Como consequência da instabilidade social, política e económica, de guerras, escassez de recursos e, cada vez mais, das alterações climáticas, um número crescente de pessoas veem-se obrigadas a abandonar os seus países e a atravessar fronteiras em busca de segurança, estabilidade e futuro. As migrações internacionais são um assunto crucial e incontornável no futuro da União Europeia, que não pode ser abandonado às agendas da extrema-direita e ao paradigma securitário que já deu provas de ineficácia, onerosidade e desumanidade. Os níveis de mortalidade, de precariedade e de violência de que são vítimas milhares de migrantes e refugiados no espaço europeu são uma consequência direta da ineficácia e do fracasso moral das políticas europeias de fronteiras, que precisam de ser revertidas. A resposta célere e humana da União à deslocação de milhões de refugiados e refugiadas no seguimento da invasão da Ucrânia pela Rússia foi inédita e deve ser tomada como exemplo, como a única resposta capaz de realismo, justiça e humanidade na Europa.
As populações imigrantes fazem e sempre fizeram parte da construção do projeto europeu. A sua presença no território europeu só pode ser acompanhada de políticas de proteção, de integração e de acesso à igualdade de direitos. É urgente recusar narrativas de ódio e de divisão, tal como a sua instrumentalização que vai de par com a perda progressiva de direitos humanos no espaço europeu. Não podemos permitir que se tornem meros instrumentos de discursos populistas e xenófobos que os agitam como uma ameaça aos valores europeus, quando são essas mesmas forças políticas que hoje criam obstáculos concretos à paz social na Europa. Pelo contrário, estamos convictos que só uma política migratória realista, justa e humana poderá defender direitos, combater os discursos de ódio, preservar o Estado de direito e fortalecer a democracia, a paz e a coesão social. Só assim conseguiremos combater as forças de extrema-direita que são uma ameaça para o projeto europeu e que se servem de bodes expiatórios, enquanto criam bases para uma perda generalizada de direitos das populações europeias.
Segurança de pessoas versus segurança de fronteiras
A Europa tem de virar a página dos últimos quarenta anos do paradigma securitário de gestão de fronteiras. A dissuasão da migração tornou-se prioridade a nível europeu, em detrimento do direito à proteção internacional, de mecanismos de acolhimento e de integração, da antecipação de crises, e, cada vez mais, do próprio Estado de Direito. Os fundamentos desta abordagem permaneceram em grande medida inalterados, sendo a única evolução digna de nota o facto de a sua lógica se ter radicalizado sob a pressão da crescente influência eleitoral da extrema-direita. A ineficácia e o fracasso moral das políticas europeias de migração têm sido evidenciados por relatórios sobre os custos financeiros e humanos desproporcionais da dissuasão da mobilidade intra-europeia e por tragédias como o incêndio no campo de Moria em 2020, sobrelotado com mais de 12.000 requerentes de asilo. Na última década, cerca de 30 mil pessoas morreram no Mediterrâneo, sem que isso tenha conduzido a uma viragem de paradigma ou à implementação de mecanismos susceptíveis de reduzir esta mortalidade, que tem vindo a aumentar ano após ano. Este modelo já deu provas de ser ineficaz e desumano, incapaz de gerir crises, de defender direitos, de garantir segurança tanto para os que migram como para os que acolhem.
Direitos humanos
Abandonados no deserto: como a UE financia os crimes da “gestão migratória”
O acolhimento dos refugiados ucranianos foi determinante para podermos hoje afirmar que a Europa é capaz de solidariedade entre Estados-membros, por um lado, e com as populações deslocadas, por outro. As medidas implementadas em março de 2022 pelos 27 Estados-membros romperam com a lógica de bloqueio e permitem-nos hoje tirar vários ensinamentos. Em primeiro lugar, e mais importante, constatar que a abordagem securitária das migrações não é imutável. As alternativas não são apenas concebíveis, mas também viáveis. A Europa mostrou que tem capacidade de antecipação e de resposta às necessidades básicas, de dar prioridade às pessoas. Em segundo lugar, o acolhimento dos cidadãos ucranianos envolveu inovações políticas concebidas para serem temporárias e excepcionais - passagens seguras e legais, mecanismos de integração, acesso ao trabalho e à igualdade de direitos -, cujo alargamento e generalização permitem uma mudança de paradigma, uma abordagem realista, respeitadora dos direitos humanos e baseada no acolhimento e na integração, como única resposta pertinente aos desafios que a política europeia enfrentará nas próximas décadas.
Integração e igualdade de direitos
Nos vários países da UE, trabalhadores migrantes constituem uma parte cada vez maior da população ativa, desempenham funções fundamentais, mas estão também na primeira linha das piores condições laborais. Dificuldades e atrasos nos processos de regularização tornam a sua situação laboral particularmente precária, contribuindo para uma erosão do poder negocial dos trabalhadores e, por conseguinte, dos seus direitos. A ativação excecional em março de 2022 da “Diretiva relativa à proteção temporária” da União Europeia permitiu que todos os cidadãos ucranianos recebessem automaticamente um estatuto jurídico num Estado-membro, após um simples registo junto das autoridades nacionais. Este estatuto permite-lhes ter uma existência legal, bem como o acesso ao mercado de trabalho, aos cuidados de saúde e à educação dos seus filhos. Ao mesmo tempo, este mecanismo inverte completamente a lógica de suspeição que tem prevalecido na política de asilo, evitando sobrecarregar as pessoas com procedimentos inquisitivos. Pelo contrário, a sua integração rápida é facilitada.
Políticas migratórias restritivas promovem diferenças de tratamento e exploração laboral, por isso só a harmonização de políticas de asilo e de regularização céleres e eficazes garantem a igualdade de direitos a quem vive e trabalha na UE. Para além do mais, só uma política de regularização transparente e garantias de igualdade de direitos poderá agir de forma preventiva e protetora sobre as situações de discriminação racial dos imigrantes face às instituições e sociedades de acolhimento. A prevenção da exclusão social e a luta anti-racista são indissociáveis de uma política de migrações justa.
Defesa do Estado de Direito democrático e do Direito Internacional
Sendo que a dissuasão continua a ser a principal prioridade das políticas europeias de migração - o novo Pacto europeu sobre o Asilo e as Migrações só veio reforçar esta tendência -, os instrumentos utilizados para atingir este objetivo são cada vez menos compatíveis com os valores de paz, justiça e segurança do projeto europeu, com o respeito dos direitos fundamentais dos migrantes e têm vindo a integrar progressivamente práticas coercivas que colocam em risco os princípios do Estado de Direito democrático. A repressão a todo o custo não só tem importantes custos humanos e económicos, mas representa também uma ameaça aos valores europeus.
A externalização da gestão de fronteiras, através de acordos bilaterais com Estados (Turquia, Líbia) que ameaçam a integridade e a dignidade humana das suas populações, promove a terceirização de violações sistemáticas de direitos humanos enquanto instrumento de política migratória europeia. O resultado inevitável destas colaborações são milhares de mortes em naufrágios provocados pela prática ilegal de pushbacks, contando com a colaboração da agência europeia Frontex, embarcações deixadas propositadamente à deriva, o envio de pessoas para campos de tortura na Líbia, a impossibilidade efetiva de pedir asilo na Europa e o extremar da violência que recai sobre os migrantes. Dentro do espaço europeu, a prioridade dada à dissuasão tem vindo a tolerar violências policiais, práticas ilegais e detenções arbitrárias (nomeadamente de menores), mas também a generalizar entraves ao acesso aos procedimentos legais e ao pedido de asilo, nomeadamente pela aplicação restritiva e negligente do Regulamento de Dublin, que deixa milhares de pessoas errantes em situações de vazio jurídico. Estas práticas normalizam a discricionaridade e a tomada de decisões ilegais por parte do poder executivo, entravam a separação de poderes e representam uma ameaça às democracias europeias.
É urgente que a União Europeia cesse todas as colaborações que a tornam cúmplice de violações sistemáticas do Direito Internacional, reforce procedimentos de controlo internos para impedir as frequentes violações de direitos humanos nas fronteiras e nos territórios dos Estados-membros, mas também crie mecanismos independentes de investigação, permitindo a condenação dessas mesmas violações. A criação de vias seguras e legais de migração tem de ser acompanhada de uma harmonização de procedimentos de acesso ao território, ao asilo e à regularização por via do trabalho. Só uma sistematização do acesso aos procedimentos legais e à proteção internacional nos 27 Estados-membros permitirá defender o Estado de Direito e as democracias europeias.
Realismo, justiça e humanidade
Só uma política migratória realista poderá antecipar novas crises, combater as redes de tráfico humano com vias seguras e legais de migração, garantir o acesso ao direito de asilo, acolher dignamente e integrar de forma sustentável. Uma gestão realista é indispensável para combater o discurso de ódio e divisão associado às migrações.
Só uma política migratória justa poderá pôr fim à exclusão e à precariedade social das populações imigrantes, construir o acesso ao mercado de trabalho com igualdade de direitos e garantias, combater a exploração laboral e a predação social. Precisamos também de justiça para garantir a aplicação do Direito Internacional e defender os princípios do Estado de Direito democrático.
Só uma política migratória humana conseguirá pôr fim às mortes, à vulnerabilização e à violência em larga escala infligida a milhares de pessoas que aqui chegam em busca de segurança, de paz e de futuro. Precisamos dessa humanidade para cimentar a paz e a coesão social nas sociedades europeias.
Uma mudança de paradigma é inevitável. Só uma política migratória que priorize a segurança das pessoas, a igualdade de direitos e a defesa do Estado de Direito democrático pode garantir uma Europa segura, justa e solidária.Propostas
- Vias seguras e legais : pôr fim à mortalidade no Mediterrâneo e intra-europeia em contextos de fronteiras ; combater o tráfico humano; reforçar mecanismos que garantem o direito ao asilo, o esclarecimento legal e a igualdade face aos procedimentos legais em matéria de acesso ao território.
- Proteção dos direitos fundamentais : pôr fim às detenções arbitrárias e aos hotspots, acabar com a triagem dos pedidos de asilo em condições degradantes ; pôr fim à detenção de famílias com crianças ; pôr fim à externalização de fronteiras e ao financiamento de países terceiros que apresentam violações sistemáticas de direitos humanos ;
- Defesa do Estado de direito democrático : criar mecanismos de controlo internos para prevenir as frequentes violações de direitos e obrigações em matéria de asilo dos Estados membros, criar mecanismos independentes de investigação e reforçar a condenação dessas mesmas violações ; sistematização do acesso aos procedimentos legais de regularização e à proteção internacional nos 27 Estados-membros.
- Acolhimento, integração e direito à vida privada : criar bases jurídicas e materiais para um acolhimento digno e uma integração célere de migrantes e requerentes de asilo ; pôr fim às práticas inquisitivas e à violação da vida privada das famílias ; generalizar dispositivos de acompanhamento, orientação e informação sobre direitos e deveres dos imigrantes no espaço europeu. Pôr fim às campanhas de dissuasão destinadas a países terceiros.
- Igualdade de direitos para os trabalhadores na UE : criar procedimentos claros e transparentes de regularização pelo trabalho para combater a exploração laboral ; generalizar e harmonizar os critérios europeus de regularização dos cidadãos de países terceiros ; pôr fim aos limbos jurídicos criados por procedimentos opacos e lentos de acesso ao direito de residência e de trabalho nos Estados-membros.
- Reformar Dublin : abandonar práticas discriminatórias no acesso ao asilo e ao acolhimento; pôr fim às situações de deambulação provocadas pela inbetweenness jurídica, aos milhares de pessoas impedidas de aceder ao direito ao asilo pela aplicação do princípio do país de entrada na Europa e forçadas à mobilidade perpétua e desprotegida ; reverter o pacto europeu sobre o asilo e as migrações para criar mecanismos equitativos de acolhimento e proteção.
- Proteção contra a discriminação racial : só uma política de regularização transparente e garantias de igualdade de direitos poderá agir de forma preventiva e protetora sobre as situações de discriminação racial dos imigrantes face às instituições e sociedades de acolhimento. A prevenção da exclusão social e a luta anti-racista são indissociáveis de uma política de migrações justa.
- Diplomacia e política comercial europeia : agir sobre as causas de migração forçada passa por uma política comercial responsável (nomeadamente comércio de armas e energias fósseis) e por rever relações diplomáticas com Estados terceiros que ameaçam a integridade das suas populações ou das populações e território de outros Estados (por exemplo, o papel que a UE desempenha no atual genocídio na Palestina).