ReArm Europe e a militarização dos espíritos

por

Miguel Urbán

A remilitarização tornou-se a pedra angular do novo projeto de “poder europeu” no contexto da policrise global, complementando o constitucionalismo de mercado que tem prevalecido até agora com um pilar de segurança mais forte.

23 de março 2025 - 16:40
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Soldados e bandeiras da UE
Foto Parlamento Europeu

Na semana passada, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou com pompa e circunstância um plano para rearmar a Europa face ao perigo russo e à imprevisibilidade do histórico xerife norte-americano. Um novo aumento, sem precedentes, das despesas militares europeias: até 800 mil milhões em quatro anos. Para o efeito, propõe-se a flexibilização das omnipresentes regras de disciplina orçamental, permitindo que a UE-27 se endivide; serão encorajados novos empréstimos aos Estados através da reforma do Banco Europeu de Investimento (BEI) e os governos serão mesmo autorizados a desviar para as despesas militares verbas destinadas aos fundos de coesão. O que nunca foi possível para construir uma Europa social é agora possível para construir uma Europa de guerra.

Um multimilionário “plano de rearmamento” a ser aprovado e gerido fora do escrutínio do Parlamento Europeu. Assim, Ursula von der Leyen decretou o carácter excecional da situação, recorrendo, de forma bastante questionável, ao artigo 122º do Tratado sobre o Funcionamento da UE para contornar o Parlamento Europeu. Esta militarização acelerada dos espíritos europeus por decreto contou não só com o apoio unânime dos governos da UE-27, mas também de quase todos os grupos parlamentares europeus. Em vez de se queixarem da forma como foi aprovado, contornando o Parlamento Europeu, saudaram o plano da Comissão para o rearmamento europeu. Um autêntico consenso de guerra.

No entanto, nenhum grupo mudou tanto em tão pouco tempo como os Verdes. Fundados como um partido anti-guerra, nos últimos anos tornaram-se fervorosos defensores do rearmamento e da militarização da Europa. De facto, em resposta à proposta de rearmamento de von der Leyen, os Verdes defenderam a “necessidade de investimentos urgentes na defesa” e aplaudiram o facto de “finalmente haver propostas concretas”. Estas declarações são como a noite e o dia quando comparadas com o seu manifesto fundador (1980): “A política externa dos Verdes é uma política de não-violência (...) A não-violência não significa rendição, mas a garantia da paz e da vida por meios políticos e não militares (...) O desenvolvimento de um governo civil fundado no valor orientador da paz deve ser acompanhado pelo início imediato da dissolução dos blocos militares, especialmente da NATO e do Pacto de Varsóvia”.

De propor “o desmantelamento da indústria de armamento alemã e a sua conversão para a produção pacífica” até participar no governo que mais aumentou o orçamento militar da Alemanha desde a Segunda Guerra Mundial. Ainda durante a campanha para as eleições federais alemãs de 2021, os Verdes insistiram que as armas não deveriam ser fornecidas aos beligerantes num conflito. Apenas um ano depois, a ministra alemã dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, delineou o novo duplo discurso dos Verdes: “A entrega de armas ajuda a salvar vidas”. Do nascimento de um partido mais pacifista do que verde à transformação numa força política mais militarista do que ecológica.

Uma despesa pública sem precedentes que ainda não se sabe bem como será financiada. Para já, a Comissão sugeriu a flexibilização das regras de controlo orçamental para que as despesas militares não sejam contabilizadas como défice, a facilitação de novos empréstimos para permitir um maior endividamento e até o desvio de fundos de coesão. Mas tudo isto são medidas a curto prazo, a com carácter conjuntural. Como garantiu a Presidente da Comissão, a dada altura os governos terão de reduzir os seus défices para voltarem ao ajustamento orçamental. Porque a ativação da cláusula de flexibilidade orçamental para aumentar rapidamente as despesas significa que, a médio prazo, terão de acomodar o seu orçamento, quer aumentando os impostos, quer reduzindo as despesas noutras rubricas. Como salientou o Secretário-Geral da NATO, Mark Rutte, num discurso perante o Parlamento Europeu: “Os países europeus gastam facilmente até um quarto do seu rendimento inicial em pensões, saúde e sistemas de segurança social, e nós só precisamos de uma pequena fração desse dinheiro para reforçar muito mais a defesa”.

Trata-se de uma mudança de paradigma que visa não só aumentar as despesas com armamento, mas também promover uma reindustrialização europeia nos moldes militares, como defendeu o antigo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, no seu relatório Um plano para o futuro económico da Europa. Porque, como afirma Draghi: “Num mundo em que os nossos rivais controlam grande parte dos recursos de que necessitamos, temos de ter um plano para assegurar a nossa cadeia de abastecimento - desde os minerais essenciais às baterias e às infra-estruturas de recarregamento”. Uma visão da defesa europeia definida nas Orientações Estratégicas que já não se baseia na manutenção da paz, mas na proteção de infra-estruturas críticas, na segurança energética, no controlo das fronteiras e na proteção de “rotas comerciais fundamentais”. Por outras palavras, a proteção dos interesses europeus, assegurando simultaneamente a “autonomia estratégica” da UE.

A remilitarização tornou-se, assim, a pedra angular do novo projeto de “poder europeu” no contexto da policrise global, complementando o constitucionalismo de mercado que tem prevalecido até agora com um pilar de segurança mais forte. A invasão imperialista de Putin permitiu a coesão da opinião pública com base na construção de um forte sentimento de insegurança. Uma estratégia de choque, com os tambores de guerra como pano de fundo, está a ser utilizada pelas elites europeias não só para cumprir o seu objetivo de longa data de integração militar europeia, mas também para reforçar um modelo de federalismo oligárquico e tecnocrático.


Miguel Urbán é ex-eurodeputado de Anticapitalistas. Artigo publicado no Publico.es, traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net

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