Os trabalhadores dos bares da Comboios de Portugal (CP) têm sofrido perdas de condições de trabalho com as várias transmissões de estabelecimento do serviço, que a CP subcontrata a outras empresas. Nos últimos anos, a Apeadeiro, a NewRail e agora a ITAU deixaram, de uma forma ou de outra, os trabalhadores em situações fragilizadas.
Para além da integração dos trabalhadores na CP, a Federação dos Sindicatos de Agriculutra, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal (FESAHT) exige o cumprimento integral do Acordo de Empresa que foi assinado em 2025 ainda com a NewRail, mas que a ITAU se recusa parcialmente a cumprir. Os sindicatos recorrem agora à greve, que começa no dia 1 de maio e abrange os dias 2 e 3, podendo estender-se a dia 4 para todos os que dormem fora. Estão também marcadas três concentrações, na estação de Santa Apolónia, em frente à CP e em frente a Secretaria de Estado da Mobilidade.
Em entrevista ao Esquerda.net, o ativista sindical e assistente de bordo da CP Alfredo Martinho fala sobre a disputa com a ITAU, o percurso de luta dos trabalhadores nos últimos anos e a desresponsabilização da CP.
Podemos começar com uma questão concreta, os trabalhadores dos bares da CP receberam hoje os cheques deste mês, mas mais de metade vão ficar sem o poder levantar esta semana, certo?
Exato, porque os bancos fecham às 15h e a maior parte dos trabalhadores, exceto os que estão no armazém e que conseguem sair para ir levantar, está em viagem e só vai receber no final da viagem, se calhar nem hoje. Uma empresa como a ITAU, que já tem uma estrutura e recursos humanos montados, dizer que isto foi uma falha, não parece uma coisa normal. Eu acho que isto é querer experimentar para ver se podem fazer estas coisas. A ITAU entrou há um mês, eu já passei por várias empresas que entraram e todas elas têm algum problema, porque nenhuma passa o serviço como deve ser. Mas a ITAU, pelo know-how que já tem, devia ter uma entrada muito mais suave e não está a ser. Tem sido das piores entradas que nós já vimos até hoje. Todos os dias a ligarem para trabalhadores a alterarem as escalas. E é aí que eles estão a tentar testar os limites. Já deviam ter as coisas organizadas, mas tem de ser o mês todo assim. E o próximo mês vai ser assim, porque já recebemos as escalas e elas não são equitativas.
Esses problemas são sentidos pela generalidade dos trabalhadores? Achas que terá impacto na adesão à greve?
Sim. Eu espero bem que sim. Só amanhã é que sabemos, mas acho que esta questão vai reforçar. Nós temos estado a falar com os trabalhadores. Porque irem para um feriado sem dinheiro… Precisam de dinheiro para transportes, quem tem as rendas ou prestações das casas vai ter de andar a correr, a recorrer a familiares. E eles [a empresa] nem estão preocupados.
Dizias que tem sido das piores entradas de uma empresa, podes aprofundar esse balanço?
Tem sido uma confusão. Estávamos na expectativa que iria correr melhor. Já sabemos que não há nenhuma empresa que entre e que corra tudo a 100%, mas não estávamos à espera que fosse tão mau. Ou seja, a desorganização é enorme. Sabemos perfeitamente que a NewRail não se portou bem com eles. Passaram algumas coisas que lhes interessavam e as que não lhes interessavam não passaram. E fizeram muitas encomendas, havia muito material a bordo, nós não sabíamos o que é que podíamos fazer com aquele material. Muitas vezes, com falta de condições, porque uma coisa é ter 20 sandes numa vitrina, outra coisa é ter 50. O frio não aguenta para tanto. E é nessas pequenas questões que pensávamos que a ITAU ia entrar e ter essas questões resolvidas e não tem.
Achas que nessas questões de logística dos serviços as condições se degradaram?
Não se percebe ainda porque estamos na entrada. Esperemos bem que não. Agora, se há melhoria da qualidade do serviço? Não há. Até porque há a questão do estudo feito para a CP. Nós pedíamos a integração destes trabalhadores na CP, e o estudo é contrário a isso, porque diz que neste momento a CP não tem know-how para ter este serviço a seu cargo. Mas uma das apostas é melhorar o serviço, porque isso gera mais receita para a própria empresa. E o estudo até indica que deveria haver uma partilha de rendimentos e não a concessão a ser paga pela CP à empresa prestadora de serviço. Neste momento não se está a ver nada disso.
Abrindo a conversa a uma perspetiva mais ampla, houve nos últimos anos várias transmissão de estabelecimento. A ITAU é apenas a última dessas empresas. Esse processo de rotatividade dos prestadores de serviço prejudicou os trabalhadores?
Desde a pandemia que todas as novas concessões têm vindo a degradar as condições dos próprios trabalhadores. E cada empresa que entra, nós não temos a perceção de que as coisas vão melhorar ou vão piorar. Neste momento o que se está a ver é que é a própria CP que está a criar essas condições, porque não lhes interessa. Nós lutámos contra eles, eles viram-se obrigados a ter que “assumir” os custos da Apeadeira [empresa anterior à NewRail], que faliu e nos deixou com três meses de salários em atraso. Neste momento acho que a entrada de ITAU é para degradar ainda mais o serviço, para eles terem motivos para acabar com o serviço. É esta a perspetiva que estamos a ter da maneira como a ITAU está a entrar.
E porque é que achas que acontece essa degradação sucessiva com as diferentes empresas? É uma questão de incapacidade, de falta de financiamento ao próprio serviço?
Eu acho que é a própria política da CP. Se nós formos comparar o que eles estão a fazer aos próprios trabalhadores, onde não estão a dar condições… E nós somos subcontratados e fazemos mais do que o que seria o nosso serviço. Somos o serviço de bar, mas muitas vezes apoiamos os próprios revisores. Se há um passageiro que precisa de ajuda para ser encaminhado para algum lugar, é o pessoal de bar que faz isso. Quando precisam de uma informação sobre a plataforma também é ao empregado do bar que vão perguntar. Se há alguma avaria na casa de banho é ao empregado do bar que vão contar. Se precisam de contactar o revisor é ao empregado do bar que vão ter. E eu acho que isto não está a ser equacionado pela própria CP, porque nós prestamos um serviço que não é visível. Muitas vezes os próprios clientes não entendem porque é que nós não damos algumas informações, mas é porque nós também não temos. Porque não somos empregados da CP. E é nestas condições que nós vemos que a CP não está minimamente interessada. Só mantém o serviço de bar porque há um contrato público que obriga a ter os bares nos serviços longos, porque senão já tínhamos sido substituídos por máquinas.
Há uma responsabilidade do Estado, neste caso através da CP, nisto tudo. Como é que isso se tem traduzido na relação com os trabalhadores externalizados?
Nesta questão da CP, muitas vezes o próprio sindicato e a FESAHT têm pedido reuniões à CP e a CP, ou não responde, ou então pode responder tentando encaminhar para o Ministério ou para as próprias empresas. Diz que não se pode meter quando é ela que contrata, é ela que paga e é ela que manda. Nós não entendemos porque é que o CP não intervém mais em todo este processo.
E a vossa reivindicação de integração na CP continua sem ter resposta.
Eles baseiam-se no estudo que foi feito pelo Ministério das Infraestruturas. Era para ser divulgado o relatório oficial, mas só enviaram um breve resumo do próprio relatório, nunca foi entregue o relatório em si. Ou seja, não sabemos o real conteúdo, só sabemos o resumo do que estava nesse tal relatório, que indica para já que a CP não tem condições para integrar os trabalhadores. Pelos vistos, a empresa que está a entrar também não faz melhor. Também estamos a degradar o serviço que é prestado ao cliente. Antigamente tínhamos serviços de refeições a bordo, neste momento é uma salada ou um hambúrguer. Quem viaja em primeira classe num Alfa Pendular quer ter uma refeição que antigamente era servida, em bandeja com um prato, de um chefe reconhecido, e que neste momento foi reduzido a uma sanduíche, uma salada, um hambúrguer.
Voltando à questão de transmissão de estabelecimento, certamente cada empresa teve os seus problemas. Podes fazer um balanço das lutas dos trabalhadores nos últimos anos?
Nós temos um Acordo de Empresa (AE) que já tem sido negociado desde 2005. Dizem que temos muitas condições, mas não vejo nada por ali além do que está no nosso AE. O nosso trabalho não é num local fixo. A nossa vida baseia-se em andar para a frente e para trás. Já há muitos anos, com a LSG, tivemos uma luta porque eles não queriam também cumprir alguns artigos que estavam no AE. No final, houve ali um conflito na passagem para a Apeadeiro, porque pertencia a um trabalhador da própria CP. Não sabíamos bem quando é que iria ser feita a transmissão, foi feito um pedido de reunião na Direção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT) e ficou esclarecido na altura. Nessa reunião vimos logo que este senhor não tinha condições. Ainda demorou um ano e alguns meses, até que se veio a descobrir que ele não pagava às Finanças, não pagava à Segurança Social, e no todo tinha um milhão de euros em dívidas.
E aí ficaram com salários por pagar?
Sim. Entretanto fizemos um aviso prévio de greve para ver se ele pagava. Ele deixou de comunicar com quem quer que seja. Então nós resolvemos acampar. Estivemos 54 dias acampados em Santa Apolónia. Tivemos várias lutas. Uma delas até foi à porta da CP, que continuava a dizer que a responsabilidade não era deles, que quando contrataram a Apeadeiro estava tudo regularizado. Com a ajuda do próprio Ministro das Infraestruturas conseguiu-se que eles fizessem um concurso extraordinário. E foi quando entrou a NewRail, mas começou logo a dizer que não tinha de pagar o que estava em atraso, que o pouco que davam era porque eram benevolentes. Mas nós sabíamos que o próprio valor que nos estava a dar já tinha sido combinado para pagar essas dívidas. E nós na altura tínhamos um AE assinado com a Apeadeiro, também não queriam aceitar esse AE.
Qual foi a resposta dos sindicatos?
Começámos logo com algumas greves e ele acabou por assinar um novo AE e acabou por cumprir. Entretanto, tivemos mais algumas lutas por causa dos aumentos e de algumas condições. Continuam a haver algumas condições, nomeadamente a nível de armazéns, de equipamentos, de fardas, que são más. Cada trabalhador só tinha uma farda. Trabalhar quatro dias a viajar sem ter uma farda era complicado. E mais recentemente houve este anúncio de concurso internacional, para três anos. Logo aí ficámos apreensivos porque acabaram por haver dois concursos. Houve um concurso para dois meses, que foi entre janeiro e fevereiro, que se estendia por duas renovações, que seria até ao final de março. E houve o concurso que seria de dois anos e nove meses. Já estávamos em negociações desde novembro para a assinatura das alterações dos ordenados para os aumentos de 2025, que realmente só foi assinado no dia 7 de fevereiro. E agora a 1 de abril entrou a ITAU, que quer contestar esse Acorde de Empresa de 2025
Porque é que sai a NewRail?
Perde o concurso. Ficou em terceiro. Nós percebemos que houve ali uma jogada da própria NewRail que fez aumentar a massa salarial. Começámos a ver que sistematicamente pediam a pessoas para fazer folgas, não se importavam de pagar horas extra. Estávamos a ver que havia ali um aumento. Em dezembro e em janeiro vimos que houve um aumento real do ordenado por base das horas extra e das folgas trabalhadas. Porque a empresa queria que a própria CP desembolsasse mais um pouco. Porque já sabia que íamos ter mais bares dos comboios de Évora. Achámos toda esta situação estranha. De um momento para o outro, disseram que assinavam o AE nas condições que teríamos de abdicar do mês de janeiro e do mês de fevereiro. O aumento só seria a partir de março. Entretanto, quando assinámos o AE, soubemos que tinha sido a ITAU a ganhar.
E como é que entra a ITAU?
Houve uma reunião no Porto, com a FESAHT, e a ITAU comprometeu-se a cumprir a lei e o AE. Quando entrou já voltou com a palavra atrás e disse que só se limitava a cumprir os aumentos, e que não concordava com as 35 horas. Ora, com os aumentos dos salários já nem podiam voltar atrás, porque a própria lei diz que não se pode baixar os ordenados. Ou seja, já tinhamos recebido o aumento em março e já não podiam voltar atrás.
Portanto, não aceitam o Acordo de Empresa de 2025?
Eles querem aplicar o Acordo da Empresa de 2024. Mas só no de 2025 é que vem a aplicação das 35 horas, que foi aplicada no mês de março. Até porque há escalas em que é quase impossível descer as horas sem contratar mais gente. Neste momento, a ITAU contratou muita gente, até porque tinha que contratar mesmo por causa dos comboios de Évora, e até se conseguem fazer as 35 horas. Mas não se faz porque, segundo o que eles dizem, não querem que isso se espalhe às outras unidades. Nós somos bares, as outras unidades deles são cantinas. E estão a tentar empurrar-nos para o contrato coletivo das cantinas porque tem o banco de horas, tem o subsídio de alimentação pago em cartão, podem transferir os trabalhadores de uma unidade para outra, o que o nosso AE não permite.
Para a greve, que começa amanhã, que reivindicações têm para além do cumprimento do AE?
Para além da aplicação do Acordo de Empresa de 2025, que estejam abertos à negociação, impedir que estes novos contratos já venham com a aplicação do contrato de trabalho coletivo das cantinas. Para nós não faz sentido, nós não somos cantinas, até porque o trabalho é diferente. E eles já estão a obrigar os novos trabalhadores a esse contrato coletivo. Já estão a obrigar os novos trabalhadores a assinarem contratos já especificando esse contrato coletivo. O que nós não queremos.
A empresa está aqui há um mês e já há uma concentração marcada. Achas que isso é um sinal de que vai ser uma luta complicada contra esta empresa também?
Sim. Nós queremos dar já o sinal de que não estamos aqui para abdicar seja do que for. Porque foram eles que entraram, nós já cá estamos. Eles é que querem vir mudar as coisas. Se eles querem mudar, estamos abertos ao diálogo, mas que sejam coisas que beneficiem os trabalhadores, não é que vão prejudicar. Neste momento o que eles estão a apresentar é prejudicar a vida dos trabalhadores, é desregular horários. O banco de horas é desregular horários. O que nós queremos é que tentem fazer escalas equitativas e que reduzam os horários para que quase toda a gente tenha as 35 horas. Não é muito difícil de aplicar. Eles não têm a vontade, porque vêm com a questão que não se pode espalhar às outras unidades.
A partir daqui, a luta para que a empresa cumpra o AE de 2025 vai-se desdobrar noutros formatos? Será a luta dos próximos tempos?
Vai depender do feedback da própria CP. Aliás, uma das concentrações vai ser à porta da CP. Vai depender do feedback da própria Secretaria de Estado da Mobilidade, e da própria resposta por parte da empresa, que até hoje não tem sido nenhuma. Têm sido só portas fechadas. Nós só temos contacto com a responsável pelo serviço. Ou seja, só nas reuniões é que houve troca de informações, porque de resto, até hoje mesmo, nós para sabermos que iríamos receber em cheque tivemos de andar atrás. Estas informações deviam ter sido prestadas por eles. Não sou eu que tenho que andar atrás deles.