responder sobre as grelhas salariais e tempo de serviço, insiste em regimes de suplementos salariais e bónus, dependentes de critérios de produtividade cuja concretização não depende diretamente da ação dos médicos. 

Novas reuniões para 7 e 11 de julho – Impasse. Ministério pede nova reunião para poder apresentar proposta.

21 de julho – Não há acordo. “Ao contrário do que o Ministro da Saúde disse no debate do Estado da Nação, não é verdade que as condições das Unidades de Saúde Familiar de modelo B se vão generalizar, porque propõe, na verdade, a generalização de um modelo “B” de barato, com condições inferiores e que não estão capazes de servir os utentes, nem de resolver a falta de médicos de família para 1,7 milhões de pessoas. Em paralelo, é igualmente inaceitável que, ao invés de discutir a melhoria de condições para os médicos hospitalares, o Ministério da Saúde pretenda agravar a realidade existente, impondo a perda de direitos, nomeadamente a limitação ao descanso compensatório, que além de gravosa para os médicos, coloca a segurança dos doentes em risco”.

28 de julho – Governo envia propostas por escrito, a menos de 24h da reunião. 

1. Manutenção de jornadas semanais de trabalho de 40 horas (em vez de 35 horas), com aumento da jornada diária de trabalho para 9 horas, acrescido do aumento ilegal do limite anual do trabalho suplementar para 300 horas (em vez das atuais 150 horas) o que obrigaria os médicos a trabalharem mais 4 meses comparativamente com os outros profissionais de saúde;

2. Aumento irrisório do salário base para a generalidade dos médicos, variando entre +0,4% e 1.6%;

3. Novo regime de dedicação que não valoriza igualmente todos os médicos, com valor-hora do salário base diferente consoante a área profissional e contempla perda de direitos dos médicos, colocando os doentes potencialmente em risco, ao alterar os descansos compensatórios após o trabalho noturno nos médicos hospitalares, ou condicionando a prescrição de exames e receitas nos cuidados de saúde primários;

4. Manutenção das 18 horas de urgência do horário normal, não sobrando tempo para as consultas e cirurgias que os doentes tanto precisam;

5. Inclusão do trabalho ao sábado para atividade programada;

FNAM rejeita a proposta do Governo e apresenta contraproposta:

1. Aumento salarial digno, transversal, para todos os médicos que compense a perda do poder de compra da última década e a inflação;

2. Horário semanal de 35 horas;

3. Reposição das 12 horas semanais do horário normal em serviço de urgência;

4. Reposição do regime de dedicação exclusiva, opcional e devidamente majorada;

5. A inclusão do internato médico no 1.o grau da carreira médica”.

Agosto 2023 – 5ª reunião extraordinária. Governo mantém a sua proposta, ignora a dos médicos.

7 de setembro – 6ª reunião extraordinária. “A FNAM não pode deixar de denunciar a  indisfarçável falta de vontade política em resolver o problema dos médicos e do SNS, pois nem sequer se dignaram a cumprir com as regras básicas em sede de negociação. Falharam uma vez mais o envio da Ordem de Trabalhos e dos documentos de trabalho para esta reunião, que se comprometeram a enviar, procurando no próprio dia obter resultados que expressam unicamente a sua visão e que não incorporaram qualquer uma das principais reivindicações sindicais”.

11 de setembro – não são incorporadas as propostas dos sindicatos, o Governo anuncia que não havendo acordo vai avançar unilateralmente com propostas legislativas sobre dedicação plena, USF, etc., sem que os sindicatos saibam ao certo o que aí consta. Aqui análise detalhada da proposta do Governo e das reivindicações dos médicos: 

Greves e manifestação em outubro.

MS convoca sindicatos para reunião a 12 de outubro – Ministério mostra abertura para recuar em algumas propostas e chegar a acordo. Limita-se a apresentar uns slides, onde não inclui o internato na carreira médica e propõe aumentos salariais muito baixos para alguns escalões (2,9%). Para disfarçar, mistura outras questões como o IRS Jovem e a devolução de propinas. De acordo com a FNAM, a dedicação plena proposta pelo Governo prevê um regime horário de 35+5h (ou seja, 40h), uma jornada de trabalho de 9 horas, 250 horas extra obrigatórias e o fim do descanso compensatório.

19 de outubro – Apresentados apenas tópicos dos diplomas da Dedicação Plena e das Unidades de Saúde Familiar, previamente aprovados em Conselho de Ministros, que mantêm o aumento do limite anual do trabalho suplementar de 250 horas, o aumento da jornada diária de trabalho de 9 horas, o fim do descanso compensatório após o trabalho noturno e a inclusão do trabalho ao Sábado para os médicos que não fazem Serviço de Urgência. Nas USF, alguns suplementos remuneratórios ficam dependentes do número de meios complementares de diagnóstico e prescrições farmacológicas. 

27 de outubro – Nova reunião marcada para dia 29, com promessas de abertura negocial por parte do Ministério.

29 de outubro – Governo propõe que generalização das USF dependa de aumento do horário de funcionamento; que as 35h dependam da perda do descanso compensatório; que a redução do horário de urgência dependa da redução das horas extra. Ou seja, que todas as reivindicações dos médicos fiquem a depender de mais carga de trabalho e perda de direitos por parte dos médicos.