Na rua do Benformoso, vão passando carros e motorizadas que se ajeitam entre as pessoas que caminham na rua. Há roupa estendida à janela, algumas pessoas sentadas no café e outras que correm atarefadas para o trabalho. Uns edifícios estão a ser renovados, mas outros, como em várias áreas de Lisboa, estão mais degradados.
Na manhã de quinta-feira, Mariana Mortágua caminha pela rua acompanhada de uma comitiva do Bloco de Esquerda. Ao seu lado estão Farid e Rajiv, que lhe vão indicando as mais recentes mudanças na rua e os seus cafés de preferência. A coordenadora do Bloco de Esquerda visita a Rua do Benformoso para falar com os trabalhadores imigrantes que lá vivem e têm os seus estabelecimentos, mas também para mostrar às pessoas que a zona é segura.
Em frente ao restaurante Taste of Lahore, a dirigente bloquista é parada por alguns imigrantes que a reconhecem e querem tirar uma selfie. Atraídos pela multidão e pelas câmaras dos canais televisivos, várias pessoas se aproximam com o telemóvel para ver o que se passa e tirarem fotos. Os carros continuam a passar, tentando contornar o grupo.
Uma senhora que passa na rua troca dois dedos de conversa com outra, depois encosta-se com cumplicidade e sorriso a um seu vizinho do Bangladeche. A falar com a multidão, critica algumas zonas onde há mais lixo, porventura acumulado devido ao confronto de Carlos Moedas com os trabalhadores da higiene urbana. A vida continua ali, depois da rusga policial que encostou várias dezenas de imigrantes à parede e que chocou a esfera pública. A operação tinha como objetivo a busca de armas, mas só encontrou duas. E Luís Montenegro fez questão de criar espetáculo.
A rua alarga-se e, um pouco mais à frente, Mariana Mortágua volta a parar em frente ao restaurante Matri Vandar Sweets. Ali se encontra com amigos de Farid e Rajiv que também moram na área, e que cumprimentam a coordenadora bloquista com “Bom dia!”. Todos eles falam em português, e inevitavelmente chega-se ao tema da operação policial.
Em conversa, o grupo afirma perceber a importância de manter a segurança naquela zona. “Mas não somos terroristas”, lamentam. “Queremos viver bem”, diz Farid. “São bem-vindos”, responde Mariana. Rajiv explica que, quando há distúrbios na rua do Benformoso e os próprios trabalhadores imigrantes tentam chamar a polícia, “ninguém vem”, por isso não percebe a lógica da rusga.
Antes de convidarem a dirigente bloquista a ir beber um chá ao Dhaka Restaurante, agradecem pela visita e afirmam ser importante que os políticos “vejam a situação”. A coordenadora do Bloco de Esquerda devolve o agradecimento mas diz que o importante “é que as pessoas que têm uma ideia errada possam vir e ver por si próprias”.
Sociedade
Carta aberta critica ação policial no Benformoso e apela à manif de sábado
“É nosso dever criar uma barreira de resistência”
“O motivo desta visita é colocar em imagem o que os dados dizem”, explica Mariana Mortágua aos jornalistas. “Não há uma associação entre criminalidade e imigração e a população imigrante em Portugal trabalha e desconta”.
Segundo a dirigente bloquista, esse é o retrato desta rua, onde falou com os trabalhadores imigrantes sobre as dificuldades de regularização, mas também sobre a operação policial. “Mais do que medo, há um sentimento de vergonha, de pessoas que trabalham, que imigraram para tentar ter uma vida melhor, pagam os seus impostos, e que de repente são encostados à parede sem nenhum motivo e sem nenhuma suspeita”.
“Temos um governo que decidiu fazer da campanha populista de extrema-direita, a sua forma de disputa com o Chega”, disse a coordenadora do Bloco de Esquerda. “Faz uma lei para tirar aos imigrantes o direito de poder aceder ao SNS, faz uma lei para acabar com a manifestação de interesse, e ordena operações policiais em vários bairros da cidade. É uma política de ataque aos imigrantes”.
Apelando à manifestação do próximo sábado, Mariana Mortágua garantiu que “não vamos olhar para uma operação policial daquelas e virar para o lado” e que “não vamos ver o discurso de ódio a crescer em Portugal e a ser usado como arma política e fingir que nada aconteceu”. “É nosso dever democrático e cívico criar uma barreira de resistência a este momento político”, concluiu a coordenadora do Bloco de Esquerda.
Da vergonha à dignidade
Farid Ahmed Patwary, que acompanhou o Bloco de Esquerda na visita à rua, é jornalista e tradutor. Está a distribuir panfletos para a manifestação de sábado em bengali enquanto fala com Mariana Mortágua. Considera que o que aconteceu a 19 de dezembro causou “vergonha” às comunidades imigrantes em Portugal.
“Passa uma má imagem dos imigrantes e isso causa muita vergonha”, diz. “Por isso, organizamos a manifestação pela dignidade. É isso que queremos mostrar”. Farid explica que as pessoas que emigram para Portugal querem viver uma vida melhor. “Há muitos estudantes, comerciantes, várias pessoas, não são todos trabalhadores destes restaurantes”.
O tradutor defende que a comunidade imigrante traz coisas boas a Portugal, para além dos trabalhadores, e que isso nem sempre é valorizado. “Em todas as partes do país há imigrantes, há uma grande comunidade”, diz. “Muitos dos comerciantes do Bangladeche têm clientes portugueses, que gostam dos produtos e da comida, por exemplo”.