Crise climática

Porque é que a indústria fóssil já nem se preocupa com o greenwashing?

07 de novembro 2024 - 10:16

Nos últimos anos, a indústria fóssil mudou a sua narrativa sobre a crise climática. Passaram de planos para expansão de energia renovável para voltarem a alimentar grandes produções fósseis, e as margens de lucro estão no centro do problema.

porDaniel Moura Borges

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Empresas fósseis
Montagem de Esquerda.net

Longe vão os tempos em que as grandes empresas de combustíveis fósseis traçavam grandes projetos para a descarbonização ou o net zero. Planos que as associações ambientalistas foram desmascarando ao longo dos anos, por não saírem do papel, ou representarem esforços pequenos e localizados para resolver um problema global. Mas que significavam que as empresas percebiam pelo menos a necessidade de serem percecionadas como preocupadas com a crise climática.

No virar da década, com uma crise pandémica a afetar a normalidade económica e social e ainda no rescaldo de um forte movimento de massas por ação climática, as maiores empresas petrolíferas do mundo procuraram concretizar a narrativa de que tinham uma forte convicção e um empenho financeiro na transição energética. A Shell chegou mesmo a comprometer-se com uma política de net zero, enquanto a BP prometeu cortar emissões e a ExxonMobil vangloriou-se de procurar formas de combustíveis alternativas, transformando algas em combustível.

Em 2020, o preço do barril de petróleo nos Estados Unidos da América chegou mesmo a descer abaixo de zero pela primeira vez de sempre. Esse fenómeno, fruto de uma descida de procura no contexto da pandemia que funcionou em contra-mão com o aumento de oferta, foi a pedra angular para as empresas petrolíferas venderem a sua estratégia verde e comprometida com o futuro da humanidade.

“A década que começa é crítica para o mundo no combate às alterações climáticas, e para efetuar as mudanças necessárias nos sistemas globais de energia, vamos precisa da ação de toda a gente”, dizia um comunicado da BP em agosto de 2020. Na verdade, não era a primeira vez que essa empresa assumia um compromisso ‘verde’. Em 2002, o CEO da empresa aproveitou um discurso na Universidade de Stanford para dizer que “precisamos de reiventar o negócio da energia” e que “precisamos de ir além do petróleo”.

Com esse lema em punho, a empresa continuou a investir fortemente em infraestruturas petrolíferas, mas investiu pela primeira vez em energias renováveis de forma séria. Mas o sucesso não durou, porque em 2006 um dos oleodutos da BP rebentou, causando um dos maiores derrames de crude de sempre no Alaska. Quatro anos depois, uma explosão na plataforma petrolífera Deepwater Horizon, da BP, causou o maior derrame de petróleo de sempre. A perceção pública da empresa piorou devido aos impactos ambientais das suas explorações de petróleo, e para sobreviver à pressão financeira a empresa foi vendendo os seus ativos na área da energia renovável.

Em 2023, a BP voltou a abandonar os objetivos que tinha estabelecido para si própria, nomeadamente a meta de cortar 35% das suas emissões de gases com efeito de estufa até 2030, estabelecendo ao invés uma meta de entre 20% a 30%. Este ano, abandonou qualquer tipo de metas de corte de emissões. Atrás da BP, também a Shell e a Exxon anunciaram contenções ou desistências na sua política climática. A primeira admitiu mesmo que não iria aumentar o seu investimento em energias renováveis, enquanto a segundo cortou o financiamento do seu projeto de transformar algas em combustível.

Os “grandes investimentos” das petrolíferas nas energias renováveis nunca se afiguraram como solução. O referencial de Petróleo e Gás publicado pela World Benchmarking Alliance e pela organização não-governamental ambientalista CDP em 2023 dava conta de que, apesar da retórica, nenhuma das grandes empresas de petróleo e gás natural têm de facto planos para fazer uma transição energética. As descobertas do referencial indicaram que “o setor de petróleo e gás não fez progresso praticamente nenhum para atingir as metas dos Acordos de Paris desde 2021” e que “maior parte das empresas não disponibilizam os seus investimentos em tecnologias baixas em emissões”.

Mas a própria narrativa das empresas mudou. Agora, assumem os investimentos em combustíveis fósseis abertamente. A BP, por exemplo, anunciou uma série de novos investimentos desde o Médio Oriente até ao Golfo do México, para aumentar a quantidade de petróleo e gás produzidos. A Shell admitiu que os seus planos de investimento punham um travão ao investimento nas energias renováveis e apostavam no gás natural. A Exxon assumiu que a procura mundial por combustíveis fósseis em 2050 será igual à deste ano e que uma descida nessa procura poderia levar a um choque no mercado energético. Porquê?

Como a invasão da Ucrânia abriu espaço a uma nova narrativa

Os preços de energia vinham a subir constantemente durante 2021. No dia 24 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin anunciava uma “operação militar especial” no leste ucraniano e as forças militares russas invadiam o Donbas. O início da guerra na Ucrânia foi o catalisador para uma nova crise na energia, que fez a inflação disparar e colocou em questão o modelo energético vigente, sobretudo na Europa.

Entre fevereiro e abril desse ano, os preços da energia – sobretudo da energia fóssil – atingiram um pico superior a qualquer outro dos últimos anos. A liderar os combustíveis mais caros estava o gás natural proveniente da Europa, devido às novas relações hostis com a Rússia. A Agência Internacional de Energia chamou a esse período a “primeira crise de energia verdadeiramente global”.

Em agosto, um pico ainda maior. Mas o aumento dos preços de energia, devido à disrupção das cadeias mundiais de fornecimento com foco na Rússia, serviu também de pretexto para que as grandes empresas da indústria fóssil amontoassem lucros. Na União Europeia, por exemplo, o mercado marginalista significou que as empresas lucraram com o aumento dos preços do gás natural em contraste com as outras fontes de energia.

O que é o mercado marginalista?

O mercado de energia da União Europeia está estruturado de forma a que o preço da energia seja igual ao preço da energia mais cara de produzir. Isso significa que as grandes empresas vendem energia produzida de forma barata por fontes renováveis ao mesmo preço que a energia produzida de forma mais cara por combustíveis fósseis.

As empresas de energia começaram a reportar lucros extraordinários por toda a Europa e até os intervenientes mais institucionais começaram a defender um imposto sobre os lucros excecionais, entre eles a União Europeia, o FMI e o secretário-geral da ONU.

A Galp duplicou os lucros em 2022, atingindo um valor recorde de €881 milhões, e aproveitando para aumentar os dividendos de forma a beneficiar os acionistas. No segundo semestre desse mesmo ano, a BP registou o maior lucro desde 1998, no valor de €8,5 mil milhões, que também utilizou para aumentar os dividendos. Também a Exxon mais do que duplicou os lucros, registando um crescimento de 142% e obtendo €55,7 mil mihões durante todo o ano de 2022.

Se a descida do preço do petróleo em 2020 tinha forçado estas empresas a preparar o terreno para uma campanha sobre energias renováveis, os lucros extraordinários de 2022 confirmaram que a indústria ainda tinha longevidade e capacidade de bater recordes.

A invasão da Ucrânia serviu de justificação para que as empresas continuassem a investir em combustíveis fósseis. Sob as bandeiras da “segurança energética” e da “soberania energética”. A indústria energética redobrou a sua aposta nos combustíveis fósseis na Europa e nos Estados Unidos da América. Ao mesmo tempo, a bandeira da “transição energética” passou a ser carregada pelas instituições nacionais e supranacionais, mas sem responsabilizar as empresas.

A União Europeia, com o plano Repower EU, propôs-se a aumentar o peso das energias renováveis no seu mix energético, enquanto os Estados Unidos da América propuseram cortes nos impostos às empresas que investissem em energias renováveis. É certo que todas as grandes empresas de combustíveis fósseis têm investimentos “verdes”, mas se em 2020 anunciavam a prioridade no investimento dessas tecnologias, hoje anunciam que a prioridade é novamente o petróleo e o gás natural.

A narrativa “verde” foi abandonada pela indústria fóssil porque as empresas perceberam que não precisavam dela para manterem a sua credibilidade e rentabilidade. Depois do “choque” da queda do preço do petróleo, a invasão da Ucrânia e a desestabilização das cadeias de oferta globais garantiu não só a base económica, como a justificação narrativa para que a BP, Exxon, Shell, Galp e outras continuem a investir e a desdobrar os seus projetos de combustíveis fósseis.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.