As ministras do Ambiente de Portugal e Espanha, que têm nos últimos meses negociado sobre a gestão partilhada de recursos hídricos entre os dois países, anunciaram a conclusão de um acordo, cujos detalhes seriam conhecidos no dia 30 de setembro. No contexto das comemorações dos 25 anos da Convenção de Albufeira, o novo acordo colmataria as lacunas e as irregularidades que têm causado tensões nos últimos anos. Mas as negociações acabaram por culminar apenas no que a ministra Graça Carvalho apelidou de “um princípio de acordo” em relação ao Tejo, Guadiana e Alqueva.
Os problemas na gestão conjunta de água têm anos. A Convenção de Albufeira serviu como mecanismo para regular um regime de caudais a serem mantidos nos rios que fluem de Portugal para Espanha. As negociações atuais circulam dois pontos principais. O primeiro é a regularização da captura de água por parte dos dois países no rio Guadiana, a jusante do Alqueva. A segunda é a definição de caudais mínimos diários para os rios.
Em entrevista ao Esquerda, Rui Cortes explica os contornos atuais das negociações e porque é que são insuficientes para Portugal. Rui Cortes é militante do Bloco de Esquerda, membro do #MovRioDouro e professor catedrático da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Seca
Duas décadas depois, Espanha e Portugal chegam a acordo sobre uso de água do Alqueva
Está quase a ser firmado um acordo entre as ministras do Ambiente de Portugal e de Espanha sobre a gestão dos caudais e a distribuição de água entre os dois países. Da pouca informação que há sobre os contornos do acordo, já dá para fazer alguma avaliação?
Aquilo que saiu até agora representa um acordo muito parcelar porque o que está definido e o que se conhece é a possibilidade dos espanhóis retirarem água do Alqueva, como tem vindo a fazer, mas agora a pagar. A ministra poupou-lhes o pagamento devido, que foi estimado em 40 milhões de euros. Foi legalizada essa situação. Por outro lado, foram definidos caudais diários para o Tejo. Estavam definidos como semanais e passam a diários, mas os caudais mantêm-se exatamente os mesmos.
Mas com os caudais semanais, mensais ou anuais pode haver uma irregularidade por parte de Espanha na libertação de água. Nesse sentido, esta solução traz alguma estabilidade, não?
É um aspeto positivo, não vou negar isso. Quando foi assinada a Convenção de Albufeira, em 1999, os caudais eram exatamente os mesmos só que havia um caudal anual. Na altura, bati-me contra isso. Porque inclusivamente criava problemas graves. Tinham de largar 3.500 hectómetros cúbicos no Douro e podiam fazer isso em uma semana, só para satisfazer o caudal, criando problemas de erosão, problemas de cheias do lado português. Agora já caminhamos para os valores diários, o que é, pelo menos no caso do Tejo, positivo. Outra coisa que foi firmada - parece-me que é o aspeto mais relevante – é a retirada de água dos espanhóis da zona do Guadiana, abaixo da reposição do Alqueva.
O que é que essa inclusão no acordo implica?
O Alqueva faz uma reposição de caudal ecológico para o Guadiana e abaixo dessa zona foi permitida a possibilidade dos espanhóis retirarem água, creio que à volta dos 90 hectómetros cúbicos. E Portugal pode retirar também o volume de 30 ou 40 hectómetros cúbicos, apenas de Outubro a Março. Esta situação é grave, porque do lado português o objetivo era garantir a possibilidade de fazer um transvase para a barragem de Odeleite, no Algarve. Aumentar a área regada e satisfazer as reivindicações dos agricultores. O problema é que o Alqueva está a largar um determinado caudal ecológico que depois vai ser utilizado em quantidades elevadíssimas a jusante. Ou seja, o caudal ecológico vai deixar de existir.
Mas o desaparecimento desse caudal ecológico vai ter certamente impactos nos ecossistemas. Que consequências é que isso acarreta?
Vai ter um impacto tremendo no estuário do Guadiana. Com todos os fenómenos de intrusão salina. A retirada de água em grandes quantidades a jusante do Alqueva vai levar inevitavelmente a um impacto tremendo nessa zona. Possivelmente fenómenos de intrusão salina nos lençóis freáticos. Para já é aquilo que se sabe.
Que posição é que as organizações ambientalistas têm tido em todo este processo e face a este acordo?
Isto não tem sido tornado domínio público. As organizações não governamentais deviam ser chamadas a intervir e devia ser analisado o impacto ecológico sobre o estuário do Guadiana. Mas isto não está a ser feito. Estão a ser tomadas medidas independentemente dos danos ambientais que poderem vir a ser causados e sem ouvir as entidades, inclusivamente os autarcas. Desde Vila Real de Santo António até Alcoutim. Isto vai ter influência na qualidade de água. Devia haver realmente acordos a nível das negociações internacionais das cinco bacias internacionais e não acordos um bocado casuísticos para responder a necessidades pontuais que os agricultores da região da Andaluzia querem ver resolvidas.
Negociar caso a caso seria um processo que beneficiaria mais as regiões de cada rio, portanto.
Todas as bacias internacionais devem ter planos conjuntos. Não como acontece em Portugal, em que tens os Planos de Gestão da Região Hidrográfica do lado português, e tens os planos traçados pelas confederações hidrográficas do lado espanhol. E estão completamente desarticulados entre si. Se houvesse uma gestão conjunta, com troca de informação, com monitorização ambiental idêntica, era possível articular as políticas ambientais e sociais em vez de estar a resolver remendos ou à procura de protagonismo de determinadas entidades. Em Portugal, as nossas administrações das regiões hidrográficas perderam a autonomia. O Passos Coelho destruiu as administrações hidrográficas, aliás, destruiu o Instituto da Água e foi tudo centralizado na Agência Portuguesa do Ambiente.
Os caudais que estão a ser acordados são caudais mínimos. Porque é que não são acordados caudais ecológicos?
Essa questão é sempre muito complicada, porque o ideal era de facto ter caudais ecológicos. Estes valores que estão definidos são valores que foram acordados entre Portugal e Espanha, mas sem qualquer base do ponto de vista científico, em termos de caudais ecológicos. Estes são caudais que foram estabelecidos para garantir, do lado português, os usos necessários para as populações, para abastecimento urbano e para a agricultura. E Portugal tem estado numa posição defensiva porque sabe que do lado espanhol existe contestação a estes valores da libertação de água, que não são caudais ecológicos, são caudais que Espanha pode de facto libertar e que nada têm a ver com caudais ecológicos.
O que mais é que fica de fora do acordo?
É importante que se cumpra a libertação dos caudais que estão definidos, mas não é só a quantidade, é também a qualidade. Há uma degradação muito grande na qualidade da água que entra do lado português, porque do lado espanhol a agricultura é muito mais intensiva e a água leva uma grande carga de nutrientes e quando entra no território nacional a qualidade da água é péssima. Isso acontece sobretudo no Douro, no Tejo e no Guadiana. É um aspeto importante que está na Convenção de Albufeira mas que não tem vindo a ser cumprido. É a monitorização da qualidade da água e a definição de determinados patamares de qualidade que devem ser obedecidos. Fala-se muito na quantidade, mas nós estamos a receber água poluidíssima. Espanha pode cumprir os caudais, mas estão a despejar quase uma água de esgoto para o lado português.
Em Portugal, como dizias, há essa impressão geral de que mexer na Convenção de Albufeira será prejudicial para Portugal. Como é que o Estado espanhol tem lidado com a crise de água?
Do lado espanhol, estas questões da água são muito mais fraturantes. Porque a água é um assunto muito mais sério a nível de conflitos sociais do que cá. A carência é muito mais elevada e as utilizações são muito mais intensas. Existe uma grande contestação por parte das populações e por parte dos agricultores, de tal maneira que há manifestações com 70.000 pessoas. E é uma situação um bocado complicada, porque em Espanha existem as autonomias, e esta questão tem que ser negociada também com o Governo da Andaluzia, que não está em sintonia com o Governo central. Esta situação também potencialmente é geradora de conflitos.
O problema da exploração da agricultura de regadio tem sido apontado como uma das causas da seca e da crise de água. Mas é também um problema de mercado, não? Se subíssemos o preço da água para o seu valor real o consumo baixava porque as culturas de regadio deixavam de ser tão viáveis.
Sim. Uma coisa que nós não podemos negar é que todos os regadios são obras públicas em que os agricultores pagam a chamada taxa de conservação e pagam a taxa de uso, mas não pagam a chamada taxa de negociação, que é para a construção de tudo o que são essas infraestruturas. A obra é paga pelos contribuintes. O que acontece é que, por exemplo, as áreas regadas pelo empreendimento do Alqueva pagam menos do que pagam os regantes fora do perímetro do Alqueva, que pagam um valor bastante mais elevado. E no Alqueva está a haver uma concentração da propriedade. As multinacionais estão a investir, a utilizar a água a preços muito baixos e os contribuintes é que estão a pagar.