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Perguntas & respostas sobre a crise política (2)

O Governo afirma que fez aproximações a quase todas as propostas do Bloco. Isto é verdade?
Não é verdade. Qualquer pessoa que tenha participado numa negociação sabe que há muitas formas diferentes de rejeitar propostas apresentadas pelo outro lado. Uma é simplesmente dizer que não as aceita ou ignorá-las. Foi o que aconteceu com a maioria das propostas do Bloco. A outra forma de rejeição é fazer contrapropostas que concedam migalhinhas, de tal forma mínimas, que o outro lado imediatamente compreende que essa via está encerrada.
Foi o que aconteceu, por exemplo, na questão das horas extra.
A proposta do Bloco era a reposição do pagamento adicional do trabalho suplementar em vigor até à intervenção da troika (50% pela primeira hora, 75% pelas horas subsequentes, em dia útil; 100% por hora em dia de descanso ou em feriado) e o direito ao descanso compensatório (equivalente a 25% das horas de trabalho suplementar realizadas em dia útil, dia de descanso semanal complementar ou em feriado).
Que respondeu o Governo? Quanto ao pagamento das horas extra, manteve tudo como está - a subremuneração instituída pela “troika” - para as primeiras 120 horas extraordinárias trabalhadas em cada ano. Só a partir da 121ª hora haveria a reposição. Ora, a lei impõe o limite anual de 150 horas por ano. Isto é: trabalhando todas as horas suplementares possíveis no ano, o trabalhador teria 120 horas remuneradas pelo valor imposto pela “troika”, e apenas 30 horas com o valor pleno que era pago até 2012. Além disso, o Governo manteve a eliminação do descanso compensatório, o que significa que um trabalhador que realize 150 horas de trabalho suplementar perde o equivalente a cinco dias de descanso.
É ou não é uma forma de fingir aproximação quando na verdade se está a dizer “não”?
Há outros exemplos dessa fingida aproximação?
Sim. O Bloco propôs a reposição da compensação a que o trabalhador tem direito quando é despedido. Até à intervenção da “troika”, a compensação era 30 dias por ano trabalhado; passou para 12 dias. Qual foi a resposta do Governo? Sobre despedimentos, nada. Toda a vulnerabilidade dos trabalhadores com vários anos “de casa”, sujeitos a aceitar rescisões “amigáveis” em alternativa a um despedimento barato, ficou intocada. O Governo admitiu apenas a reposição da compensação nos casos de caducidade de contrato a termo (2 dias por mês de trabalho), que não podem exceder três renovações de seis meses.
O governo respondeu com outras recusas disfarçadas de “aproximação” na proposta de reposição do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador; de criação da carreira de Técnico Auxiliar de Saúde; da exclusividade para os profissionais de saúde do SNS. Nalguns casos, como é o do fim do fator de sustentabilidade, António Costa denunciou que a proposta do Bloco punha em causa a viabilidade da Segurança Social, quando, na verdade, abrangia um número reduzido de pessoas e era uma medida que, ainda há dois anos, era defendida pelo ex-ministro Vieira da Silva.
O Bloco afirma que o PS mudou a atitude depois das eleições de 2019. O que mudou nas relações PS-Bloco?
Em 2018/19, começaram a ser evidentes as movimentações do PS para um confronto político que, em vésperas de eleições, permitisse dramatizar um apelo à maioria absoluta. O caso mais evidente foi o das carreiras dos professores, quando Costa acenou com a demissão face ao voto de todos os partidos, exceto o PS, pelo respeito pelos anos de serviço dos docentes. A direita acabou por recuar.
Na campanha eleitoral, o presidente do PS, Carlos César, chegou a referir-se às forças de esquerda como “empecilhos” à boa governação. Mas o apelo à maioria absoluta fracassou. Em outubro de 2019, os partidos de esquerda mantiveram no essencial as suas posições (Bloco 9,5%, PCP 6,3%) e o PS elegeu 108 deputados, superando os partidos de direita mas ainda a sete lugares da maioria absoluta. De imediato, iniciaram-se novas negociações, mas já sem o “estado de necessidade” em que o PS teve de negociar em 2015.
Essas novas negociações fracassaram. Porquê?
Enquanto o PCP se dispôs apenas a negociações pontuais mas sem base num acordo político inicial, o Bloco de Esquerda admitiu um tal acordo, mas com uma pré-condição: a eliminação dos retrocessos introduzidos pela “troika” na legislação laboral (desvalorização do trabalho extraordinário, redução do número de dias de férias, redução da base de cálculo da indemnização por despedimento de 30 para 12 dias por cada ano de trabalho).
No dia seguinte à reunião com o Bloco, António Costa reuniu-se com as confederações patronais. À saída, declarou não ter qualquer intenção de alterar a legislação do trabalho e o acordo morreu antes de nascer.
O Governo minoritário passou a navegar à vista, orçamento a orçamento, assumindo cada vez a chantagem de crise política e exibindo diferentes formas de hostilidade perante os partidos da esquerda: confronto, com o Bloco; condescendência e tentativa de subordinação, com o PCP.
Leia a série de Perguntas e Respostas sobre a crise política:
1 -- As propostas do Bloco no debate do OE 2022 não tinham nada a ver com o Orçamento?
2 -- O Governo afirma que fez aproximações a quase todas as propostas do Bloco. Isto é verdade?
3 -- O Orçamento "mais à esquerda" de sempre?
4 -- O voto contra o Orçamento “abre o caminho à direita”?
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