Na quarta-feira, a UE pôs fim à ficção da Europa como garante dos direitos e paladina do respeito pelo direito humanitário internacional. Após quase quatro anos de debate, o Parlamento Europeu aprovou finalmente o chamado Pacto sobre as Migrações e Asilo. A grande coligação entre socialistas, liberais e populares conseguiu fazer passar, in extremis, uma das propostas emblemáticas da Comissão Europeia para esta legislatura. O acordo é a representação mais evidente da viragem do arco político europeu para a extrema-direita, resultando numa enorme vitória desta última ao conseguir definir a agenda da política migratória da UE e condicioná-la aos seus interesses, numa espécie de chantagem política, claramente vencedora.
Esta vitória da extrema-direita confere normalização e legitimidade política àquilo que é, sem sombra de dúvida, uma política utilitarista de racismo, exclusão e violação de direitos, materializada na "luta" contra as pessoas refugiadas, devido ao ganho eleitoral garantido pela mobilização política da "caça aos migrantes" e da "necessidade de proteger as fronteiras externas". E mais ainda num momento político crítico, como é o período que antecede as campanhas eleitorais para as eleições europeias.
Não é por acaso que a grande coligação fez tudo para acelerar a adoção deste pacote legislativo, permitindo mesmo que o Conselho aprovasse certas partes sem que o Parlamento tivesse tido acesso às mesmas. Mas esta legislação era urgentemente necessária. O alinhamento com os interesses da indústria de defesa e segurança e a política de corte de direitos como única forma de (sobre)vivência da UE exigem estas políticas contra as pessoas e este discurso estigmatizante em relação às refugiadas e refugiados. E assim temos uma legislação que gira em torno de uma referência recorrente e obsessiva à detenção, às deportações e à criminalização das pessoas migrantes.
Entre os elementos mais nefastos está a obrigação de todos os Estados-Membros disporem de um procedimento fronteiriço de asilo, cujo principal objetivo, como a Comissão declarou explicitamente, é a "rápida deportação para o país de origem ou para um país terceiro seguro". Trata-se de um quadro de asilo que deixa, portanto, a porta aberta à instauração do odioso modelo "Ruanda", e ainda mais se tivermos em conta que, paralelamente à negociação do pacto, a Comissão Europeia tem estado a "trabalhar" em acordos com países terceiros que incluem um orçamento multimilionário para financiar o controlo das fronteiras. Estes acordos têm sido estabelecidos sem o necessário controlo parlamentar, como aconteceu recentemente com o Egito, um país que prende dissidentes políticos, mantém o seu povo na miséria e faz negócios com redes "irregulares" de migração e com a causa palestiniana. Chamam-lhe "parceria estratégica" mas só significa uma coisa: externalização das fronteiras e imposição da agenda europeia.
Para além da transferência da gestão das fronteiras para países antidemocráticos, mais concretamente, na nova legislação: o tempo de detenção é aumentado e alargado; os requerentes de asilo não terão acesso a assistência jurídica gratuita propriamente dita; as famílias com crianças podem ser detidas, o que inclui a recolha de impressões digitais e de dados biométricos a partir dos 6 anos de idade; são alargados os casos em que os pedidos de asilo podem ser automaticamente rejeitados; não serão reconhecidos os casos em que uma pessoa chegue com traumas ou tenha sofrido abusos; não haverá recolocação obrigatória, incluindo em casos de salvamento no mar; a possibilidade de ser transferido para um país da UE onde se tenha um irmão é negada e, por conseguinte, o princípio do primeiro país de entrada do sistema de Dublim é mantido; o mecanismo de controlo dos direitos humanos na fronteira foi enfraquecido e, por isso, não haverá forma de impedir as "devoluções a quente"; existe a possibilidade de um Estado-Membro optar por não participar na recolocação e "prestar solidariedade" sob a forma de uma contribuição financeira, que pode incluir uma contribuição para a gestão das fronteiras, ou seja, muros e vedações; todas as pessoas em situação irregular podem ser detidas e transferidas para o procedimento fronteiriço, o que aumentará, sem dúvida, as rusgas policiais racistas.
Por último, não podemos esquecer que este Pacto sobre as Migrações e Asilo foi defendido e apresentado como uma das grandes conquistas da Presidência espanhola da UE (sendo o nosso país um dos grandes promotores dos acordos de externalização) quando, na realidade, representa a legislação migratória mais nefasta da história recente da Europa. A este respeito, é particularmente preocupante o facto de ninguém ter levantado a voz no Conselho de Ministros para impedir esta barbaridade, de nenhum dos "nossos ministros de esquerda" ter feito um ultimato contra este retrocesso.
Ficam também sem resposta as queixas da sociedade civil, do movimento antirracista e das próprias pessoas migrantes sobre as questões migratórias que o Estado espanhol decidiu silenciar e que este pacto não só não resolverá, como, sem dúvida, agravará. Trata-se de problemas prementes, como as atuações racistas da polícia em relação a pessoas racializadas, os atrasos intermináveis nos pedidos de asilo, a violência policial (que resulta em morte e impunidade) na fronteira sul, a desproteção das mulheres migrantes que querem denunciar a violência masculina, a superlotação e as péssimas condições de vida dos trabalhadores migrantes no campo...
Merece especial destaque a aprovação da iniciativa legislativa popular (ILP) para regularizar a situação administrativa de mais de meio milhão de migrantes no nosso país, que obteve mais de setecentas mil assinaturas e o apoio de novecentas organizações sociais. Muitos dos partidos que apoiaram a aprovação desta lei são os mesmos que aprovaram a ignomínia do Pacto sobre Migrações, provando mais uma vez que a história não está escrita, que podemos travar o avanço das políticas racistas e anti-direitos. É uma questão de correlação de forças.
Durante os próximos meses, será feita uma análise técnica da legislação sobre migração para ver como a implementar em cada Estado-membro. E esta não parece ser uma tarefa fácil, devido à própria natureza do que foi aprovado: um labirinto burocrático e sem sentido, tanto para as pessoas migrantes, fundamentalmente, como para as pessoas que têm de o executar. Aproveitemos este tempo para continuar a denunciar este Pacto da Vergonha. Como diz Jorge Riechmann, "não temos tempo para sermos pessimistas". Deixemos de confiar nos ministros para resolver os problemas e comecemos a tecer as alianças sociais que nos permitirão levantar um movimento popular que diga não em nosso nome a este Pacto da Vergonha.
Miguel Urban é eurodeputado e membro de Anticapitalistas. Marta Mateos é assistente parlamentar do grupo da Esquerda no Parlamento Europeu. Artigo publicado no Publico.es. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.