Subitamente, a política institucional europeia ganhou um foco: a corrida ao armamento. Com Putin e Trump a negociarem os despojos de guerra na Ucrânia e com este último a deixar claro que a velha missão atlantista dos EUA não cabia nos seus novos planos imperialistas, um sentimento de desorientação parecia ter-se apoderado das classes políticas dominantes do continente. Foi colmatado quando a Comissão Europeia avançou com um plano para “rearmar a Europa” em nome da “segurança” e contra uma ameaça russa apresentada como iminente. Uma decisão que abriu uma exceção milionária aos velhos dogmas dos limites ao déficit e ao investimento público que têm dominado o centrão continental.
Este dossier é sobre as respostas à esquerda a esta viragem estratégica da política da União Europeia para os gastos com o negócio das armas. Nele cabem assim visões diversas, com focos e escopos diferenciados, que apresentamos como momentos de um debate em curso sobre a natureza do que se está a viver. Os artigos aqui apresentados não pretendem resumir todas as posições existentes, nem este dossier pretende ser uma síntese. Muito menos foi pensado como uma recolha de opiniões favoráveis no mesmo sentido. Assim, como em todos os casos de artigos assinados, mas por maioria de razão neste particular, cabe vincar que as ideias expressas nestes textos não refletem necessariamente as posições do Esquerda.net.
Para além disso, importa salientar que o objetivo não foi centrarmo-nos nas especificidades dos debates internos às esquerdas de cada país, mas visitar análises e argumentos mais gerais sobre a questão. Pelo que de fora ficam, por exemplo, os debates dentro da esquerda espanhola onde o governo está dividido, com o PSOE a comprometer-se com o armamentismo europeu e o seu parceiro de executivo, o Sumar, a votar esta quinta-feira a favor de uma resolução apresentada pelo deputado do Bloco Nacionalista Galego, Néstor Rego, contra o plano europeu de aumento das despesas militares e pela saída da Nato, no que foi acompanhado pelo Bildu e Podemos, com a abstenção da Esquerda Republicana da Catalunha relativamente ao ponto da Nato.
Fica igualmente de fora a polémica suscitada pelo voto favorável, esta sexta-feira, dos representantes do Die Linke na Câmara Alta do parlamento alemão, o Bundesrat, às emendas constitucionais que acabam com o travão ao endividamento público no caso das despesas em “defesa” e “segurança”, isto é nas políticas de armamento. Este vai contra a posição assumida pela direção do partido e o sentido de voto dos seus deputados na Câmara Baixa, o Bundestag.
Recorde-se que o Bundesrat representa indiretamente os vários estados do país e é composto por membros nomeados pelos governos estaduais. Em Meclemburgo-Pomerânia Ocidental e Bremen, o Die Linke integra esses governos junto com o SPD e foram estes senadores que votaram, justificando-se com as consequências em termos de “margem de manobra financeira” para governabilidade local e jurando que continuarão a lutar, não contra o pacote de investimento militar mas pelo alargamento do fim do travão da dívida às despesas sociais.
A decisão gerou revolta nas bases (por exemplo uma carta aberta enviada aos senadores na véspera da votação juntou milhares de assinaturas defendendo a rejeição das alterações constitucionais) e ainda não são claras as suas consequências políticas num partido que tinha sido dado como morto politicamente e fez nas legislativas do mês passado um regresso político impressionante a partir de uma campanha de proximidade.
A primeira peça deste dossier é a resolução da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda sobre a política internacional, hoje aprovada, que vê "a Europa na armadilha do eixo Trump-Putin e que defende que "o imperialismo dos EUA é ainda o mais agressivo e constitui uma superpotência que outras potências imperialistas procuram combinar com a existência de pólos mundiais", um processo que "avança, ora pelo conflito, ora pela cooperação entre poderes e pela integração capitalista transnacional". Para o Bloco de Esquerda, existem vários imperialismos e "nenhum deles terá um papel progressivo porque todos atuam em função dos interesses das suas elites capitalistas". Pelo que "reconhecer esta realidade é vital na elaboração de uma proposta internacionalista capaz de oferecer futuro à humanidade e conceber uma ordem democrática dos povos."
A complementá-la, uma reflexão de Luís Fazenda sobre como fugir à espiral de militarismo criada “obriga a uma posição de rutura com a NATO que é o cancro do belicismo”. Para ele, o contexto torna “muito mais claro para os europeus que esta não lhes serve de proteção”.
Já Miguel Urbán vê nesta remilitarização uma “mudança de paradigma” e uma “estratégia de choque” utilizada “não só para cumprir o seu objetivo de longa data de integração militar europeia, mas também para reforçar um modelo de federalismo oligárquico e tecnocrático” e para “promover uma reindustrialização europeia nos moldes militares”.
A especialista em cultura da paz Ana Villellas prefere criticar uma militarização que nem sequer se esforça por apresentar provas de que consegue responder às ameaças que enuncia como justificações. No seu entender, “afastar-se da lógica da força militar e promover outras formas de relações internacionais e uma arquitetura de segurança no continente baseada na segurança partilhada e no direito internacional exige coragem política, visão de curto e longo prazo e muito trabalho de coro, com os próprios cidadãos e também com outros atores de outros continentes”.
A perspetiva de Daniel Tanuro centra-se na ideia de que o pacto Trump-Putin visa dividir a Europa e impor regimes autoritários-austeritários-reacionários e belicosos nas respetivas zonas de influência. E em como isto coloca em causa o futuro dos direitos democráticos e sociais que nasceram na Europa nos séculos XIX e XX como resultado da luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista.
No mesmo sentido, Franco Turigliatto acredita que em tempos de ressurgimento do slogan do império romano “se queres paz, prepara-te para a guerra” é precisa “mais do que nunca” a unidade de “Europa diferente da capitalista e imperialista”, o que “só é possível através da atividade e da unidade das classes trabalhadoras”.
Por seu turno, Jean-Luc Mélenchon ironiza ao colocar a questão: será que o pós-Trump consiste em obedecer às suas exigências? Isto porque, revela, o que foi anunciado como gasto militar europeu por von der Leyen é afinal exatamente o valor exigido por Trump para aumento de gastos militares dos europeus. Assinala ainda que a situação tanto nos EUA como na Europa é a de uma “transição para uma economia de guerra” com o objetivo de “inaugurar uma era de expansão e de acumulação sem riscos para o capital flutuante mundial e para a enorme reserva de poupança disponível” e “reconstituir a capacidade de produção industrial”.
A ideia de estarmos perante uma economia de guerra é contraposta com números pela análise de Adam Tooze. Através dos gráficos que nos traz seguimos a história dos gastos militares da Europa e dos EUA ao longo da história contemporânea. Dados com os quais pretende ilustrar a conclusão de que “de nada servirá se agravarmos a nossa ansiedade sobrepondo à realidade atual fantasmas e visões de uma época cuja história de violência militar foi ainda mais negra do que a nossa”.
Também do ponto de vista económico, Thomas Piketty esforça-se para desmontar outro aspeto que considera um mito: a ideia da decadência da Europa que precisaria de apertar o cinto e cortar despesas sociais para apostar nas militares. O economista francês mostra que a Europa “tem vindo a registar sólidos excedentes na balança de pagamentos desde há anos” e que “mais do que uma cura para a austeridade, o que realmente precisa é de uma cura para o investimento”. Um investimento que prioritariamente deve ser no bem-estar humano, desenvolvimento sustentável e infraestruturas coletivas.
Ainda outro economista, Michael Roberts, dedica-se a desmontar uma das versões que, até à esquerda, acaba por se convencer com o projeto de “rearmamento”. Trata-se da ideia de que vem aí um keynesianismo militar europeu que melhoraria as condições de vida da classe trabalhadora, reindustrializando o continente. Ele mostra que, ao contrário do que dizem os seus, apoiantes não só não foi um keynesianismo militarque tirou a economia dos EUA da Grande Depressão como que este não funciona como os seus apoiantes pensam. E, para além disso e acima de tudo, este é, no fundo, “contra os interesses dos trabalhadores e da humanidade”.
Entre a economia e a política, Yanis Varoufakis defende uma reestruturação institucional europeia face a um sistema em que “ninguém tem legitimidade democrática para decidir nada”. Concluindo que “na ausência de instituições para implementar um keynesianismo militar, a única maneira pela qual a Europa pode se rearmar hoje é desviar fundos da sua infraestrutura social e física em ruínas” que “quase certamente levará a UE a um declínio económico ainda mais profundo”.
Do lado de fora da UE, também os britânicos assistem a uma corrida ao armamento. O deputado e ex-líder trabalhista Jeremy Corbyn denuncia as medidas do governo do partido que o expulsou da militância. Utiliza para isso o Iémen, onde para além de ataques diretos, as armas fabricadas pelos britânicos estão a matar civis. E pugna por uma “abordagem adulta da política externa” que “analisaria as causas subjacentes à guerra e atenuá-las-ia” em vez de “optar por acelerar o ciclo de insegurança e guerra” e por apoiar “aqueles que lucram com a destruição”.
A partir do mesmo ponto geográfico, Chris Bambery considera que o preço que os europeus terão de pagar é claro: “mais austeridade” e “economias que não vão a lado nenhum rapidamente”, o que fará aumentar a rejeição de governos centristas que diziam até agora não haver dinheiro para políticas sociais e pode beneficiar a extrema-direita. Na sua leitura, é evidente que “Putin não vai invadir a Polónia, os Estados Bálticos e muito menos a Europa Ocidental”.
A partir de um ponto de vista ucraniano, Hanna Perekhoda discorda desta consideração e entra em polémica direta com a França Insubmissa de Mélenchon. Como algumas outras posições vindas da esquerda nórdica e de leste, a historiadora leva muito a sério a ameaça russa: “enquanto a França, a Espanha, a Itália ou a Alemanha podem não enfrentar uma ameaça militar imediata, para a Polónia, os Estados Bálticos e os países nórdicos, o perigo é direto”, avalia, uma vez que a Rússia é uma das maiores potências militares do mundo “que violou todos os principais acordos internacionais na última década”, “bombardeia diariamente cidades ucranianas” e “ultrapassa todos os países europeus em despesas militares”.
A sua crítica centra-se no facto de lhe parecer “isolacionista” a posição de algumas esquerdas que procurariam apenas preservar de forma egoísta o seu modelo social, ignorando “ameaças à segurança” e recusando ver a Europa como projeto comum. Defende pelo contrário “uma estratégia de defesa em que a segurança não seja financiada através de cortes nos programas sociais, mas sim através do aumento dos impostos sobre os ultra-ricos”.
Christian Zeller responde-lhe diretamente dizendo que não podemos de forma alguma aprovar o armamento das potências imperialistas europeias que utilizarão o poderio para fazer valer as suas reivindicações pela força no contexto de uma rivalidade crescente por minérios escassos e caros, terras raras, terras agrícolas e até mesmo água, seja em África, na Ásia ou na Europa ou noutros locais.
Argumenta que "a rivalidade imperialista e o consumo material de armamento provocarão um aumento massivo das emissões de gases com efeito de estufa" e que este "rearmamento" conduzirá a uma distribuição ainda mais desigual de recursos e ao enriquecimento dos sectores mais perversos do capital.