O imperialismo líquido que inundou a Síria

28 de janeiro 2024 - 12:57

Duas super-potências mundiais e três potências regionais invadiram o pequeno país. Algumas para proteger um regime assassino mas todas destruíram quaisquer aspirações políticas independentes entre o povo sírio, dividindo-o e negando aos sírios a promessa de um futuro diferente. Por Yassin al-Haj Saleh.

PARTILHAR
Ilustração de Kateryna Gritseva.
Ilustração de Kateryna Gritseva.

A Síria é um país com uma área de apenas 185.1790 km2 e com uma população de menos de 24 milhões de habitantes. No entanto, duas super-potências mundiais (os Estados Unidos e a Federação Russa) e três das maiores potências regionais (Irão, Turquia e Israel) estão presentes no seu território. Israel ocupa os Montes Golã desde 1967 e, atualmente, faz incursões quase ininterruptas no espaço aéreo sírio. Em séculos passados, antes do apogeu do imperialismo europeu e russo, o Irão e a Turquia foram impérios. Embora seja discutível se ainda se qualificam como potências imperiais, nunca abandonaram as suas ambições imperiais regionais. Uma forma de ver estes países, a nível regional, é apelidá-los de "sub-imperiais": expansionistas e intervencionistas, incluindo militarmente, em países vizinhos.

Os EUA e a Rússia têm histórias bem conhecidas de expansão e domínio de povos e territórios. O imperialismo foi fundamental para a própria formação de ambos. Mas embora o "destino manifesto" da Rússia tenha sido, durante séculos, expandir-se para áreas vizinhas na Ásia Central e na Europa Oriental, foi na Síria que Moscovo estabeleceu o seu primeiro posto avançado no estrangeiro. Voltarei a este facto fundamental mais tarde.

Várias potências imperiais e sub-imperiais invadiram o país de pequena dimensão que é a Síria. Algumas delas para proteger um regime assassino, mas todas destruíram quaisquer aspirações políticas independentes entre o povo sírio, dividindo setores da sociedade síria entre si e os seus satélites e negando aos sírios a promessa de um futuro diferente.

Esta situação única foi possível graças a uma combinação de estruturas e dinâmicas internas e internacionais que envolvem cinco potências fundamentais: os EUA, a Rússia, o Irão, a Turquia e Israel.

Os principais fatores internos são a natureza colonial do regime da família Assad e aquilo a que chamei "imperialistas conquistados" (título do meu livro de 2019, publicado em árabe) – ou seja, os islamistas salafi-jihadistas que desempenharam um papel central na tragédia síria e que têm uma imensa quota-parte de responsabilidade pelo descarrilamento da luta popular e pelo seu afastamento das suas aspirações emancipatórias iniciais.

No seu conjunto, a convergência sem precedentes e peculiar de poderes imperiais internacionais e regionais num só país, reforçada pela natureza colonial do domínio da família Assad ao longo de mais de meio século, bem como o "imperialismo conquistado" dos islamistas, equivale àquilo a que chamo (numa homenagem ao falecido sociólogo polaco Zygmunt Bauman) "imperialismo líquido".

Numa série de estudos influentes, incluindo o marco histórico "Modernidade Líquida" (1999), Bauman teorizou a condição moderna como altamente volátil: "Incapaz de manter qualquer forma ou qualquer curso por muito tempo", com "nenhum 'estado final' à vista". "O estatuto de todas as normas (...) foi, sob a égide da modernidade 'líquida' (...), severamente abalado e tornou-se frágil", escreveu ele. Para que a sua metáfora não implique suavidade, Bauman reforça que "o líquido é tudo menos suave. Pensemos num dilúvio, numa inundação ou numa barragem rebentada".

A Síria foi inundada, inundada e rompida por Estados imperiais e subimperiais. O conjunto de potências globais e regionais que entraram na Síria depois de 2011 transformou efetivamente o país num recipiente para o imperialismo líquido, transformando e desfigurando o local de formas profundas e abrangentes, sem que se vislumbre um estado final.

Irão

A República Islâmica do Irão apoiou o regime de Assad desde o início da revolta de 2011, que foi, claro, inspirada por outras revoltas árabes que vieram a culminar na Primavera Árabe. Desde a sua criação, em 1979, a República Islâmica tem demonstrado tendências expansionistas, primeiro sob a forma de "exportação da revolução", antes de se reposicionar como a vanguarda do chamado "eixo de resistência": uma cortina de fumo ideológica que utiliza uma retórica anti-imperialista para justificar ditaduras brutais e as suas agendas autoritárias.

Depois de 1982, e do fracasso da ocupação israelita do Líbano e da expulsão dos combatentes palestinianos do país, o Corpo de Guardas da Revolução Islâmica (IRGC) do Irão construiu o que viria a ser o Hezbollah, uma força sectária armada num país com o qual o Irão não faz fronteira. O Irão tornou-se também, de facto, a potência dominante no Iraque após a invasão criminosa dos Estados Unidos em 2003, e foi aberto um longo corredor de Teerão a Beirute, passando por Bagdade e Damasco.

No seu artigo "The Other Regional Counter-Revolution: Iran's Role in the Shifting Political Landscape of the Middle East", o editor de política do New Lines, Danny Postel, descreveu em pormenor a resposta reacionária da República Islâmica às revoltas populares na Síria, no Líbano e no Iraque: uma realidade que contraria a narrativa demasiado dominante que apresenta o Irão como um Estado "revolucionário" na vanguarda de um "eixo de resistência" regional. Os responsáveis iranianos gabam-se de controlar "quatro capitais árabes" (Bagdade, Beirute, Damasco e Saná). Em todos estes casos, o Irão tem sido uma influência sectária, financiando e armando grupos xiitas e investindo na "xiitaficação" de outras comunidades. Este facto é particularmente notório na Síria, onde os xiitas sempre foram uma pequena minoria (cerca de 0,5% da população). Esta política de sectarização, o meio através do qual o regime iraniano tem vindo a procurar consolidar o seu poder regional, conduziu previsivelmente a massacres e a atrocidades nos quatro domínios árabes, cada um dos quais é hoje um Estado falhado.

Estas políticas regionais são uma extensão dos métodos da República Islâmica dentro do próprio Irão. A exploração de divisões ao longo de linhas étnicas e religiosas faz parte do modus operandi de um regime que brutaliza aqueles que lhe resistem. Esta lógica repressiva tem estado à vista do mundo desde a revolta “Mulher, Vida, Liberdade” que começou no outono de 2022. O papel imperialista e contrarrevolucionário do Irão na região é uma extensão da sua guerra interna contra as aspirações democráticas do povo iraniano.

Na Síria, o regime iraniano tem sido o principal patrocinador e mecenas das milícias xiitas provenientes do Líbano, do Iraque, do Afeganistão e do Paquistão para se oporem à revolta síria. A nível internacional, a ideologia legitimadora por detrás do expansionismo e sectarização do Irão tem sido a resistência a Israel e aos EUA. Mas o papel destrutivo da República Islâmica na Síria e noutros locais ultrapassa de longe esta alegada resistência.

Rússia

Desde outubro de 2011, a Rússia tem usado o seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU como arma para proteger o regime de Assad. Em março de 2012, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, declarou que a Rússia não permitiria o "domínio sunita" na Síria. (Os sunitas constituíam cerca de 70% da população antes do início da revolta, em março de 2011). Esta declaração foi extremamente brutal, imperialista, racista e islamofóbica, mas Lavrov contava que esta não fosse condenada pelas potências ocidentais, pela ONU ou pela esquerda ocidental porque este tipo de pensamento estava implícito na lógica essencialista da "guerra contra o terror (islâmico)" desde a década de 1990. A declaração de Lavrov foi uma expressão invulgarmente direta dessa lógica, pronunciada num palco internacional.

A Rússia lançou uma intervenção militar direta na Síria em setembro de 2015, a mando de Qassim Soleimani, comandante da Força Quds, o braço de operações externas do Exército dos Guardiães da Revolução Islâmica. A Rússia opera a base aérea militar de Hmeimim no oeste da Síria e, em 2019, alugou uma instalação naval no porto marítimo de Tartus, na Síria, por 49 anos. Enquanto posto avançado russo, a Síria não se insere no âmbito geográfico direto da expansão imperial russa. A Síria é o primeiro satélite ultramarino da Rússia.

De acordo com a Airwars, que investiga danos a civis em conflitos em todo o mundo, a Rússia matou cerca de 24.000 civis sírios nos primeiros seis anos da sua intervenção. Em setembro de 2022, a Rede Síria para os Direitos Humanos estimou que a Rússia cometeu mais de 360 massacres no país, utilizando fósforo ilegal e munições de fragmentação. O ministro da Defesa da Rússia, Sergei Shoigu, gabou-se de ter testado "todas as armas mais recentes da Rússia" na Síria. O próprio Presidente Vladimir Putin afirmou que "mais de 85% dos comandantes do exército russo ganharam experiência de combate na Síria". Sergey Chemezov, CEO do gigante russo do armamento Rostec, afirmou que, em 2018 e 2019, a Rússia recebeu encomendas de armas de países do Médio Oriente no valor de mais de 100 mil milhões de dólares.

Tendo exercido o seu poder de veto 18 vezes para proteger o regime de Assad da censura internacional, a relação da Rússia com a Síria pode ser vista como paralela à dos EUA com Israel. Podemos, portanto, falar de "palestinização" do povo sírio através de massacres, desapropriação e limpeza étnica.

EUA

Estruturalmente falando, e apesar da sua distância geográfica, os EUA têm sido uma potência do Médio Oriente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Desde então, em cada década, a região tem sido abalada por uma grande guerra em que os EUA ou Israel são os protagonistas. Consideremos as guerras de 1956 (Suez), 1967 (Guerra dos Seis Dias), 1973 (Guerra de Outubro), 1982 (invasão do Líbano por Israel), 1991 (Guerra do Golfo), 2003 (invasão americana do Iraque), 2006 (guerra Israel-Hezbollah) e as operações periódicas de Israel para "aparar a relva" em Gaza, Jenin e noutros locais. Todos estes conflitos foram objeto de cobertura geopolítica por parte das sucessivas administrações americanas. Num empreendimento conjunto de excecionalismo americano-israelita, os dois países desrespeitaram o direito internacional e tornaram-se anómalos na comunidade internacional relativamente à questão da Palestina.

Desde o início de 2013, Washington viu a luta dos sírios como uma "guerra contra o terrorismo". As afirmações essencialistas que reduzem o conflito a uma expressão de forças intemporais e trans-históricas ou de "antigos ódios sectários" constituíram um atalho conveniente para os decisores políticos ocidentais e para os especialistas de todo o espetro ideológico. É-nos apresentada apenas uma escolha: a guerra, conduzida por aqueles que gozam de uma superioridade militar decisiva.

Aos olhos dos decisores políticos dos EUA, o "terrorismo" eclipsou as guerras de agressão, a repressão brutal por regimes tirânicos e até o genocídio: "o crime de todos os crimes", nas palavras do jurista polaco judeu Raphael Lemkin (que cunhou o termo durante a Segunda Guerra Mundial) e o mal supremo do mundo. Assim, em 2015, os EUA estabeleceram um programa para armar e treinar os rebeldes sírios com a condição essencial de que lutassem apenas contra o Estado Islâmico e não contra o regime de Assad (os rebeldes eram contra ambos e já estavam a combater o Estado Islâmico). Os resultados deste programa de "treinar e equipar" foram desconcertantes. Apenas 65 homens aceitaram as suas condições e foram capturados pelos jihadistas antes de dispararem uma única bala.

O massacre químico de Ghouta, em agosto de 2013, ultrapassou a infame, mas também famosa, "linha vermelha" do Presidente Barack Obama. No entanto, menos de três semanas depois, os EUA e a Rússia chegaram a um acordo para desmantelar o arsenal químico do regime de Assad e isentá-lo de punição ao abrigo do direito internacional. O acordo deu carta branca a Assad para continuar a sua violência assassina com outras armas e, na prática, também com as mesmas armas químicas que supostamente estavam a ser desmanteladas (a esmagadora maioria dos ataques químicos na Síria, 311 num total de 349, de acordo com o Global Public Policy Institute, com sede em Berlim, ocorreu depois de o acordo ter sido celebrado). A justiça e a verdade foram sacrificadas juntamente com as 1.466 vítimas do massacre. O massacre e o que se lhe seguiu foram também presentes para as forças islamistas niilistas, que aproveitaram essas injustiças (e a impunidade com que foram cometidas) para as suas narrativas.

Em 2014, os EUA intervieram contra o Estado Islâmico e a Jabhat al-Nusra (mais tarde rebatizada como Hayat Tahrir al-Sham). Anteriormente, no Afeganistão e no Iraque, Washington tinha alimentado os métodos imperialistas e niilistas desses grupos militantes islâmicos. A América também controla uma grande faixa do leste e nordeste da Síria através dos seus aliados curdos, que optaram por não combater o regime de Assad porque o seu inimigo essencial é a Turquia.

De acordo com um relatório da Amnistia Internacional de abril de 2019, mais de 1.600 civis foram mortos na minha cidade natal, Raqqa, pelas forças da coligação, lideradas pelos americanos no decurso da sua "guerra contra o terrorismo".

Turquia

Em 2016, tal como as outras quatro potências, a Turquia interveio na Síria em nome da "luta contra o terrorismo". Mas os "terroristas" que estavam na sua mira eram os curdos sírios filiados no PKK, o partido nacionalista curdo que trava uma luta armada com Ancara desde os anos 1980. O ramo sírio do partido (o PYD) foi fundamental para a intervenção dos EUA contra o ISIS. Este facto geopolítico provocou fricções consideráveis entre Washington e Ancara. Mas a administração de Donald Trump traiu os curdos em 2018, quando aceitou a expansão da Turquia para as áreas controladas pelo PYD e a ocupação de Afrin, e novamente, em 2019, quando os militares turcos ocuparam Ras al-Ain. Afrin e Ras al-Ain são duas cidades sírias com maiorias curdas no noroeste e nordeste do país, respetivamente. A Turquia e o PKK exportaram a sua guerra civil para a Síria, que teve, e continua a ter, uma guerra civil sua.

Tornou-se normal dizer-se, por exasperação ou preguiça, que o conflito sírio é "complicado". É complicado. Como poderia não ser, com todos estes Estados e interesses sub-estatais envolvidos?

A Turquia tem acolhido cerca de 3,7 milhões de refugiados sírios, um pouco mais de metade do número total (que se aproxima dos 7 milhões). Mas desde 2016, a mobilidade dos sírios dentro da Turquia tem sido severamente restringida: os refugiados precisam de uma autorização especial para se deslocarem da comunidade onde se registaram para outros locais. Esta medida foi introduzida na sequência de um acordo entre a Turquia e a UE, assinado em fevereiro de 2016, destinado a impedir a chegada de refugiados sírios (e não sírios) à Europa.

O bode expiatório dos refugiados sírios tem vindo a crescer na Turquia, atingindo recentemente níveis histéricos com apelos a repatriações forçadas. Os refugiados são responsabilizados pelos problemas económicos da Turquia: foram racializados e demonizados por populistas e demagogos como Umit Ozdag, líder do Partido da Vitória, de extrema-direita e ultranacionalista. Por razões eleitorais, o governo turco anunciou um programa de regresso consensual dos refugiados à Síria e o Presidente Erdogan declarou que 526.000 refugiados regressaram até ao início de outubro de 2022. Recentemente, o Presidente Erdogan afirmou que um milhão de refugiados regressaram à Síria por vontade própria. É impossível verificar este número a partir de fontes independentes. No entanto, o governo turco pode estar a usar este programa como pretexto para povoar certas zonas de maioria curda com sírios não curdos, a fim de resolver o seu próprio "problema" (causando grandes problemas à Síria no futuro). Mas a engenharia demográfica sempre fez parte dos instrumentos do imperialismo.

Israel

O Estado de Israel foi fundado com base na limpeza étnica, na expropriação e na expansão. Os líderes Ashkenazi dos Yishuv (a população judaica que vivia na Palestina antes de 1948), que tinham desenvolvido laços cordiais com as elites coloniais das principais potências ocidentais, embarcaram num projeto de desapropriação e deslocação do povo palestiniano naquilo a que chamam "Guerra da Independência". É inegável que Israel é um Estado colonial, ou mesmo colonizador-colonial. A "Declaração Balfour" de 1917, que anunciava o apoio britânico à construção "na Palestina de um lar nacional para o povo judeu", foi incluída no mandato colonial britânico sobre a Palestina estabelecido em 1922.

Em 1956, Israel ocupou brevemente a Península do Sinai egípcia, em colaboração com os invasores britânicos e franceses, na sequência da nacionalização da Companhia do Canal do Suez pelo Presidente Gamal Abdel Nasser. As três potências coloniais tiveram de se retirar após fortes pressões dos centros imperiais mundiais então ascendentes: os EUA e a União Soviética. Em 1967, Israel, desta vez com o apoio total dos EUA, voltou a ocupar o Sinai, bem como o que restava da Palestina (Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza) e os Montes Golã sírios.

Posteriormente, Israel envolver-se-ia em várias guerras no Líbano contra a Organização para a Libertação da Palestina e depois contra o Hezbollah. Numerosas campanhas militares israelitas tiveram como alvo a Faixa de Gaza e os campos de refugiados na Cisjordânia. Todas foram justificadas como "combate ao terror" (ou seja, a qualquer resistência palestiniana) e como satisfação das necessidades de segurança aparentemente insaciáveis de Israel. Ao privar o povo palestiniano do seu direito à autodeterminação, Israel também se recusa a reconhecer o povo palestiniano como cidadãos iguais num único Estado. Esta situação atual tem sido uma fonte persistente de violência na Palestina e de instabilidade na região.

A partir de 2013, em resposta à intervenção do Irão em apoio ao regime de Assad na sequência da revolta síria, Israel tem enviado periodicamente os seus aviões em bombardeamentos no interior da Síria, principalmente contra instalações militares iranianas. Subjacente à insensibilidade destes ataques está uma lógica de impunidade e de excecionalismo israelita normalizado internacionalmente.

O Estado e a sociedade israelitas têm vindo a deslocar-se constantemente para a direita desde a década de 1970, seguindo uma trajetória inscrita na própria lógica do colonialismo, do apartheid e do excecionalismo que remonta à formação do Estado.

O regime de Assad

A ditadura da família dinástica que governa a Síria há 53 anos reduziu o país a um protetorado iraniano-russo para se manter no poder "para sempre", para citar um slogan pró-regime. Para conseguir este domínio eterno, apoia-se em agências de segurança sectarizadas e em estruturas militares igualmente sectarizadas com funções de segurança.

Desde os anos 70, aquilo a que chamamos "sectarismo" na Síria (e no Médio Oriente em geral) já não se refere apenas a uma força irracional nas esferas política e social, nem à estratégia colonial de "dividir para reinar" que foi mais tarde adotada pelas elites "nacionais" que substituíram os colonizadores europeus. Refere-se, cada vez mais perigosamente, a um potencial crescente de guerra civil e genocídio. A convergência das décadas de governo da família Assad na Síria com o paradigma colonial é visível não só nas suas próprias estratégias de "dividir para reinar", mas também na sua utilização de um estado de emergência permanente. Este estado de emergência está em vigor desde março de 1963, quando oficiais militares tomaram o poder em nome do partido Baath, mas a sua justificação mudou desde 2011, passando da guerra contra o inimigo colonial israelita para a guerra contra o terrorismo. Há 60 anos que o país é marcado pela suspensão da lei e por uma guerra civil que oscila entre o frio e o quente.

Sob este domínio dinástico, a Síria é um Estado de dentro para fora que, internamente, trata a sociedade segundo uma lógica unitária de soberania em que a Síria deve ser uma só, indivisa, em todo o lado, onde não é possível qualquer diversidade de pontos de vista ou de vontades. Este Estado de dentro para fora trata a população como se fosse um exército disciplinado e obediente, desprovido de pluralidade e espontaneidade ao mesmo tempo que trabalha externamente com Estados poderosos da região e do mundo segundo uma lógica pluralista, em que os problemas têm sempre soluções políticas. Os únicos tratados que o regime respeitou foram os celebrados com potências influentes, incluindo Israel: os Montes Golã estão perfeitamente calmos desde o acordo de cessar-fogo de 1974, que se seguiu à guerra israelo-árabe de outubro de 1973.

O que temos tido na Síria desde a década de 1970 tem sido a continuação do domínio colonial por outros meios. O Império Francês ocupou brutalmente a Síria entre o fim da Primeira Guerra Mundial e o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas o domínio colonial francês foi muito menos violento do que o regime de Assad, sob o qual a Síria viveu duas guerras civis com dimensões genocidas: 1979-1982, com dezenas de milhares de vítimas, e 2011 até à atualidade, com centenas de milhares de vítimas e cerca de 7 milhões de refugiados em 127 países (cerca de 30% da população total, segundo um relatório de 2022 da Human Rights Watch).

O conceito de "colonialidade do poder" do falecido sociólogo peruano Anibal Quijano, que sublinha os efeitos duradouros da dominação colonial no exercício do poder nas sociedades modernas, não é apenas uma categoria analítica. Convidar o Irão e a Rússia para proteger o regime é a concretização da lógica fundamentalmente colonial do regime de Assad. A guerra imperialista contra o terrorismo apenas consolidou a colonialidade e o carácter assassino do regime.

Uma das palavras de ordem dos recentes protestos que eclodiram na cidade de Sweida, no sul do país, a 20 de agosto de 2023, fala diretamente ao complexo imperial-colonial que controla a Síria:

Queremos o porto, queremos a terra (o petróleo, noutra fórmula) e queremos que nos devolvam o aeroporto!

O porto em questão é o de Tartus, que, como já foi referido, foi arrendado à Rússia. A terra está dividida pelas cinco potências ocupantes. E o aeroporto internacional de Damasco é, desde há vários anos, considerado como estando de facto sob controlo iraniano. Os manifestantes de Sweida estabelecem assim uma ligação entre as suas dificuldades económicas e as relações coloniais entre o regime e os seus protetores russos e iranianos. Na versão do slogan que se refere ao petróleo, a implicação é que este foi usurpado por outra potência imperial: os EUA.

Os protestos em Sweida reativaram os slogans da revolução de 2011, incluindo um dos seus principais gritos de guerra: "O povo quer derrubar o regime." O regime de Assad, que há muito afirma (exatamente como os colonizadores franceses fizeram na Síria) ser um protetor das comunidades minoritárias do país contra a maioria sunita, até agora não reprimiu os protestos (Sweida é uma área maioritariamente drusa). Mas ninguém deve esperar que esta revolta seja tolerada por muito tempo. É improvável que a resposta do regime assuma a forma de massacres químicos ou de bombas de barril; em vez disso, é provável que o seu objetivo seja matar o movimento, assassinando ou fazendo desaparecer os seus líderes e outras pessoas ativas no movimento.

Jihadistas

Nenhuma discussão sobre o imperialismo líquido que se abateu sobre a Síria se pode esquecer os "imperialistas conquistados", os campeões do islamismo salafi-jihadista, que se tornou um fenómeno global desde o seu aparecimento no Afeganistão, no início da década de 1980. O imaginário político dos islamistas salafistas-jihadistas é o da conquista, da expansão, do império e do controlo. A sua visão do mundo emana do Islão, uma religião monoteísta com uma visão solidamente universal, mas estes relacionam-se apenas com uma tradição islâmica, a da conquista, do poder e da estrita observância da jurisprudência islâmica. Nunca se ligam a outras tradições racionais, espirituais, sufis ou populares. O seu disciplinamento violento dos corpos, especialmente os das mulheres, tem um carácter inconfundivelmente fascista. São altamente elitistas quando se trata da vida comum no mundo atual e extremamente niilistas quando se trata dos costumes mundanos, das leis e das instituições desse mundo.

Caracterizá-los como elitistas pode parecer contra-intuitivo. Deixem-me explicar. Eles acreditam que apenas um número muito reduzido de pessoas são verdadeiros crentes e estão no caminho certo, e que o poder deve estar nas mãos de um homem, rodeado por um pequeno grupo de homens influentes. A natureza amoral da política das grandes potências, com o seu desrespeito pelo direito internacional e a discriminação contra os muçulmanos, é, na verdade, uma boa notícia para os jihadistas, porque estas coisas justificam a sua negação do mundo como corrupto, injusto e essencialmente anti-islâmico. Trata-se de um niilismo que se auto-realiza e se auto-perpetua.

Este islamismo militante tem estado em guerra contra o imperialismo ocidental e, até certo ponto, também contra o imperialismo russo. Mas a sua própria lógica imperialista, bem como o extraordinário narcisismo dos seus soldados de infantaria, eliminam quaisquer elementos emancipatórios possíveis na sua luta. Os seus métodos terroristas elitistas enfraqueceram os muçulmanos comuns sob o seu domínio. Sob o seu controlo, a minha cidade natal, Raqqa, estava dividida entre uma elite governante composta na sua maioria por muhajireen (imigrantes) não sírios; plebeus muçulmanos sírios explorados e brutalizados; e uma minoria muito pequena de não muçulmanos, nomeadamente cristãos, que eram vistos como gente de segunda categoria. As mulheres só podiam sair de casa se estivessem vestidas de preto.

Imperialismo

O argumento de Lenine de que o imperialismo representa "a fase mais elevada do capitalismo" levou muitas pessoas a pensar que o imperialismo está incorporado num número muito reduzido de potências capitalistas. Segundo esta lógica, só existe um imperialismo desde a Segunda Guerra Mundial: o imperialismo ocidental, com os EUA no centro e a NATO como a sua extensão militar. A União Soviética não era normalmente vista por aqueles à esquerda como imperialista: nem depois da Segunda Guerra Mundial, nem depois de ter invadido a Hungria em 1956 e a Checoslováquia em 1968, nem mesmo depois de ter invadido o Afeganistão em 1979. Da mesma forma, a Rússia de Putin não tem sido geralmente entendida como imperialista, mesmo após a anexação da Crimeia em 2014 e a intervenção na Síria em 2015. Para grande parte da chamada esquerda anti-imperialista, nem mesmo a invasão em grande escala da Ucrânia em fevereiro de 2022 foi suficiente.

Esta conceção do imperialismo deve ser posta em causa. O caso da Síria exige uma mudança de paradigma na compreensão do imperialismo e na teorização de novas práticas e fenómenos que lhe dizem respeito.

Ultra-nacionalismo, expansão, desprezo pelo direito internacional, excecionalíssimo e imaginários imperiais são características de muitas potências na era da guerra contra o terror. Com o "terror" identificado como o principal mal político a nível mundial, qualquer Estado que se junte a esta alegada guerra pode ganhar legitimidade internacional, mesmo aqueles que se dedicam a crimes de guerra e assassinatos à escala industrial. Este facto tem infligido golpes duros ao Estado de direito, tanto a nível local como internacional. Contribuiu para uma política securitizada, promoveu o banditismo entre as elites políticas e enfraqueceu a democracia e os movimentos populares em todo o lado. O imperialismo impregnou as práticas de poder em muitos países, entre os quais a Síria é, sem dúvida, o mais infeliz, com nada menos do que cinco potências expansionistas no seu território.

O conceito de imperialismo líquido é uma tentativa de captar o facto de cinco potências diferentes terem penetrado um país pequeno. Mas também fala da falta de solidez ou coerência nas estratégias, práticas, visões e compromissos destas potências. Ao contrário dos projetos imperiais do passado, na Síria não existe uma "missão civilizadora". Os recursos naturais não são um motivo primordial (embora os Estados intervenientes se tenham apoderado de tudo o que puderam apanhar, desde o petróleo e os fosfatos aos portos marítimos e aeroportos, à água e ao imobiliário). Trata-se, antes, de uma luta para controlar o futuro do país.

Há também um aspeto líquido nas relações entre as cinco potências coloniais. Na Síria, temos duas Rússias: uma delas chama-se Estados Unidos. A nível retórico (sobretudo no início da revolta), Moscovo e Washington pareciam estar em lados opostos: o Kremlin apoiava Assad e a Casa Branca denunciava-o. No entanto, em termos operacionais, a Rússia e os EUA estavam efetivamente do mesmo lado, especialmente depois de o Estado Islâmico ter entrado em cena e se ter tornado o foco central da estratégia dos EUA na Síria. A partir desse momento, Moscovo e Washington passaram a estar em sintonia: as duas potências coordenaram de perto a "desconflitualização" e os seus militares telefonavam uns aos outros diariamente para evitar que os aviões voassem no mesmo local à mesma altitude e para garantir que os ataques aéreos não atingissem os "amigos" um do outro. Apesar de toda a fanfarronice sobre o facto de Washington querer uma "mudança de regime" na Síria, foi exatamente o contrário que aconteceu. O investigador Michael Karadjis demonstrou que a política dos EUA na Síria era decididamente uma política de "preservação do regime".

Numa outra cortina de fumo retórica, o Irão reivindica uma ideologia de “resistência”, mas, na Síria, interveio para esmagar a resistência e salvar uma ditadura.

A situação é também líquida, no sentido em que nos faltam os instrumentos para a concetualizar adequadamente. A Síria é um caso único de incompreensão e descrença. Como vários observadores já referiram, a Síria pode ser a guerra mais documentada da história, com milhões de imagens, vídeos e publicações nas redes sociais que relatam todos os aspetos do conflito. No entanto, esta abundância de documentação coexiste com uma guerra de narrativas sobre o significado dos documentos. A cada reivindicação de verdade corresponde uma contra-reivindicação; a cada afirmação corresponde uma negação, e as teorias da conspiração abundam. Não só as vastas provas documentais não conseguiram criar um consenso sobre a guerra, como também, como argumenta a cientista política Lisa Wedeen no seu livro de 2019 "Authoritarian Apprehensions: Ideology, Judgment, and Mourning in Syria", o volume avassalador de material conduziu, pelo contrário, a uma "atmosfera de dúvida", gerando confusão e perplexidade generalizadas. Paradoxalmente, mostra Wedeen, "demasiada informação pode gerar a própria incerteza que a sua circulação pretende dissipar".

O socialismo num (grande) país, a União Soviética, foi transformado numa fonte de legitimação do poder absoluto que traiu o ideal socialista e conduziu à repressão e ao assassínio em massa. O imperialismo num país pequeno é uma condição inédita, se considerarmos que, historicamente, o imperialismo se caracterizava por um ou muito poucos centros imperialistas que se expandiam pela força sobre vastas áreas e continentes, ao passo que o que temos aqui são muitas potências imperialistas e sub-imperialistas a convergir para um único país. É como se vários bandidos abusassem de uma criança – a probabilidade de a criança sobreviver é muito pequena. É um crime imperdoável que deve assombrar o mundo.

Para a teórica política Hannah Arendt, a "ausência do mundo" é uma condição em que já não partilhamos instituições ou sistemas de significado comuns com os outros. É "como um deserto que seca o espaço entre as pessoas", nas palavras da filósofa Siobhan Kattago. A ausência do mundo da Síria, a sua separação das instituições comuns do mundo, enquanto grande parte do mundo está na Síria e grande parte da Síria está atirada para todo o lado no mundo, é também um presságio sinistro de um mundo cada vez mais sírio, em que a tragédia que engoliu e destruiu a Síria não está contida, mas está antes a tornar-se um cataclismo sem fronteiras.


Yassin al-Haj Saleh é um ativista e autor sírio. Ex-preso político.

Texto publicado na revista Commons.

Traduzido por Nuno Oliveira para o Esquerda.net.