No final de 1974, Portugal e Cabo Verde assinavam o Acordo de Lisboa. Em julho de 1975, o país insular celebrava a sua independência. Mas a relação entre os dois países continuou a desenvolver-se, tanto política como economicamente.
Desde a imigração até às alterações na relação de forças internacional, passando pelos desafios de Cabo Verde e pelo centenário de Amílcar Cabral, Pedro Pires fala com o Esquerda.net sobre os avanços de um país que celebrará agora cinquenta anos de independência.
Pedro Pires foi o primeiro primeiro-ministro de Cabo Verde, tendo participado diretamente nas negociações do Acordo de Lisboa e fundado o Partido Africano da Independência de Cabo Verde. Foi também Presidente da República entre 2001 e 2011.
No final do ano passado, celebraram-se os 50 anos do Acordo de Lisboa. Que balanço faz desse momento?
O acordo abre o caminho para a independência de Cabo Verde, sete meses depois, em Julho de 1975. Esse é o seu valor histórico. Fixou a data da independência de Cabo Verde e também a transição, o período de transição e as instituições de transição. Ou seja, o Governo de transição, que é a instituição mais importante. E, por fim, o encerramento do período de transição com a realização das eleições a 30 de junho de 1975. A partir daí abre-se a Assembleia, proclama-se a independência e constrói-se um novo período histórico para Cabo Verde.
E da relação entre Portugal e Cabo Verde, do trajeto que fizeram os dois países nos últimos 50 anos?
Com a independência, negociámos as relações com Portugal. Essas relações têm-se desenvolvido normalmente, têm-se consolidado e têm crescido durante todo o período dos 50 anos de Independência. Considero que têm sido boas, com muita cordialidade e solidariedade, de modo que podemos dizer que com a independência de Cabo Verde, as relações com Portugal mudaram de natureza, mas melhoraram e consolidaram-se.
Há uma relação muito próxima entre os dois países ligada também com a comunidade imigrante cabo-verdiana em Portugal.
A presença da imigração cabo-verdiana em Portugal é antiga. Não vem de 1975. Antes já havia uma presença cabo-verdiana em Portugal, particularmente em Lisboa, o que é normal. Essa imigração cabo-verdiana para Portugal tem crescido, podemos dizer que que é bastante expressiva.
E cada vez mais organizada. Em 2024, pela primeira vez, organizou-se em Lisboa uma Grande Marxa Kabral.
Sim, isso integrou-se na celebração do centenário de Amílcar Cabral. Essa organização tem sido bastante vasta e as celebrações têm tido lugar nos mais diversos países e nas mais diversas formas. O que é natural é que em Lisboa, para além do interesse dos cabo-verdianos, isso coincide com o cinquentenário do 25 de Abril. Há aí uma articulação entre as duas celebrações. Em Lisboa, organizaram-se exposições e debates, eu mesmo participei. As celebrações têm sido bastante diversificadas. Não se resumiu às atividades da comunidade cabo-verdiana em Portugal. Foi mais do que isso, as instituições portuguesas também intervieram em todo esse processo.
Há um outro lado da relação entre Portugal e Cabo Verde, com base numa tensão que existe em Portugal atualmente face à imigração, e que tem crescendo. Que balanço faz essa tensão a partir de Cabo Verde?
As tensões ligadas à presença da imigração são hoje um fenómeno internacional. Encontra isso na Europa e nos Estados Unidos da América, onde as comunidades imigradas são mais expressivas. Essa tensão é um fenómeno geral que acontece em toda a parte do mundo. E há a emergência e a consolidação de movimentos que estão contra as migrações. Não sei até onde isso poderá conduzir-nos nas mudanças da política, mas os imigrantes são um fator de desenvolvimento da Europa, onde o rejuvenescimento da população tem sido difícil ou não tem sido possível. Há essa incompreensão, mas o tempo encarregar-se-á de mudar as atitudes, as avaliações, os preconceitos e a recusa do outro. São mudanças comportamentais que irão ter lugar. Mas essas tensões são uma realidade.
E como se combatem?
Pertence, aos governos que acolhem os imigrantes e aos governos de onde os imigrantes vêm, a responsabilidade de uma cooperação, coordenação e um debate a fazer-se. Não entendo que a solução seja a recusa ou a agressão. Do meu ponto de vista, teremos de encontrar um entendimento ou uma visão comum. Estou de acordo com as pessoas que dizem que é preciso coordenar a imigração. É preciso encontrar mecanismos para acompanhar esse fenómeno, mas é um fenómeno mundial. São desafios do século XXI.
Falou de mudanças a nível internacional. Trump volta a ganhar nos Estados Unidos da América, há uma disputa com a Rússia e com a China. Onde é que vê Cabo Verde no meio destas mudanças internacionais?
Não faço parte do Governo de Cabo Verde, só posso emitir a minha opinião. Acho que Cabo Verde não deve fugir a nenhum diálogo. O que é preciso é dialogar. Como já disse, é um fenómeno do século XXI, e há vários fenómenos que acompanham este, como o desenvolvimento dos meios de comunicação. Hoje, as viagens e deslocações estão facilitadas pelos meios de transporte. O mundo acelerou. E acelerou a ligação entre as pessoas, entre as sociedades e entre os povos. É uma questão de gestão das novas mudanças que tiveram lugar no mundo. E há um outro fenómeno: os novos meios de comunicação dificultam por vezes o entendimento. Temos um mundo completamente diferente, complexo, com circulação mais disparatada de informações e de ideias, e temos de saber gerir isso. Caberá aos dirigentes dos Estados e das associações dos Estados encontrar a melhor solução, é um desafio para todos.
A par dessas transformações internacionais, também as economias africanas se têm desenvolvido de uma forma mais acelerada do que no passado. Há, na sua opinião, potencial para que os países africanos tenham maior presença internacional?
Temos de ter em conta que há um crescimento rápido da população. África tem um desafio demográfico, que é o crescimento rápido, com uma população bastante jovem. E tem défices existentes em determinados domínios, como no domínio da educação, domínio da circulação, domínio da integração. África tem vários desafios. Mas as mudanças fazem-se em qualquer sítio. A sociedade africana não é uma sociedade isolada, não é uma sociedade especial. É uma sociedade em mudança e em movimento, e o crescimento económico, o desenvolvimento social trazem isso. O que podemos trabalhar são os conflitos que hoje há em África e o fenómeno religioso.
O que quer dizer com fenómeno religioso?
O fenómeno religioso também é mundial. A intervenção da religião na política ou nas relações entre as sociedades é uma constante do mundo atual. Já tinha sido antes e agora voltou. Isso é mais complexo porque tem de se encontrar uma solução. Julgo que a solução está no respeito do outro: como tratamos o outro, como consideramos o outro, como consideramos a diferença. São, de novo, os desafios do século XXI.
Quais são os principais desafios de Cabo Verde?
Cabo Verde tem muitos desafios, como qualquer parte do mundo. Há um desafio muito sério, que é o da criação de empregos. Do meu ponto de vista, há um défice nessa matéria. Temos um sistema de educação que funciona, que forma gente. Temos avançado muito na educação, na saúde pública e na própria integração do nosso país. É preciso também gerir da melhor maneira um setor extremamente importante na economia de Cabo Verde, que é o turismo, mas também diversificar a economia. Diversificar e encontrar forma de criar mais empregos de forma mais consistente é um desafio. O outro desafio é manter o esforço de integração das ilhas e da comunicação entre as ilhas.
Sobre estes temas, e também sobre a coordenação da imigração, de que falávamos há pouco, noto – de forma geral – o desaparecimento do planeamento como ferramenta política e económica do Estado. Acha que o regresso do planeamento pode ser uma solução para os desafios do país?
Houve todo um preconceito sobre o planeamento. Diziam que o planeamento é reacionário, que não apoia o setor privado ou que é ultrapassado. Mas é fundamental ter aquilo que se pode chamar o planeamento indicativo prospetivo, senão não sabemos para onde vamos. Um pensador romano dizia: não há vento favorável para aquele que não tem rumo. Precisamos de ter um rumo, e o planeamento será esse rumo. Mas não é uma questão de Cabo Verde, é do mundo.
A redução do planeamento tem precisamente deixado muitos países à deriva.
A economia ultraliberal leva a isso. É uma questão muito mais séria porque é uma questão ideológica. Há aqueles que não aceitam a intervenção do Estado, que pensam que o capital e a iniciativa privada resolvem tudo, mas sabemos que não resolve. Portanto, o Estado tem sempre um papel. E o Estado mínimo, do meu ponto de vista, também é uma fantasia. Porque durante a crise de 2008, o Estado americano salvou todas as instituições financeiras. E agora dizem que o Estado não deve intervir. É preciso desenvolver o Estado social porque senão aumentam os pobres, e a diferença de rendimento entre uns e outros é enorme. E mais que isso, dois ou três multimilionários podem mandar no mundo.
Essa noção de planeamento e de Estado social foi central nas reivindicações do movimento de libertação e na criação do Estado cabo-verdiano?
Um país que acaba de ascender à independência tem de ter um Estado social. E o Estado cabo-verdiano até hoje têm de guardar esse caráter social. A educação precisa de intervenção do Estado, a saúde precisa de intervenção do Estado, o próprio desenvolvimento económico precisa da intervenção do Estado. Todas as atividades determinantes na vida do país precisam de uma presença do Estado. Dizem-nos que o Estado deve ser mero regulador, não deve intervir, mas vamos ver como resolver os problemas existentes. Esses é que nos dizem que natureza do Estado podemos ter.
Considera que a memória dessa luta de libertação é importante para o desenvolvimento da democracia hoje?
Nós trabalhamos precisamente sobre a memória. É uma questão válida para toda a gente. Para todos os povos, para todas as sociedades. Um povo que não tem memória não existe, e também não tem futuro. Nessa perspetiva, se queremos ter um futuro próprio e autónomo, temos de saber de onde viemos e o percurso que fizemos até chegar à situação atual. Por exemplo, a história de Cabo Verde foi marcada pela fome, então a nossa política deve ir na direção de não permitir que isso se repita. Portanto, há uma ligação entre o passado, o presente e o futuro. O conhecimento da História é fundamental para se poder perspetivar o futuro ou para saber o que é que de errado e de bom foi feito. O que é que devemos manter e o que é que devemos excluir.
Marxa Kabral
“Acho que é o momento perfeito para trazermos de volta Amílcar Cabral”. Entrevista a Vânia Andrade Puma
Pensando sobre a questão da memória, ficou satisfeito com a celebração do centenário de Amílcar Cabral?
O centenário ultrapassou as expetativas da Fundação Amílcar Cabral. Foi celebrado por todo o lado e das mais diversas formas, em países nos quais nós até não pensávamos que fosse, por exemplo, no Sri Lanka. Teve essa função. Amílcar Cabral já estava no mundo, mas o centenário aumentou a presença dele. Há muita gente, muitas associações e muitas instituições que se referem a Amílcar Cabral e ao seu pensamento. Só podemos estar satisfeitos com esse resultado.
Com resultados tão largos, que trabalho se segue para a Fundação?
Com estes resultados, haverá uma dinâmica própria. Não sei se necessitará da nossa intervenção. As ideias têm a sua dinâmica. Haverá instituições fora de Cabo Verde, na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil e em África que se encarregarão disso. Se um pensamento já ultrapassa as fronteiras do país de origem, o seu desenvolvimento já não depende só de nós, depende das instituições. O pensamento de Amílcar Cabral já ganhou autonomia e dinâmica suficiente para navegar por si.