Os médicos internos representam cerca de um terço dos clínicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e arcam com uma elevada carga de horas extraordinárias, devido à escassez de recursos.
Esta semana, estes profissionais de Saúde promoveram uma paralisação de dois dias, convocada pelo Sindicato Independente dos Médicos, que contou com uma adesão expressiva.
O Esquerda.net falou com Catarina Metelo Coimbra, médica interna e Presidente da Associação de Internos de Medicina Geral e Familiar da Zona Norte, sobre quais são as condições de trabalho destes profissionais e as suas reivindicações.
Os médicos internos representam cerca de um terço dos clínicos do SNS e são fundamentais para muitos serviços, nomeadamente as Urgências. Podes explicar-nos em que é que consiste o internato médico?
Em Portugal, para se poder ser médico especialista existe um longo percurso de formação a percorrer. Esse caminho tem início com a entrada na faculdade, na maior parte dos casos aos 18 anos de idade. Se correr tudo bem, ao fim de 6 anos de curso, temos o grau de Mestre em Medicina. Tornamo-nos médicos, podemos inscrever-nos na Ordem dos Médicos, mas nessa fase ainda não somos autónomos: não podemos exercer sem supervisão, nem sequer passar uma receita. A nossa formação não termina aí. Segue-se um período de especialização, o Internato Médico, durante o qual já não somos estudantes, mas sim trabalhadores da função pública. O ingresso no internato é feito através de concurso público e prevê um contrato de trabalho de 40 horas semanais, com o respetivo salário. O internato médico está dividido em duas partes: uma formação geral e uma formação especializada.
A formação geral corresponde a um período de 1 ano que permite ao médico interno tornar-se autónomo. Nessa fase já fazemos turnos de urgência, colaboramos na atividade dos internamentos dos hospitais e na realização de consultas nos centros de saúde, sob supervisão. Concluídos esses 12 meses, com base nos resultados da prova nacional de acesso à formação especializada (um exame nacional que decorre uma vez por ano), podemos continuar o nosso percurso e escolher uma área de especialização. Os colegas que optem por não prosseguir tornam-se médicos autónomos sem especialidade.
A formação especializada é um período que pode durar entre 4 a 6 anos e que permite ao médico interno tornar-se especialista: Cardiologista, Cirurgião Pediátrico, Médico de Família, Radiologista, Obstetra… Atualmente são 48 áreas de especialização possíveis. Os programas e objetivos de formação estão definidos em Diário da República. É uma fase muito exigente, em que estamos plenamente integrados na atividade clínica dos serviços. Em paralelo, estudamos muitas horas para podermos estar atualizados, temos provas de avaliação anuais, preparamos casos clínicos, fazemos investigação e apresentamos trabalhos em reuniões e conferências, aspetos fundamentais para nos formarmos. À saída, temos um exame final que decorre ao longo de vários dias (com componente teórica, prática e curricular) e a partir daí, sendo aprovados, somos médicos especialistas. No total, são 11 a 13 de anos de formação.
Em termos gerais, em que condições trabalham atualmente os médicos internos no SNS?
Os médicos internos são parte fundamental da prestação de cuidados aos utentes do Serviço Nacional de Saúde. Integramos as equipas que trabalham no internamento, realizamos consultas de forma autónoma, fazemos parte das escalas do Serviço de Urgência. Quando há carências no SNS (seja de espaço, materiais, ou por falência do sistema informático), a nossa formação é afetada, para além do impacto que estas falhas têm no atendimento aos utentes. A falta de profissionais também afeta a nossa formação: somos orientados por médicos especialistas que, de forma altruísta, utilizam o seu tempo pessoal para nos formar. Se estes médicos continuarem a abandonar o SNS, para além de todos perdermos profissionais no ativo, os médicos internos ficam sem formadores experientes e qualificados. É importante referir que a maior parte não recebe qualquer suplemento remuneratório por nos orientar.
No nosso trabalho, faz parte das 40 horas semanais assegurar o Serviço de Urgência de acordo com o programa formativo, até um máximo de 12 horas semanais. O que acontece é que somos regularmente chamados a completar escalas sob a forma de trabalho extraordinário, realizado para além das 40 horas. Esse trabalho, sendo extraordinário, deveria ter lugar apenas quando fosse indispensável para assegurar o normal funcionamento dos serviços, mediante situações pontuais (como as férias), ausências de média/longa duração (como as licenças) ou necessidades de reforço sazonal (por exemplo, na época da gripe). Contudo, como há uma crescente escassez de recursos humanos, os serviços passaram a depender da realização de trabalho extraordinário para cumprirem a sua atividade “normal”. A exceção passou a ser a regra. Estas horas extra acabam por ser impostas, mais do que propostas, o que tem provocado uma enorme sobrecarga de trabalho aos profissionais médicos, em particular aos médicos internos.
Quais são as vossas principais reivindicações?
A principal reivindicação é a da inclusão do Internato Médico como o primeiro patamar da carreira médica. A formação médica pós-graduada corresponde a trabalho efetivo, dura entre 5 e 7 anos, e por esse motivo deve ser valorizada para efeitos de progressão da carreira. Não faz qualquer sentido entrar na carreira médica apenas por volta dos 30 anos de idade, quando estamos a trabalhar em pleno nessa atividade desde os 23 ou 24.
Importa também que a grelha salarial seja revista. Os médicos internos têm um trabalho altamente qualificado e uma imensa responsabilidade na prestação autónoma de cuidados aos utentes. Os salários atualmente correspondem, em termos líquidos, a cerca de 7,66 €/hora. É urgente rever este valor, que não só não corresponde ao valor do trabalho desempenhado como nem sequer tem acompanhado o aumento do custo de vida.
Temos ainda a destacar que a nossa formação não se esgota na atividade clínica e no estudo individual em casa. Para nos formarmos recorremos a cursos e estágios, alguns dos quais no estrangeiro, que saem do nosso bolso. Contactar com um serviço que se especializou numa determinada doença, ir aprender uma técnica cirúrgica, estagiar num centro de investigação oncológica, fazer um curso de Suporte Avançado de Vida (essencial para trabalhar em emergência) ou até uma especialização em Cuidados Paliativos… São competências que nos tornam médicos mais completos, quase “obrigatórias” nalgumas especialidades. De acordo com um inquérito do Sindicato Independente dos Médicos, 60% dos internos gasta mais de 1000€ por ano na sua formação. Não existe qualquer apoio previsto para estas ações formativas. E como os salários são baixos… Às vezes acabamos por desistir porque simplesmente não conseguimos suportar esses custos, o que hipoteca a qualidade da nossa formação.
Por que razão consideraram necessário avançar para formas de luta próprias, ou seja, separadas dos restantes médicos, nomeadamente a greve de 23 e 24 de agosto, convocada pelo Sindicato Independente dos Médicos?
Nos últimos tempos tem havido um número sem igual de greves de médicos, por falta de resposta da tutela às propostas sindicais. Os sindicatos estão há meses em negociações e não há resultados à vista. Os médicos não estão a ser ouvidos. A taxa de adesão às greves tem sido elevadíssima, o que revela o descontentamento dos profissionais de saúde e a enorme preocupação com o estado do SNS, que é de decadência.
Ora, os médicos internos são mais de 10 mil, correspondem a um terço dos médicos do SNS. É um sistema que já não existe nem funciona sem a força do trabalho dos médicos internos. Sem o nosso esforço, rapidamente colapsava. Além disso, a nossa especialização é feita à conta de um enorme sacrifício pessoal, familiar e económico. Somos pessoas. Merecemos condições de trabalho dignas e justas. Sendo força motriz do SNS, fez todo o sentido avançar com esta forma de luta própria, para podermos sensibilizar a população sobre as particularidades do Internato Médico e as circunstâncias em que o mesmo é realizado. A greve dos médicos internos teve uma adesão muito expressiva, entre os 85 e os 90%. É um sinal que deve ser encarado com seriedade.
Consideras que esta é uma luta não só dos profissionais de saúde mas de toda a população pela sobrevivência do SNS?
Sem dúvida. Estamos em luta para que haja melhores condições de trabalho no SNS, e o SNS é para todos. A título de exemplo, o trabalho extraordinário tem sido amplamente utilizado nos centros de saúde para dar resposta a listas de utentes que se encontram a descoberto. Há mais de 1,7 milhões de utentes sem Médico de Família. Nos hospitais, os tempos de espera para uma primeira consulta têm continuado a aumentar progressivamente. Os utentes aguardam por uma consulta muito mais do que o tempo regulamentado, o que pode até agravar a sua situação clínica. As cirurgias estão com atrasos, apesar de centenas de horas extraordinárias realizadas por médicos especialistas e médicos internos numa tentativa de reduzir as listas de espera. Tudo isto tem impacto na saúde e na satisfação das pessoas, que ficam revoltadas. Há falta de médicos dentro do SNS. Para se evitar o colapso, é preciso que os recursos humanos fiquem, em vez de emigrarem ou saírem em definitivo para o setor privado. Esta deve ser uma luta de todos, profissionais e utentes, para que as condições do SNS sejam melhoradas e assim sejam prestados cuidados de saúde de qualidade à população.