Economia

Maria da Conceição Tavares para além dos vídeos virais

23 de junho 2024 - 11:55

A economista que faleceu há quinze dias fugiu da ditadura de Salazar para encontrar no Brasil uma potência adormecida onde pôde desenvolver teses fundamentais para compreender a atual hegemonia global dos EUA e os problemas do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo.

por

Juliane Furno

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Maria da Conceição Tavares..
Maria da Conceição Tavares. Foto de grupo de Facebook Maria da Conceição Tavares: Uma Mulher Visionária.

Este texto é o que consigo escrever depois dos primeiros dias de luto. A perda de Maria da Conceição Tavares é um duro golpe numa geração que ainda teima em achar que o Brasil tem futuro e que ainda irá cumprir seu desígnio de país-nação. Em que pese o desaparecimento material, Maria da Conceição Tavares deixa uma obra substancial e, mais que isso, deixa um exemplo de intelectual aguerrida, corajosa e coerente, a qual fez da vida um compromisso com o desvendamento do processo de funcionamento da economia brasileira e sua particularidade na dinâmica capitalista internacional – e, sobretudo, se embrenhou no esforço militante de concretizar o sonho de superação das nossas mazelas.

Maria da Conceição Tavares chegou ao Brasil nos anos 1950, desembarcando no Rio de Janeiro em pleno carnaval. Sem conseguir revalidar o seu diploma de licenciatura em Matemática, foi estudar Economia na antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ. Após trabalhar com estatísticas fundiárias, foi contratada para trabalhar no antigo BNDE, hoje BNDES. No entanto, fez e consolidou a sua carreira nos escritórios do Brasil, e posteriormente do Chile, na Comissão Económica para América Latina e Caribe, a CEPAL.

As fases do seu pensamento

Diversos investigadores do seu pensamento traçam periodizações da sua produção bibliográfica. Uma delas pode ser compreendida a partir de três principais fases: a primeira delas na Cepal, na qual sua principal obra foi o texto “Auge e declínio do processo de substituições de importações do Brasil”; a segunda como docente do curso de Ciências Económicas na Unicamp, em que a sua principal contribuição teórica ficou marcada pelo texto – em conjunto com José Serra – intitulado “Para além da estagnação”; e uma terceira e última fase, já como quadro na UFRJ e mais ligada à temática da economia política internacional, teve como obra de referência o texto “A retomada da hegemonia norte-americana”.

O elemento que confere sentido e uma certa linha de continuidade entre os três períodos – embora tenham sido eles de produções bem distintas – pode ser entendido pelo prisma das desigualdades, tanto interna ao Brasil e os seus impactos no padrão de crescimento e estagnação, quanto na análise das desigualdades entre o centro e a periferia capitalista, analisando como a dinâmica da economia política internacional tem impacto na nossa dinâmica de acumulação.

Em “Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil”, Tavares defende a tese de que, com a crise internacional no início dos anos 1930, as possibilidades de manutenção da economia brasileira centrada nas exportações de produtos primários como eixo dinamizador da acumulação interna estavam esgotadas. Os limites à capacidade de importação, dados pela queda do montante e do valor das exportações, paradoxalmente, ensejaram mudanças estruturais, para as quais contou as políticas económicas do governo Vargas e a capacidade industrial instalada pregressa. Com isto, houve uma mudança fundamental: as exportações de produtos primários continuaram a ser essenciais, mas não representavam mais o elemento central de geração de rendimento interno, mas contribuíram para o desenvolvimento nacional mediante capacidade e obtenção de moeda forte. O eixo principal passou a ser o investimento e a importação de bens de capital, fortalecendo um processo de substituição de importação de produtos supérfluos pela importação de maquinaria para internalizar a produção de manufaturas.

No entanto, uma industrialização que foi acompanhada pelo aumento das desigualdades sociais, setoriais e regionais, estreitou o mercado interno de consumo e levou ao esgotamento desse processo, em função da dirimida procura agregada interna, que desestimulou novos investimentos de elevada escala e escopo. Portanto, as desigualdades sociais e a perversa distribuição funcional do rendimento foram limitadores da continuidade do processo de substituição de importações.

Já na Unicamp, na década de 1970, Tavares vai entrar para a história com a publicação do texto “Para além da estagnação”. Nesse texto, ela faz uma contundente crítica a Celso Furtado, que – num livro chamado Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina – apregoava que o Brasil viveria um período de estagnação económica, sobretudo pós golpe militar de 1964. O raciocínio do autor era, basicamente, o seguinte: usando um modelo de equações básicas de equilíbrio dinâmico, Furtado constatou que haveria redução na taxa de crescimento por haver uma elevada relação capital/produto na indústria brasileira – isto é, a indústria produzindo com elevada tecnologia e poupando mão de obra, o que impactava na geração de emprego e rendimento. Assim, como a estreiteza do mercado interno de consumo, não haveria motivos para ampliação do investimento, sobretudo aquele que exige escalas mais elevadas. Portanto, a desigualdade social geraria estagnação.

Maria da Conceição Tavares e José Serra, pese a concordância com o diagnóstico de que havia um esgotamento do processo de substituição de importações, não concluíam que essa crise representava uma tendência de estagnação. Pelo contrário, a crise abriu caminho para um processo de transição, para um novo modelo de desenvolvimento capitalista que podia conviver plenamente com taxas elevadas de crescimento não somente a despeito da concentração de renda e riqueza, senão que exatamente por causa dela.

O que fez a ditadura militar, no período conhecido como “milagre económico” – segundo os autores – foi adaptar a procura a nova estrutura de oferta ligada ao maior dinamismo do setor de bens de consumo duráveis. Nesse sentido, o próprio processo capitalista de concentração de rendimento, especialmente após a política de contenção salarial e a criminalização das greves, conferiu dinamismo a este novo padrão de acumulação, que não dependia mais do consumo de massas para se realizar. Portanto, o salário do trabalhador não importava para a realização das mercadorias. Eram as classes médias o eixo central da acumulação, através da sua capacidade de consumir os bens da nossa “modernização conservadora”, especialmente as novidades vindas da nova indústria de bens de consumo duráveis, em que o automóvel e os eletrodomésticos marcaram a face desse período. Portanto, infelizmente Tavares estava certa, e concentração de rendimento também pode gerar crescimento, ainda que perverso.

Por fim, Maria da Conceição Tavares, na sua “última fase”, dedicou-se a compreender a economia política internacional, muito embora a sua ida para a UFRJ tenha sido um desdobramento da sua tese do “crescimento endógeno”, ou seja, da capacidade do Brasil crescer e se desenvolver autonomamente. Isto não exclui, obviamente, o olhar sobre as determinações do cenário mundial, dado o caráter periférico e dependente da economia brasileira. O seu texto seminal, de 1985, intitulado “A retomada da hegemonia norte-americana”, dedica-se a compreender como os EUA, que passou por um período de contestação da sua hegemonia no campo produtivo, militar e monetário, dá um “golpe” nos juros em 1979 e coloca a economia mundial de cabeça para baixo. Tavares vai tratar desse tema a partir da ideia de que a ação unilateral do Banco Central norte americano (FED) é a resolução das tentativas de desestabilização dos EUA via dois movimento de reafirmação da hegemonia americana: no plano geo-económico através da “diplomacia do dólar forte” com a valorização da moeda americana após o golpe dos juros e a drenagem da poupança do mundo; e no plano geopolítico através da “diplomacia das armas” com as ações finais na corrida ao armamento e na desestabilização da URSS, a única nação que partilhava com os EUA a hegemonia global.

A “diplomacia do dólar forte” permitiu que o FED retomasse o controle sobre os seus próprios bancos e do resto do sistema bancário privado e internacional e ainda reafirmou o dólar como moeda internacional, pese o fim do lastro metálico. A nova política económica ainda permitiu a soldagem dos interesses globais do capital financeiro internacional, rearticulando os seus múltiplos anéis nacionais que irão assumir o poder político e espalhar-se do centro aos países da periferias, o que a autora denominou como a “nova arquitetura financeira”.

Em síntese, a sua tese é a de que a retomada da hegemonia americana e a nova “financeirização capitalista” são duas faces de um mesmo processo, resultante das políticas do próprio governo norte-americano, amadurecidas na hora em que o seu poder parecia entrar em decadência. Para os países periféricos sobraram as consequências desse processo, como a crise da dívida e os ajustes impostos pelos organismos multilaterais, como o FMI.

Uma militante e economista incansável

Além dessa grande expoente do pensamento original sobre o Brasil, na melhor versão da Economia Política, Tavares foi, sobretudo, uma militante. Veio fugida da ditadura de Salazar, em Portugal; foi presa em 1968 durante a ditadura militar brasileira; trabalhou no governo da Unidade Popular de Salvador Allende, foi assessora económica do MBD e figura muito próxima de Ulisses Guimarães. Posteriormente entrou para o PT e foi Deputada Federal no período auge do neoliberalismo brasileiro.

Uma incansável brasileira, que adotou e amou este país e o escolheu como seu. Nós devemos muito a ela e a nossa principal forma de homenageá-la, todo os dias, é manter vivo e, quiça, realizar, o sonho do Brasil potência que tanto almejava essa grande mulher economista!


Juliane Furno é doutora em desenvolvimento económico pela Unicamp.

Texto publicado originalmente na Revista Jacobina. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.