Açores

Números mostram discriminação no acesso ao aborto

13 de março 2025 - 11:34

Na Região Autónoma, só um hospital está a realizar IVG. As taxas de aborto são das mais baixas do país e as taxas de gravidez na adolescência das mais altas.

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Hospital Divino Espírito Santo em Ponta Delgada. Foto do Twitter da instituição.
Hospital Divino Espírito Santo em Ponta Delgada. Foto do Twitter da instituição.

Dados divulgados pelo Diário de Notícias esta quarta-feira mostram que os Açores têm das mais baixas taxas de aborto no país e das mais altas taxas de gravidez na adolescência. Em relação ao aborto, o número é de 2,91 por mil nos Açores face a 7,7 mil a nível nacional. Em relação à taxa de natalidade em adolescentes, é de 10,6 em mil, quase o dobro da taxa nacional (6,4).

Em comparação com a Madeira, a taxa de aborto é 60% inferior e mais do dobro da taxa de natalidade adolescente. Sendo que os Açores têm mais mulheres em idade fértil. Em 2023, houve nos Açores 158 (segundo a Direção Geral de Saúde) ou 157 (segundo o Governo Regional) pedidos de Interrupção da Gravidez até às 10 semanas. Na Madeira foram 258.

Os números facultados pelo Governo Regional mostram ainda uma relação entre os hospitais onde se praticam IVG e os números de pedidos recebidos no sistema público de saúde. No Faial, os pedidos de IVG caíram de 2023 para 2024, de 14 para cinco, com o Hospital da Horta a deixar de prestar estes cuidados de saúde em outubro de 2023. Pelo contrário, o Hospital de Ponta Delgada passou a fazer IVG desde dezembro de 2023 e os números de pedidos aumentaram de 86 para 11. Nas outras ilhas, os números mantiveram-se relativamente constantes.

O artigo liga estas tendências às conclusões do trabalho de doutoramento do economista António Melo, no qual fica demonstrado que quanto mais longe o serviço que presta os cuidados fica, menor a taxa. À distância de uma viagem de automóvel,  “os municípios portugueses que estão a mais de uma hora do serviço de IG mais próximo têm menos 22% de abortos que municípios que estão a até 30 minutos do serviço.” Trata-se de um trabalho que tratou dados do continente.

Contactado pelo DN, o governo regional nega discriminação, alegando: “atendendo ao facto de vivermos numa região arquipelágica, todas as utentes têm acesso a este direito que lhes é conferido por lei, não havendo qualquer atropelo ou discriminação. Pelo contrário, não havendo a possibilidade de proceder à intervenção em nenhum dos hospitais dos Açores e sob risco de incumprimento dos prazos, e objeção de consciência das equipas necessárias à sua realização, foi criado um circuito protocolado com a Clínica dos Arcos, em Lisboa, para que todo o procedimento seja realizado em segurança. Todas as despesas inerentes ao procedimento ficam a cargo da Direção Regional de Saúde, não sendo necessário qualquer adiantamento por parte das utentes.”

O executivo regional esclarece ainda que “desde final de 2023 que o Hospital do Divino Espírito Santo é o hospital na região onde é possível a realização de uma IVG. Nos restantes dois hospitais os médicos são objetores de consciência, direito esse que deve ser respeitado em toda a medida pois, caso contrário, aí sim, estaríamos a atentar contra as liberdades individuais.”

O jornal contrapõe a esta declaração o parecer da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida, onde se pode ler que “a invocação de OC pode constituir um obstáculo ao direito à saúde, bem como uma discriminação no acesso que poderá prejudicar determinadas minorias e agudizar as desigualdades existentes na sociedade”. Aí está explícito como “exemplo clássico” a IVG “cuja omissão poderá ter consequências negativas reais para a saúde reprodutiva e para a vida da mulher.” A forma como é aplicada a objeção de consciência implica que “mulheres de algumas regiões do país terão dificuldade acrescidas em realizar uma IVG, podendo mesmo não o conseguir dentro do prazo legal previsto para o efeito, de que resultará um prejuízo sério, a que pode acrescer uma discriminação socioeconómica, uma vez que as mulheres com capacidade financeira poderão mais facilmente garantir o procedimento no setor privado”.

O Governo Rregional não forneceu ao diário números sobre o tempo médio de espera na região desde o primeiro contacto com o Serviço Regional de Saúde até à primeira consulta do processo ou sobre o número de objetores. Mas em resposta a um requerimento do Bloco de Esquerda, em dezembro, informou a Assembleia Regional que, em dezembro de 2024, havia 23 obstetras nos três hospitais da região, 17 deles objetores. Estes dados indicam que no Hospital da Terceira, onde em cinco obstetras há dois não objetores, o procedimento poderia estar a ser feito.

O Hospital do Divino Espírito, que tem três não objetores, está a realizar “apenas as IVGs do grupo Oriental (São Miguel e Santa Maria)”.

Esta reportagem foi feita na sequência de uma outra investigação, iniciada a fevereiro de 2023, que mostrou que vários hospitais do continente não cumpriam o disposto na lei relativamente a tempos de espera até à primeira consulta e de circuitos que dificultavam o acesso à IVG e que mais de 80% dos obstetras do Serviço Nacional de Saúde são objetores de consciência. Depois disto, auditorias da Entidade Reguladora da Saúde e da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) confirmaram estas situações. Mas as Regiões Autónomas não foram incluídas por prestarem contas à ERS, o que quer dizer, escreve-se, que “as mulheres residentes nas ilhas não têm uma entidade independente à qual possam apresentar queixa e da qual possam esperar defesa do seu direito à saúde”.

Bloco/Açores propôs organizar serviços para garantir que direito à IVG não é prejudicado pela objeção de consciência

Em declarações após uma reunião em fevereiro com o Conselho de Administração do Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira, o coordenador do Bloco/Açores apresentou uma iniciativa legislativa que recomenda ao governo que dê orientações aos hospitais dos Açores no sentido de garantir a organização dos serviços de obstetrícia e ginecologia, de forma a que o acesso à IVG não seja prejudicado pelo exercício de objeção de consciência.

“A objeção de consciência é um direito que assiste aos profissionais de saúde”, mas não pode pôr em causa o acesso a um procedimento médico legalmente previsto, defendeu António Lima.

A proposta que o Bloco vai levar ao parlamento pretende, assim, que os hospitais garantam “a existência de profissionais de saúde, nomeadamente não objetores, em número suficiente, assim como os meios técnicos, para a prestação efetiva, segura e atempada de cuidados relacionados com a interrupção voluntária da gravidez”.

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