A queda do regime de Bashar al-Assad insere-se na continuidade dos processos revolucionários iniciados no Médio Oriente e no Norte de África em 2011. O derrube do regime da família Assad, no poder desde 1970, é a acumulação das lutas travadas desde a revolta popular de março de 2011. A ofensiva militar liderada pelos grupos armados da oposição, iniciada em novembro de 2024, deu o seu golpe final algumas semanas mais tarde, em dezembro.
Muitas questões estão a ser levantadas em torno do futuro da Síria e, em particular, sobre quais são as principais ameaças ao estabelecimento de uma sociedade democrática. Alguns comentadores liberais e democráticos, intelectuais e ativistas centraram-se nos feloul ou resquícios do antigo regime, em particular nos sectores militar e de segurança, como a principal ameaça atual para o país. Nas redes sociais, é frequente a menção de um cenário egípcio, relativo ao golpe de Estado liderado por Sisi contra o Presidente Morsi, membro da Fraternidade Muçulmana, em julho de 2013.
Por outro lado, há alguns sectores de comentadores e democratas que são relativamente acríticos ou não são significativamente críticos em relação à atual administração liderada pelo HTS. De um modo geral, atribuem ao grupo salafista credenciais na sua gestão da fase de transição.
Este artigo procura estudar quais são as principais ameaças para um futuro democrático da Síria, que defenda a justiça social e a igualdade para todos no país. Analisará, em primeiro lugar, a ameaça representada pelos remanescentes do antigo regime e, em seguida, examinará a política do HTS de consolidar o seu poder na nova Síria.
Qual era a natureza do regime de Assad?
Em primeiro lugar, é importante analisar qual era a natureza do antigo regime. A família Assad tinha estabelecido um regime despótico e patrimonial na Síria. Este regime despótico e patrimonial era um poder absoluto, autocrático e hereditário, que funcionava através da apropriação do Estado por um pequeno grupo de indivíduos ligados por laços familiares, tribais, sectários e clientelistas, simbolizados pelo Palácio Presidencial liderado por Bashar al-Assad e a sua família. As forças armadas eram dominadas por uma guarda pretoriana (uma força cuja fidelidade é para com os governantes e não para com o Estado) representada pela Quarta Brigada chefiada por Maher al-Assad, como é o caso dos meios económicos e das alavancas da administração. O regime sírio desenvolveu um tipo de capitalismo de compadrio dominado por um pequeno grupo de homens de negócios completamente dependentes do Palácio Presidencial (Bashar al-Assad, Asma al-Assad e Maher Al-Assad), que exploraram a sua posição dominante garantida por este último para acumular fortunas consideráveis. O carácter rentista da economia reforçou também o carácter patrimonial do Estado. Por outras palavras, os centros de poder (político, militar e económico) no seio do regime sírio estavam concentrados numa família e na sua camarilha, os Assad, à semelhança da Líbia de Moammer Qaddhafi, de Saddam Hussein no Iraque ou das monarquias do Golfo. Este facto leva o regime a usar toda a violência à sua disposição para proteger o seu domínio.
A criação do Estado patrimonial moderno começou sob a liderança de Hafez al-Assad, após a sua chegada ao poder em 1970. Construiu pacientemente um Estado em que podia assegurar o poder através de vários meios, como o sectarismo, o regionalismo, o tribalismo e o clientelismo, geridos por redes informais de poder e clientelismo. A isto juntou-se uma repressão severa contra qualquer forma de dissidência. Estes instrumentos permitiram ao regime integrar, reforçar ou enfraquecer grupos pertencentes a diferentes etnias e seitas religiosas. Isto traduziu-se a nível local pela colaboração de vários atores submetidos ao regime, incluindo funcionários do Estado ou do Ba'th, agentes dos serviços secretos e membros proeminentes da sociedade local (clérigos, membros de tribos, homens de negócios, etc.), que geriam localidades específicas. Hafez al-Assad também abriu caminho para o início da liberalização económica, em oposição às anteriores políticas radicais da década de 1960.
A chegada de Bashar al-Assad ao poder em 2000 reforçou consideravelmente o carácter patrimonial do Estado, com um peso cada vez maior de capitalistas amigos. A aceleração das políticas neoliberais do regime conduziu a uma mudança crescente da base social do regime, que deixou de ser constituída por camponeses, funcionários públicos e alguns sectores da burguesia, para passar a ser constituída por uma coligação de regime que tem no seu seio os capitalistas amigos – a aliança de corretores políticos em busca de rendimentos (liderada pela família da mãe de Assad, Makhlouf) e a burguesia e as classes médias altas que apoiam o regime. Esta mudança foi acompanhada pelo enfraquecimento das organizações corporativas tradicionais de trabalhadores e camponeses e das suas redes de patrocínio e pela cooptação, em seu lugar, de grupos empresariais e das classes médias altas. No entanto, este facto não equilibrou nem compensou a sua anterior base de apoio. De um modo mais geral, a crescente natureza patrimonial do Estado e o enfraquecimento do aparelho do partido Ba'th e das organizações corporativistas tornaram as ligações clientelares, tribais e sectárias ainda mais importantes, o que se refletiu na sociedade.
Após a revolta de 2011, a repressão e as políticas do regime basearam-se em grande medida na sua principal base de apoio, antiga e recente: capitalistas amigos, serviços de segurança e altas instituições religiosas ligadas ao Estado. Ao mesmo tempo, recorreu às suas redes de clientelismo através de ligações sectárias, clientelistas e tribais para se mobilizar a nível popular. Durante a guerra, o aprofundamento do carácter sectário e clientelista do regime alauíta impediu grandes deserções, enquanto as ligações clientelares serviram como elementos essenciais, ligando ao regime os interesses de grupos sociais díspares.
A base popular do regime demonstrava a natureza do Estado e a forma como a elite do poder se relacionava com o resto da sociedade, ou mais precisamente, neste caso, com a sua base popular, através de uma mistura de formas modernas e arcaicas de relações sociais, e não através de uma sociedade civil construída e alargada. O regime teve de se apoiar sobretudo em poderes coercivos, que incluíam ações repressivas e a instalação do medo, mas não só. De facto, o regime também podia contar com a passividade ou, pelo menos, com a oposição não ativa de grandes sectores dos funcionários públicos urbanos e, de um modo mais geral, dos estratos da classe média nas duas principais cidades de Damasco e Alepo, embora os seus subúrbios fossem frequentemente focos de revolta. Isto fazia parte da hegemonia passiva imposta pelo regime.
Além disso, esta situação demonstrou que a base popular do regime não se limitava a sectores e grupos oriundos das populações alauítas e/ou das minorias religiosas, embora fossem predominantes, mas incluía personalidades e grupos de várias seitas e etnias que manifestavam o seu apoio ao regime. De um modo mais geral, vastos sectores da base popular do regime, mobilizados através de ligações sectárias, tribais e clientielistas, atuavam cada vez mais como agentes da repressão do regime.
Esta resiliência teve um custo, para além de ter aumentado significativamente a sua dependência de Estados e atores estrangeiros. As caraterísticas e tendências atuais do regime foram amplificadas. Um pequeno grupo de capitalistas amigos expandiu consideravelmente o seu poder, uma vez que grandes sectores da burguesia síria abandonaram o país, retirando maciçamente o seu apoio político e financeiro ao regime. Esta situação obrigou o regime a adotar um comportamento cada vez mais predatório na extração de receitas cada vez mais necessárias à classe empresarial que restava no país. Ao mesmo tempo, as caraterísticas clientelistas, sectárias e tribais do regime foram reforçadas. A identidade sectária alauíta do regime foi reforçada, especialmente em instituições-chave como o exército e, em menor grau, nas administrações estatais. Mas, ao mesmo tempo, entre a população alauíta, as frustrações têm vindo a aumentar nos últimos anos devido ao contínuo empobrecimento da sociedade e às exações das milícias do regime que também a atingia.
De uma forma mais geral, é por isso que considerar o regime como exclusivamente alauíta, apesar da alauitização de algumas instituições, nomeadamente do seu aparelho repressivo armado, não permite compreender a sua dinâmica de poder e o seu sistema de governação. Além disso, o regime não serve os interesses políticos e socioeconómicos da população alauíta no seu conjunto, muito pelo contrário. O número crescente de mortos no exército e noutras milícias era composto por muitos alauítas; a insegurança e as crescentes dificuldades económicas criaram tensões e alimentaram animosidades contra os funcionários do regime entre as populações alauítas.
A queda do regime provou a sua fraqueza estrutural, a nível militar, económico e político. Desmoronou-se como um castelo de cartas. Este facto não é surpreendente, porque parecia claro que os soldados não iam lutar pelo regime de Assad, tendo em conta os seus salários e condições precárias. Preferiram fugir ou simplesmente não combater a defender um regime pelo qual têm muito pouca simpatia, especialmente porque muitos deles tinham sido recrutados à força.
A dependência do regime dos seus aliados estrangeiros tornou-se crucial para a sua sobrevivência, demonstrando a sua fraqueza. A Rússia, o principal patrocinador internacional de Assad, desviou as suas forças e recursos para a sua guerra imperialista contra a Ucrânia. Em consequência, o seu envolvimento na Síria foi significativamente mais limitado do que em operações militares semelhantes em anos anteriores. Os seus outros dois principais aliados, o Hezbollah do Líbano e o Irão, foram dramaticamente enfraquecidos por Israel desde 7 de outubro de 2023. Telavive assassinou os dirigentes do Hezbollah, incluindo Hassan Nasrallah, dizimou os seus quadros com os ataques com pagers e bombardeou as suas forças no Líbano. O Hezbollah está definitivamente a enfrentar o maior desafio desde a sua fundação. Israel também lançou vagas de ataques contra o Irão, expondo as suas vulnerabilidades. Nos últimos meses, aumentou também os bombardeamentos contra posições iranianas e do Hezbollah na Síria.
Com os seus principais apoiantes preocupados e enfraquecidos, a ditadura de Assad encontrava-se numa posição vulnerável. Devido a todas as suas fraquezas estruturais, à falta de apoio da população que governa, à falta de fiabilidade das suas próprias tropas e à ausência de apoio internacional e regional, revelou-se incapaz de resistir aos avanços das forças rebeldes e, cidade após cidade, o seu domínio sobre elas desmoronou-se como um castelo de cartas.
Neste contexto, podemos dizer que o Palácio Presidencial está politicamente morto. A família de Assad abandonou o país, a quarta brigada liderada por Maher al-Assad já não existe como unidade militar organizada e o que restava das suas principais redes de poder, sejam elas capitalistas, religiosas, tribais, etc., tornou-se irrelevante e reduziu-se a um pequeno número de indivíduos sem poder. Entretanto, alguns chefes tribais, líderes religiosos e câmaras económicas acabaram por mudar a sua lealdade para as novas autoridades no poder, simbolizada pela adoção da nova bandeira síria.
Regresso do antigo regime?
Nesta perspetiva, o modelo do golpe de Estado egípcio tem potencial na Síria? Será o antigo regime e os seus remanescentes a principal ameaça para a Síria? Penso que se trata de uma análise problemática. Há duas razões principais que estão interligadas: a diferença de natureza do regime e uma ameaça não pode ser reduzida a indivíduos mas a estruturas de poder.
Ao contrário da Síria, a queda inicial do ditador Hosni Mubarak não significou o fim do regime egípcio. No caso do Egito, o sistema político estava mais próximo de uma forma de neo-patrimonialismo. O nepotismo e o compadrio estavam presentes no regime egípcio através da família Mubarak, e ainda hoje estão presentes no atual regime liderado por Sisi. Por outras palavras, um sistema republicano autoritário institucionalizado com um maior ou menor grau de autonomia do Estado em relação aos governantes, que eram susceptíveis de serem substituídos. De facto, no Estado egípcio, as forças armadas constituem a instituição central do governo e do poder político. Nenhuma família é proprietária do Estado a ponto de fazer dele o que os seus membros desejarem, como no caso do regime sírio da família Assad. O Estado egípcio é, pelo contrário, dominado colegialmente pelo alto comando militar. É por isso que os militares acabaram por se livrar de Mubarak e do seu séquito para salvaguardar o regime em 2011. Gamal Mubarak e os seus comparsas foram expulsos da coligação governamental e as redes do antigo partido no poder, o Partido Nacional Democrático, e o poder do Ministério do Interior foi enfraquecido face às forças armadas.
Do mesmo modo, a chegada ao poder da Fraternidade Muçulmana, com a eleição de Morsi para a presidência em 2012, não significou o fim do regime egípcio liderado pelo alto comando militar. Além disso, Morsi e a Fraternidade tentaram inicialmente formar uma aliança direta com o exército desde os primeiros dias da revolta de 2011, conhecendo muito bem o seu peso político e o seu papel repressivo ao longo de décadas. Desde os primeiros dias da revolução, a Fraternidade actuou como um baluarte contra as críticas e os protestos contra os militares até ao derrube de Morsi, em julho de 2013. Antes disso, denunciou os que protestavam contra o exército como contra-revolucionários e propagadores de sedição. A Constituição de dezembro de 2012, promovida pela Fraternidade Muçulmana, continuou a proteger o orçamento militar do controlo parlamentar e a garantir o poder das forças armadas. Morsi e a Fraternidade opuseram-se e até reprimiram as mobilizações populares e da classe trabalhadora no Egito e defenderam o exército. De facto, Morsi nomeou Sisi como chefe do exército, sabendo perfeitamente que este tinha prendido e torturado manifestantes.
Apesar dos esforços de colaboração da Fraternidade com o exército, este derrubou Morsi e reprimiu maciçamente o movimento da Fraternidade Muçulmana e todas as formas de oposição, incluindo militantes de esquerda e democratas. No final, o exército e a Fraternidade representavam diferentes alas da classe capitalista, com diferentes apoiantes regionais, que não conseguiram encontrar um acordo. O exército, muito mais poderoso, acabou por decidir afirmar o seu domínio ditatorial direto, em detrimento de todos no Egito. Sisi criou o regime mais repressivo a que o Egito assistiu nas últimas décadas, um regime neoliberal ditatorial que aplicou de forma brutal todas as recomendações de austeridade do FMI, conduzindo a um empobrecimento maciço e a uma enorme inflação.
Neste contexto, em nenhum momento e até hoje, o centro do poder no Egito foi destituído, muito pelo contrário. No caso da Síria, como já foi explicado, as estruturas de poder ligadas ao Palácio Presidencial já não existem, pelo que as comparações com o cenário egípcio não são úteis.
Dito isto, os indivíduos do antigo regime, nomeadamente das milícias, dos serviços de segurança e da Quarta Brigada, podem representar uma ameaça para a estabilidade da Síria. Têm interesse em alimentar derivas sectárias, em especial nas zonas costeiras, onde se encontram em grande parte desde a queda do regime de Assad, e, em menor grau, em Homs. Este facto reflectiu-se nos ataques contra as forças do HTS perto da cidade costeira de Tartous, que causaram 14 mortos e 10 feridos, em 25 de dezembro. Em resposta, as forças do HTS lançaram ataques "perseguindo os remanescentes das milícias de Assad". Do mesmo modo, o Irão também tem interesse em criar instabilidade através de tensões sectárias, recorrendo a indivíduos ligados às suas redes no país.
Alguns dos remanescentes do antigo regime foram também efetivamente mobilizados nas últimas mobilizações em Homs e nas zonas costeiras, na sequência de um vídeo que circula nas redes sociais e que mostra um santuário alauíta em Alepo a ser vandalizado, o que ocorreu algumas semanas antes da sua publicação. No entanto, estas manifestações não devem ser vistas apenas como sendo operadas a partir do exterior pelo Irão ou pelos remanescentes do antigo regime, há receios entre sectores da população alauíta em relação ao novo ator no poder, o HTS, e apelos à vingança após a queda do regime de Assad.
É por isso que se deve prestar atenção ao aumento de incidentes, até agora isolados ou pelo menos não sistémicos, de natureza sectária desde a queda do regime, e especialmente às execuções e assassinatos em dinâmicas de vingança. É o caso de indivíduos que estiveram envolvidos em crimes do antigo regime, em que muitas vezes se misturam razões políticas e sectárias de vingança, em especial contra os alauítas. Os crimes do regime de Assad dilaceraram a sociedade síria, deixando um legado de atrocidades e de sofrimento generalizado. Neste contexto, é necessário pôr em prática uma ação coordenada para responder às necessidades imediatas das vítimas e estabelecer mecanismos para um quadro de justiça transitória abrangente e a longo prazo. É essencial abordar o legado da brutalidade sistémica do regime de Assad para criar uma via sustentável e pacífica. A justiça de transição pode desempenhar um papel crucial contra atos de vingança e o incremento de tensões sectárias.
Para além de um processo que promova a justiça de transição e a punição de todos os indivíduos envolvidos em crimes de guerra, sejam eles do antigo regime ou de outros grupos armados da oposição, só um novo ciclo político que permita uma grande participação das classes populares a partir de baixo para decidir e resolver várias questões democráticas e sociais pode restaurar a estabilidade a longo prazo.
Conclusão
Os remanescentes do antigo regime, nomeadamente os serviços de segurança e as forças armadas, constituem definitivamente uma ameaça para a estabilidade da Síria a curto prazo, tal como acima referido. Têm de ser travados e julgados pelos seus crimes.
No entanto, e sem subestimar as ameaças representadas por estes grupos de indivíduos, eles não constituem uma ameaça sob a forma de regresso ao poder e de reimposição de uma ditadura. Não dispõem dos meios políticos, militares e económicos para atingir esse objetivo. É importante compreender a natureza do regime de Assad e a diferença em relação ao cenário egípcio. Enquanto o antigo regime na Síria está estruturalmente morto, o que se reflete no desaparecimento do Palácio Presidencial e das suas redes, no Egito os centros de poder no seio do alto comando militar mantiveram-se no poder, apesar da queda de Mubarak em 2011 e do governo de Morsi entre julho de 2012 e julho de 2013.
A compreensão destas dinâmicas é também importante para alertar para as acusações de feloul conduzidas por alguns comentadores e meios de comunicação social próximos do novo ator no poder, o HTS, contra todos os que criticam ou se manifestam contra ele. Esta é uma forma de desacreditar indivíduos e grupos e as suas reivindicações políticas. Do mesmo modo, foram lançadas acusações de feloul contra uma manifestação a favor de um Estado democrático e laico em Damasco, há algumas semanas, porque vários indivíduos foram acusados, por vezes erradamente, de serem apoiantes do antigo regime. Independentemente da presença de vários indivíduos potencialmente apoiantes do antigo regime entre milhares e mais de manifestantes, o verdadeiro objetivo era desacreditar a manifestação e as reivindicações que lhe estavam associadas. Além disso, existe uma vontade de caraterizar algumas questões como o secularismo e o socialismo como estando ligadas ao antigo regime e/ou a uma importação ocidental para as desacreditar.
De facto, isto está relacionado com a segunda parte deste artigo. Mais uma vez, se os grupos de indivíduos do antigo regime são uma ameaça para a estabilidade do país, uma grande ameaça para uma Síria democrática e progressista reside na consolidação do poder do HTS e dos seus parceiros do SNA, apoiados pela Turquia e pelo Qatar.
A consolidação do poder do HTS ou uma ameaça para uma futura Síria democrática e progressista
O papel de liderança do HTS na ofensiva militar que resultou na queda do regime de Assad em dezembro de 2024 trouxe uma enorme popularidade à organização e ao seu líder Ahmed al-Sharaa (Al-Julani). Desde então, beneficiam de uma forma de legitimidade "revolucionária", que está a ser utilizada para consolidar política e militarmente o seu domínio nas regiões sobre seu domínio.
Embora o grupo tenha evoluído política e ideologicamente, abandonando os seus objetivos jihadistas transnacionais para se tornar um ator que procura operar no quadro nacional sírio, isto não significa que o HTS se tenha tornado um ator que apoia uma sociedade democrática e promove a igualdade e a justiça social, muito pelo contrário.
Nesta perspetiva, é importante analisar a forma como procuram consolidar o seu poder na sociedade e estabelecer uma nova ordem autoritária.
O HTS está a consolidar o seu poder
Após a queda do regime, Ahmed al-Sharaa reuniu-se inicialmente com o antigo primeiro-ministro Mohammed al-Jalali para coordenar a transição do poder, antes de nomear Mohammad al-Bashir como chefe do governo de transição responsável pela gestão dos assuntos correntes. Al-Bashir tinha anteriormente chefiado o Governo de Salvação (GS). Em todo o caso, o seu mandato termina em 1 de março de 2025. O novo governo é composto exclusivamente por indivíduos oriundos das fileiras do HTS ou próximos dele.
Ahmed al-Sharaa nomeou igualmente novos ministros, responsáveis pela segurança e governadores para diversas regiões filiadas no HTS ou em grupos armados do SNA que lhe são próximos. Por exemplo, Anas Khattab (também conhecido como Abu Ahmad Houdoud) foi nomeado chefe dos serviços de informação. É membro fundador da Jabhat al-Nusra e era a referência número um do grupo jihadista em matéria de segurança. A partir de 2017, passou a dirigir os assuntos internos e a política de segurança do HTS. Após a sua nomeação, anunciou a reestruturação dos serviços de segurança sob a sua autoridade.
Do mesmo modo, a criação do novo exército sírio foi efetuada por Ahmed al-Sharaa e pelos seus afiliados no poder. Nomearam comandantes do HTS para as mais altas patentes, como o novo ministro da Defesa e um antigo comandante de topo do HTS, Mourhaf Abou Qasra, que foi nomeado general.
Na recomposição do exército sírio, o governo do HTS procura também consolidar o seu controlo e domínio sobre os grupos armados fragmentados do país, justificando as suas medidas e este processo com a proibição de qualquer outro interveniente de transportar armas fora do controlo do Estado, sendo os Ministérios da Defesa e do Interior sírios os únicos dois intervenientes autorizados a possuir armas. Embora a unificação de todos os grupos armados num novo exército sírio não seja, por si só, contestada, continua a haver oposição por parte de vastos sectores da comunidade drusa em Suwayda e dos curdos no Nordeste, sem algumas garantias, como a descentralização e um verdadeiro processo democrático de transição.
Numa das suas recentes entrevistas, Ahmed al-Sharaa declarou também que a organização de futuras eleições poderia demorar até quatro anos e a redação de uma nova constituição até três anos. Simultaneamente, estava inicialmente prevista para 4 e 5 de janeiro de 2025 uma "Conferência Nacional do Diálogo Sírio", que reuniria 1.200 personalidades, mas que foi adiada para uma data futura desconhecida. Não foi dada qualquer informação sobre a forma como estas personalidades foram selecionadas, exceto que cada província será representada por 70 a 100 personalidades, tendo em conta todos os segmentos de diferentes classes sociais e científicas, com representantes da juventude e das mulheres.
Os advogados sírios lançaram recentemente uma petição apelando à realização de eleições sindicais livres, depois de as novas autoridades terem nomeado um conselho sindical não eleito.
O HTS procura consolidar o seu poder enquanto realiza uma transição controlada, procurando também acalmar os receios estrangeiros, estabelecer contactos com potências regionais e internacionais e ser reconhecido como uma força legítima com a qual é possível negociar. Um obstáculo a essa normalização é o facto de o HTS continuar a ser considerado uma organização terrorista pelos Estados Unidos, pela Turquia e pelas Nações Unidas, enquanto a Síria continua sujeita a sanções. Além disso, no âmbito da Lei de Autorização da Defesa Nacional para o ano fiscal de 2025, o Presidente dos EUA, Joe Biden, assinou em 23 de dezembro a prorrogação da aplicação da Lei César até 31 de dezembro de 2029, apesar da queda do regime de Bashar al-Assad. Promulgado cinco anos antes pelo antigo Presidente Donald Trump, este texto prevê sanções contra todos os atores – incluindo estrangeiros – que ajudem o regime sírio a adquirir recursos ou tecnologias que reforcem as suas atividades militares ou contribuam para a reconstrução da Síria.
Mas os elementos a favor de uma mudança na orientação das capitais regionais e internacionais em relação ao HTS já são visíveis. Claramente, Ancara é o principal apoiante político e militar da nova Síria, enquanto o Qatar desempenhará um papel importante como pilar económico. Ao mesmo tempo, al-Sharaa está a trabalhar no sentido de estabelecer relações com outros Estados árabes e atores regionais e internacionais. Por exemplo, o líder do HTS reuniu-se com uma delegação saudita em Damasco e elogiou os ambiciosos planos de desenvolvimento do reino saudita, em referência ao seu projeto Visão 2030, e manifestou otimismo quanto à futura colaboração entre Damasco e Riade. Para a Arábia Saudita e para as outras monarquias do Golfo, a evolução das relações com os novos dirigentes sírios dependerá da sua capacidade de dar resposta às suas preocupações sobre o carácter político do país e de evitar que a Síria se torne mais uma fonte de instabilidade regional. Uma delegação síria visitou o Reino Saudita, composta nomeadamente pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, pelo Ministro da Defesa e pelo chefe dos serviços de informação.
Mesmo ao nível das potências ocidentais, nota-se uma mudança de direção, incluindo por parte dos Estados Unidos. A responsável pelo Médio Oriente na diplomacia americana, Barbara Leaf, depois de se ter reunido com Ahmed al-Sharaa em Damasco, no final de dezembro de 2024, afirmou que tiveram uma "reunião boa, muito produtiva e detalhada" sobre o futuro da transição política neste país. Também qualificou Ahmed al-Sharaa como "um homem pragmático", anunciando que Washington estava a retirar a recompensa de 10 milhões de dólares pela sua cabeça, que estava em vigor desde 2013 pelo seu papel na Jabhat al-Nusra.
As recentes declarações de al-Sharaa sobre a dissolução do HTS poderiam também resolver alguns destes problemas.
No entanto, Israel continua a ser uma ameaça para a estabilidade da Síria e, sobretudo, não está interessado em assistir a um processo de democratização. Após o derrube do regime de Assad, que garantiu a estabilidade de Israel nas suas fronteiras, o exército de ocupação israelita expandiu a sua ocupação das terras sírias invadindo a parte síria do Monte Hermon, nos Montes Golã, e efetuou mais de 480 ataques contra baterias antiaéreas, aeródromos militares, locais de produção de armas, aviões de combate e mísseis. Os navios de mísseis atingiram as instalações navais sírias do porto de Al-Bayda e do porto de Latakia, onde estavam atracados 15 navios da marinha síria. Estes ataques têm como objetivo destruir as capacidades militares da Síria para evitar que sejam utilizadas contra Israel. Também enviam a mensagem de que o exército de ocupação israelita pode causar instabilidade política a qualquer momento, caso o futuro governo adote uma posição hostil que não sirva os interesses de Israel.
Neoliberalismo islâmico
Após a queda do regime de Assad, o futuro da Síria está repleto de desafios, sobretudo no que diz respeito à recuperação económica e ao re-desenvolvimento. O custo da reconstrução está já estimado entre 250 e 400 mil milhões de dólares e as sanções continuam a constituir um obstáculo à melhoria da situação.
A ausência de uma situação económica segura e estável na Síria constitui um grave obstáculo à promoção do investimento local e estrangeiro. Com efeito, desde 2011, o investimento direto estrangeiro (IDE) tem-se mantido limitado e, na sua maioria, restringido ao Irão e à Rússia. Embora o Golfo possa estar interessado em fazer alguns investimentos no país para aumentar a sua influência, o papel que o HTS está atualmente a desempenhar pode ser um obstáculo, uma vez que é visto de forma negativa por muitos Estados regionais.
O conselheiro diplomático dos Emirados Árabes Unidos para o presidente Sheikh Mohamed, Anwar Gargash, por exemplo, declarou que "a natureza das novas forças no poder e as suas filiações com a Fraternidade Muçulmana e a Al-Qaeda são indicadores bastante preocupantes".
Além disso, a instabilidade da libra síria é uma questão importante. Se bem que, após a queda do regime, o seu valor no mercado negro tenha aumentado consideravelmente, antes de se estabilizar nos 15 000 SYP por um dólar, há ainda um longo caminho a percorrer. A falta de estabilidade do SYP reduz a atratividade dos potenciais rendimentos e lucros rápidos e a médio prazo dos investimentos no país.
Além disso, colocam-se questões no que respeita às regiões do noroeste que utilizam a lira turca há vários anos, a fim de estabilizar os mercados afetados pela forte desvalorização do PJS. O restabelecimento da libra síria como moeda principal nessas zonas poderá ser problemático se não se conseguir alcançar a estabilidade.
Simultaneamente, as infraestruturas e as redes de transportes estão gravemente danificadas. O elevado custo de produção, a escassez de produtos de base e de recursos energéticos (nomeadamente de fuelóleo e eletricidade) constituem problemas adicionais. A Síria sofre igualmente de falta de mão de obra qualificada, não sendo ainda claro se os detentores de competências regressarão.
Mesmo o sector privado, que é maioritariamente composto por pequenas e médias empresas com capacidades limitadas, necessita ainda de muita modernização e reconstrução após mais de 13 anos de guerra. Os recursos do Estado são também muito limitados, o que limita igualmente os investimentos na economia, em especial nos sectores produtivos.
Além disso, 90% da população vive abaixo do limiar de pobreza, o que torna o seu poder de compra muito fraco e, por conseguinte, tem um impacto negativo no consumo interno. Apesar de não faltarem empregos na Síria, as pessoas não recebem o suficiente para satisfazer as suas necessidades quotidianas. Neste contexto, os sírios dependem cada vez mais das remessas de fundos para sobreviver.
Alguns responsáveis do novo governo, como o próprio Ahmed al-Sharaa, anunciaram que iriam trabalhar para aumentar os salários dos trabalhadores em 400% nos próximos dias, tornando o salário mínimo em 1.123560 SYP (aproximadamente 75 dólares). Embora este seja um passo na direção certa, não é suficiente para cobrir as necessidades das pessoas durante a crise contínua do custo de vida. De facto, o meio de comunicação social Kassioun estimou, em outubro de 2024, que o custo de vida médio de uma família síria constituída por cinco pessoas em Damasco atingia 13,6 milhões de libras sírias (cerca de 1 077 dólares). O mínimo atingiu 8,5 milhões de SYP (cerca de 673 dólares).
Para além de tudo isto, a influência de potências estrangeiras na Síria continua a ser uma fonte de ameaça e instabilidade, como demonstrou a última invasão de Israel e a destruição contínua de infraestruturas militares. Sem esquecer os constantes ataques e ameaças da Turquia no nordeste da Síria, nomeadamente nas zonas habitadas pela maioria curda.
Um dos maiores problemas no meio do mar de incerteza no país é a falta de um programa político económico alternativo entre a maioria dos principais actores políticos, incluindo o HTS.
O HTS não tem alternativa ao sistema económico neoliberal e, à semelhança da dinâmica e das formas de capitalismo de compadrio que existiam sob o regime anterior, o grupo está empenhado em desenvolver estas práticas entre as redes empresariais (que incluem figuras antigas e novas). Em anos anteriores, o SG favoreceu o desenvolvimento do sector privado e de parceiros comerciais próximos do HTS e de al-Julani.
Entretanto, a maior parte dos serviços sociais, nomeadamente a saúde e a educação, eram prestados por ONG e ONGI.
Bassel Hamwi, presidente da Câmara de Comércio de Damasco, afirmou que, após a queda do regime, o novo governo sírio nomeado pelo HTS disse aos líderes empresariais que iria adotar um modelo de mercado livre e integrar o país na economia global. Hamwi foi "eleito" para o seu cargo atual em novembro de 2024, algumas semanas antes da queda de Assad. É também o presidente da Federação das Câmaras de Comércio da Síria.
O dirigente al-Sharaa e o seu ministro da Economia realizaram igualmente numerosas reuniões com representantes destas câmaras económicas e com empresários de diferentes regiões para explicar as suas visões económicas e ouvir as suas queixas, a fim de satisfazer os seus interesses. A grande maioria dos representantes das várias câmaras económicas do antigo regime continua a ocupar os seus cargos.
Em última análise, este sistema económico neoliberal misturado com o autoritarismo do HTS conduzirá provavelmente a desigualdades sócio-económicas e ao empobrecimento contínuo da população síria, que foram algumas das principais razões para a revolta de 2011.
O novo ministro da Economia, filiado no HTS, reiterou esta orientação neoliberal alguns dias depois de ter dito que "passaremos de uma economia socialista... para uma economia de mercado livre que respeita as leis islâmicas". Independentemente da completa falácia de descrever o anterior regime como socialista, a orientação de classe do ministro refletiu-se claramente na ênfase que deu ao facto de que "o sector privado... será um parceiro eficaz e contribuirá para a construção da economia síria".
Não foi feita qualquer menção a trabalhadores, camponeses, funcionários públicos, nem a sindicatos ou associações profissionais na futura economia do país.
Em última análise, o processo de reconstrução está ligado às forças sociais e políticas que participarão no futuro do país e ao equilíbrio de poderes entre elas. Neste contexto, a construção de organizações sindicais autónomas e de massas será essencial para melhorar as condições de vida e de trabalho da população e, de uma forma mais geral, para lutar pelos direitos democráticos e por um sistema económico baseado na justiça social e na igualdade.
Ideologia reacionária
Do mesmo modo, o HTS fez várias declarações e tomou várias decisões que confirmam a sua ideologia reacionária.
Por exemplo, foram feitas declarações de responsáveis do HTS sobre o papel das mulheres na sociedade, incluindo sobre a sua capacidade de trabalhar em alguns sectores. Por exemplo, numa entrevista de 16 de dezembro, Obeida Arnaout, membro do HTS e porta-voz para os Assuntos Políticos do Comando de Operações Militares (CMO), declarou que "os papéis das mulheres devem estar de acordo com o que as mulheres podem desempenhar. Por exemplo, se dissermos que uma mulher deve ser Ministra da Defesa, será que isso está de acordo com a sua natureza e a sua constituição biológica? Sem dúvida que não".
Alguns dias mais tarde, Aisha al-Dibs, a recém-nomeada Ministra dos Assuntos das Mulheres da Síria e a única mulher até agora no governo de transição sírio, respondeu a uma pergunta sobre o "espaço" que seria dado às organizações feministas no país, dizendo que se as "ações dessas organizações apoiarem o modelo que vamos construir, então serão bem-vindas", acrescentando: "Não vou abrir caminho para aqueles que não concordam com o meu pensamento". A deputada continuou a entrevista desenvolvendo uma visão reacionária do papel da mulher na sociedade, instando-a a "não ultrapassar as prioridades da sua natureza divina" e a conhecer "o seu papel educativo na família".
Para além disso, o Ministério da Educação da Síria alterou os currículos escolares no sentido de uma visão conservadora mais islâmica, incluindo a remoção da teoria da evolução do currículo de ciências, os judeus e os cristãos são agora referidos como aqueles que se "desviaram" do verdadeiro caminho ou as referências à "defesa da nação" foram substituídas por "defesa de Alá". Depois de muitas críticas a estas alterações, o Ministro da Educação anunciou no dia seguinte que "os currículos de todas as escolas sírias permanecem inalterados até à formação de comités especializados para rever e auditar os currículos. Apenas ordenámos a eliminação do que glorifica o defunto regime de Assad e adotámos imagens da bandeira da revolução síria em vez da bandeira do defunto regime em todos os livros escolares..." Assim, algumas das alterações que tinham sido feitas foram anuladas.
Por conseguinte, não basta fazer declarações pouco claras sobre a tolerância das minorias religiosas ou étnicas ou sobre o respeito dos direitos das mulheres. A questão fundamental é o reconhecimento dos seus direitos enquanto cidadãos iguais que participam na decisão do futuro do país. De um modo mais geral, os funcionários do HTS declararam claramente a sua preferência por uma governação islâmica e pela aplicação da lei da Sharia.
Não há solução para a questão curda
Ao mesmo tempo, é pouco provável que o HTS esteja disposto a apoiar as exigências das Forças de Defesa Síria e da AANES, a administração das zonas curdas, nomeadamente no que respeita aos direitos nacionais dos curdos. Afinal, as regiões do nordeste são ricas em recursos naturais, particularmente petróleo e agricultura, e por isso são estratégica e simbolicamente importantes. Em última análise, o HTS não é diferente do Conselho Nacional Sírio e da Coligação Nacional das Forças da Oposição e Revolucionárias - atores da oposição no exílio que são hostis aos direitos nacionais curdos.
Síria
Curdos na Síria: entre a esperança no futuro e a resistência aos ataques turcos
A Turquia tornou-se o ator regional mais importante no país, após a queda do regime de Assad. Ao apoiar o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), Ancara tem vindo a consolidar o seu poder na Síria. O principal objetivo da Turquia, para além de proceder ao regresso forçado dos refugiados sírios e de beneficiar de futuras oportunidades económicas durante a fase de reconstrução, é negar as aspirações curdas à autonomia e, mais especificamente, minar a AANES. Isto abriria um precedente para a autodeterminação curda na Turquia.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Hakan Fidan, declarou, durante uma conferência de imprensa conjunta com o líder do HTS, Ahmed al-Sharaa, que a integridade territorial da Síria é "inegociável" e que o PKK "não tem lugar" no país. Alguns dias mais tarde, o Presidente Erdogan declarou que as FDS "ou se despedem das suas armas, ou serão enterradas em terras sírias". O exército turco tem também bombardeado continuamente civis e infraestruturas críticas do nordeste da Síria desde o final de 2023.
Embora o HTS não tenha participado em nenhum confronto militar contra as FDS nas últimas semanas, a organização não manifestou oposição aos ataques liderados pela Turquia, muito pelo contrário. Murhaf Abu Qasra, um dos principais comandantes do HTS e o recém-nomeado Ministro da Defesa do governo de transição, declarou que "a Síria não será dividida e não haverá federalismo inshallah. Se Deus quiser, todas estas zonas ficarão sob a autoridade da Síria". Do mesmo modo, al-Sharaa opõe-se ao federalismo.
Além disso, al-Sharaa disse a um jornal turco que a Síria iria desenvolver uma relação estratégica com a Turquia no futuro, e acrescentou que: "Não aceitamos que as terras sírias ameacem e desestabilizem a Turquia ou outros locais". Afirmou ainda que todas as armas devem ficar sob o controlo do Estado, incluindo as que se encontram nas zonas controladas pelas FDS.
Tudo isto apesar de os responsáveis das FDS terem feito declarações que procuram negociar com o HTS. O comandante das FDS, Mazloum Abdi, declarou que são a favor da descentralização do Estado e da auto-administração, mas não do federalismo, e que estão abertos a fazer parte de um futuro exército nacional sírio (com garantias). Declarou que as FDS não são uma extensão do PKK e que estão dispostas a expulsar os combatentes não sírios imediatamente após a obtenção de uma trégua.
Al-Sharaa declarou nos últimos dias que estava a negociar com as FDS para resolver a crise no nordeste da Síria e que o Ministério da Defesa sírio iria integrar as forças curdas nas suas fileiras. Mas ainda não se sabe como e em que condições.
Uma corrida contra o tempo para defender um espaço democrático
A grande maioria das organizações e forças sociais democráticas que estiveram na origem da revolta popular síria de março de 2011 foram reprimidas de forma sangrenta. Antes de mais, pelo regime sírio, mas também por várias organizações fundamentalistas islâmicas armadas. O mesmo aconteceu com as instituições ou entidades políticas alternativas locais criadas pelos manifestantes, como os comités de coordenação e os conselhos locais que prestavam serviços à população local. Existem, no entanto, alguns grupos e redes civis, embora maioritariamente ligados a organizações do tipo ONG, em todo o território sírio, e em particular no noroeste da Síria, mas com dinâmicas diferentes das do início da revolta.
Ao mesmo tempo, desenvolveram-se outras experiências de luta, ainda que de menor intensidade. Por exemplo, estão em curso protestos e greves populares na província de Suwayda, habitada principalmente pela minoria drusa, desde meados de agosto de 2023. De um modo mais geral, o movimento de protesto tem sublinhado continuamente a importância da unidade síria, da libertação dos presos políticos e da justiça social, exigindo simultaneamente a aplicação da Resolução 2254 da ONU, que apela a uma transição política. Na verdade, foram as redes e grupos locais que escolheram recentemente o ativista de longa data Muhsina al-Mahithawi para governador da província de Suwayda.
Outras cidades e regiões sob o controlo do regime sírio, nomeadamente as províncias de Daraa e, em menor escala, os subúrbios de Damasco, foram também palco de protestos ocasionais, embora em muito menor escala.
Estas formas de dissidência lançaram em parte as bases para a sua revolta nos dias que antecederam a queda da dinastia Assad.
De um modo mais geral, a experiência acumulada durante os primeiros anos do início da revolta popular, que foi a mais dinâmica em termos de resistência civil popular, foi preservada pela transmissão dos ativistas que viveram essas experiências e pela documentação sem precedentes da revolta, incluindo escritos, gravações em vídeo, testemunhos e outras provas. Este vasto arquivo documental sobre o movimento de resistência civil pode ser transmitido à memória popular e constituir um recurso crucial para aqueles que resistem no futuro.
Após o fim do regime de Assad, multiplicaram-se as iniciativas locais para criar formas de comités locais ou redes de ativistas em diferentes regiões, a fim de incentivar a auto-organização, a participação a partir de baixo e garantir a paz civil. Já se realizaram manifestações, nomeadamente para denunciar determinadas declarações reacionárias proferidas contra as mulheres.
Síria
“Esta revolução ainda só está a começar”: um encontro com a esquerda em Damasco
Omar Hassan
Dito isto, temos de encarar o duro facto de que há uma ausência flagrante de um bloco democrático e progressista independente capaz de se organizar e de se opor claramente ao novo ator no poder. A construção deste bloco levará tempo. Terá de combinar as lutas contra a autocracia, a exploração e todas as formas de opressão. Terá de exigir a democracia, a igualdade, a autodeterminação curda e a libertação das mulheres, a fim de construir a solidariedade entre os explorados e oprimidos do país.
Para fazer avançar essas exigências, esse bloco progressista terá de construir e reconstruir organizações populares, desde sindicatos a organizações feministas, organizações comunitárias e estruturas nacionais que as reúnam. Isso exigirá a colaboração entre atores democráticos e progressistas de toda a sociedade.
Para além disso, uma das principais tarefas será enfrentar a divisão étnica central do país, a divisão entre árabes e curdos. As forças progressistas devem travar uma luta clara contra o chauvinismo árabe para ultrapassar esta divisão e forjar a solidariedade entre estas populações. Este tem sido um desafio desde o início da revolução síria em 2011 e terá de ser confrontado e resolvido de forma progressiva para que o povo do país seja verdadeiramente libertado.
Conclusão
É importante lembrar que o HTS é mais o resultado da contrarrevolução liderada pelo regime sírio, que reprimiu de forma sangrenta a revolta popular e as suas organizações democráticas, e se militarizou cada vez mais. A ascensão deste tipo de movimentos fundamentalistas islâmicos é o resultado de várias razões, incluindo a facilitação inicial da sua expansão pelo regime, a repressão do movimento de protesto que levou à radicalização de alguns elementos, uma melhor organização e disciplina dos seus grupos e, finalmente, o apoio de países estrangeiros.
Posteriormente, o HTS, tal como outras organizações fundamentalistas islâmicas armadas, constituiu, em muitos aspectos, a segunda ala da contrarrevolução após o regime de Assad. A sua visão da sociedade e do futuro da Síria está em oposição aos objetivos iniciais da revolta e à sua mensagem inclusiva de democracia, justiça social e igualdade. A sua ideologia, programa político e práticas revelaram-se violentos não só contra as forças do regime, mas também contra os grupos democráticos e progressistas, tanto civis como armados, as minorias étnicas e religiosas e as mulheres.
Em conclusão, a preservação e a luta por uma sociedade democrática e progressista não passam pela confiança nas atuais autoridades do HTS ou pela atribuição de boas notas ou a expressão de satisfação sobre a sua governação e a gestão da sua fase de transição, mas pela construção de um contrapoder independente que reúna redes e associações democráticas e progressistas. O calendário para organizar eleições e redigir uma nova constituição, ou a seleção de figuras numa "conferência de diálogo nacional", podem ser objeto de debates e críticas, mas a questão central é a ausência de participação dos de baixo no processo de tomada de decisões e a incapacidade de pressionar o HTS a fazer concessões. A tomada de decisões está apenas nas mãos do HTS. Este processo é também suportado pelos seus principais apoiantes, a Turquia e o Qatar, mas, de um modo mais geral, pela grande maioria das potências regionais e internacionais. De um modo geral, têm o objetivo comum de (re)impor uma forma de estabilidade autoritária na Síria e na região. É claro que isso não significa uma unidade entre as potências regionais e imperiais. Cada uma delas tem os seus próprios interesses, muitas vezes antagónicos, mas não querem a desestabilização do Médio Oriente e do Norte de África.
A esperança de um futuro melhor está no ar após a queda de Assad. Tudo isto está ligado à capacidade dos sírios para reconstruir as lutas a partir de baixo. Atualmente, o poder e o controlo do HTS sobre a sociedade ainda não estão completos, uma vez que as suas capacidades humanas e militares ainda são limitadas para governar totalmente toda a Síria, pelo que existe algum espaço para a organização. Este facto tem de ser explorado.
No final, só a auto-organização das classes populares que lutam por reivindicações democráticas e progressistas abrirá o caminho para a verdadeira libertação e emancipação.
Pelo menos agora, a oportunidade existe, mas estamos numa corrida e as classes populares sírias têm de se organizar para defender todos os sacrifícios feitos para alcançar as aspirações iniciais da Revolução para a democracia, a justiça social e a igualdade.
Joseph Daher concluiu um doutoramento em Estudos de Desenvolvimento na SOAS, Universidade de Londres (2015), e um doutoramento em Ciência Política na Universidade de Lausanne (2018), na Suíça. Atualmente, lecciona na Universidade de Lausanne e é professor afiliado a tempo parcial no Instituto Universitário Europeu, Florença (Itália), no qual participou no projeto "Wartime and Post-Conflict in Syria" (WPCS) e co-coordena agora o projeto "Syrian Trajectories: Desafios e oportunidades para a construção da paz". É autor de Hezbollah: Political Economy of the Party of God (Pluto Press, 2016) e Syria After the Uprisings: The Political Economy of State Resilience (Pluto Press, 2019). Criou o blogue Syria Freedom Forever.
Texto publicado originalmente no Syria Untold.