Moçambique

João Feijó: “Por trás de Venâncio Mondlane, está um tsunami social”

17 de novembro 2024 - 18:07

O sociólogo e investigador moçambicano falou com o Esquerda.net sobre a atual situação em Moçambique, o levantamento popular e a brutal violência policial, e os possíveis rumos que o país poderá seguir.

porMariana Carneiro

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João Feijó
O sociólogo e investigador João Feijó no debate " Tensão pós-eleitoral: como salvar Moçambique do caos total?", organizado pelo Centro de Integridade Pública.

As notícias que nos chegam de Moçambique dão conta do descontentamento generalizado da população contra o seu Governo e o partido no poder, a Frente de Libertação de Moçambique - Frelimo, traduzido em protestos de rua e paralisações, e também da brutal violência policial, que tantas vidas já ceifou.

A vitória de Daniel Chapo, da Frelimo, com 70,67% dos votos, nas eleições do passado dia 9 de outubro, pejadas, de acordo com a própria missão de observação da União Europeia, de irregularidades, surgiu como novo rastilho para a revolta da juventude moçambicana, que, desprovida de esperança no seu futuro, faz soar bem alto a sua indignação.

Do lado da oposição, o candidato independente do Podemos, um declarado apoiante de Jair Bolsonaro, garante corporizar o descontentamento e ser fiel ao “seu povo”. Venâncio Mondlane fez caminho como pastor da Igreja Evangélica, tentou liderar o Movimento Democrático de Moçambique, foi deputado da Renamo, e criou a Comissão Aliança Democrática, que foi excluída das eleições pelo Conselho Constitucional de Moçambique.

Neste cenário, o Esquerda.net falou com o sociólogo e investigador moçambicano, João Feijó, sobre, entre outras matérias, o processo eleitoral, as causas deste levantamento popular e as razões da popularidade de Mondlane, a repressão policial, o posicionamento da comunidade internacional e as perspetivas de futuro em Moçambique.

No passado dia 9 de outubro, as e os moçambicanos foram chamados às urnas para eleger um novo presidente. Como decorreu o processo eleitoral, que veio a resultar no anúncio, a 24 de outubro, da vitória esmagadora de Daniel Chapo, da Frelimo, com 70,67% dos votos?

As irregularidades no processo eleitoral começaram muito antes de 9 de outubro, nomeadamente no que respeita aos números oficiais de recenseados anunciados. Multiplicaram-se os eleitores fantasma. A província de Gaza ficou famosa pelo recenseamento de 300.000 mil eleitores acima da população registada nos Censos demográficos. Depois, durante o processo de registo de partidos políticos, os órgãos de administração eleitoral tenderam a excluir candidaturas mais incómodas ao partido no poder. Durante a campanha eleitoral, a Frelimo utilizou inúmeros meios do Estado para realização de trabalho eleitoral, desde viagens aéreas, veículos, combustível, instalações e funcionários públicos ou até per diems. Em muitos locais, o trabalho de partidos de oposição foi condicionado. Nas semanas anteriores ao dia da votação, a CNE dificultou a emissão de credenciais para observadores eleitorais, e, em muitos locais, os membros das oposição não conseguiram estar presentes nas mesas de voto. Tal aconteceu não só por falta de organização dos partidos da oposição, mas também pela expulsão por parte dos presidentes de mesa, geralmente indivíduos afetos à Frelimo.

Depois, durante a contagem de votos e preenchimento de editais, foi frequente os presidentes de mesa de voto se recusarem a assinar os editais, nomeadamente quando se verificou uma derrota da Frelimo. Estes responsáveis dirigiram-se para as instalações do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) onde produziram editais com assinaturas falsas. É depois com base nesses editais falsos que os resultados são validados, quer pela CNE como depois pelo Conselho Constitucional (CC). Como são editais inventados, com números inventados, existem mais votos para a Assembleia da República do que há para eleger o governador, ou para a eleição do presidente. Então, há uma discrepância de centenas de milhares de votos que depois a CNE não sabe como justificar, precisamente porque estes editais são todos martelados.

Em muitas mesas de voto, os observadores eleitorais verificaram, mediante os editais produzidos, a vitória de Venâncio com uma margem significativa, talvez 60 ou 70% dos votos. Mas, no final, o respetivo edital não foi afixado. As pessoas esperaram pela afixação dos resultados até as duas, três, quatro da manhã. No dia a seguir, surgiram editais diferentes daqueles que foram produzidos após a contagem dos votos.

A batota trespassa o STAE, a CNE, e até o Conselho Constitucional, porque são órgãos totalmente partidarizados. O CC limita-se a fazer a validação jurídica e a arranjar a argumentação jurídica para validar estes resultados. Desta vez, estão a solicitar os editais. Já houve eleições anteriores em que aceitaram validar os resultados eleitorais apenas com base em apresentações em PowerPoint. Agora, está a haver esta polémica de que estão a exigir os editais. Vamos ver como é que eles vão legitimar estes resultados.

Há expectativas de que o CC não valide os resultados eleitorais?

Creio que ninguém tem essa esperança, face à experiência do passado. A Quitéria Guirengane ontem estava a dizer numa live que, nas últimas eleições municipais, bateu-se o recorde de recursos entregues no Conselho Constitucional, e que este órgão não chegou a dar resposta a alguns deles. Ou seja, os resultados foram validados sem ter sido dada resposta a alguns dos recursos que tinham sido apresentados.

Apesar de conscientes de que o jogo está altamente viciado, as pessoas tentam as vias legais, usam os melhores argumentos possíveis. Mas isso é muito desgastante. O nível de cinismo das respostas obtidas é extremamente desmotivante.

A própria Missão de Observação Eleitoral da União Europeia foi perentória ao afirmar que "se verificou uma notável falta de confiança na fiabilidade dos cadernos eleitorais e na independência dos órgãos eleitorais". Qual tem sido o posicionamento da comunidade internacional face a este processo eleitoral?

A linguagem utilizada pelos observadores internacionais é aquela linguagem protocolar de que estamos a observar com preocupação o que está a acontecer. Descrevem um conjunto de irregularidades que foram registando e no final fazem as respetivas recomendações, que passam pela publicação dos editais, por forma a promover a transparência e a credibilidade das instituições. A grande questão que se coloca agora é, portanto, a publicação dos editais. Os indícios que estão a aparecer é de que esses editais estão a ser fabricados à última hora. O CC deu sete dias úteis para os mesmos serem apresentados, o que é tempo mais que suficiente para eles serem cozinhados.

Teremos de aguardar para ver se os editais aparecem, se se justificam as discrepâncias existentes, e para saber qual será a resposta, seja da União Europeia (UE), que é a maior agência de observação, mas também da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC).


Mas temos de ter bem noção de que o cenário internacional mudou. Já não existe aquela hegemonia do Ocidente que verificávamos na década de 90. E Moçambique tem vários parceiros. Não acredito que a UE vá colocar em causa a série de investimentos que tem no país, já que a Frelimo tem muitos outros parceiros a quem pode recorrer, nomeadamente, no Sudeste Asiático, BRICS e para aí fora. E, então, não me parece que a União Europeia vá ter a mesma atitude que teve com a Venezuela, porque a Venezuela é um país mais hostil ao investimento ocidental.

Quanto à SADC, não se passa o mesmo, já que têm vários motivos para preocupações.

Primeiro, porque Moçambique fez uma parceria com o Ruanda, não dando preferência aos países da região. O país hegemónico da SADC, que é a África do Sul, sempre viu em Moçambique a expansão da sua zona de influência. Moçambique era uma colónia política de Portugal, mas era uma colónia económica da África do Sul, sobretudo aqui a zona do Sul do país. Então, África do Sul é a grande potência regional que quer manter a sua esfera de influência sobre Moçambique, e que não viu com bons olhos esta opção pelo Ruanda.

O segundo ponto tem a ver com a instabilidade política em Moçambique, que está a afetar o corredor de Maputo, que permite o escoamento dos produtos sul-africanos. Portanto, isto vai ter impacto na economia da África do Sul, e também afetar países da região, como o Zimbabué, o Malawi, a Zâmbia… Já houve notícias de que começou a escassear o combustível no Malawi, em virtude, precisamente, da instabilidade deste corredor. O porto de Maputo esteve praticamente paralisado durante a semana passada, porque os camiões não circulavam na fronteira.

Isto para dizer que é possível que a SADC faça algum trabalho, mas isso não implica que tomem alguma atitude anti-Frelimo. Vários países da SADC ainda são governados por partidos libertadores com longa aliança com a Frelimo, e que também enfrentam problemas de legitimidade, pelo que ficam preocupados com estes ventos de mudança em Moçambique, sobretudo o ZANU PF do Zimbabué ou o MPLA de Angola. Até porque o partido já há-de ter iniciado um trabalho diplomático com todas as chancelarias.

Penso que estão todos na expectativa, a analisar atentamente o que está a acontecer, e que estão todos com o receio dos riscos, desta instabilidade política que pode afetar os respetivos investimentos.

A nível interno tem sido feito um esforço para passar uma imagem de possível coesão social?

Há já indícios de criação de alianças com algumas organizações da sociedade civil, com académicos, inclusive mediante a realização de conferências, para tentar criar pontes entre uma Frelimo cada vez mais isolada da sociedade e setores mais moderados. Pretende-se acabar este antagonismo entre o partido e o resto da sociedade, que caracterizou os últimos cinco, sete anos da governação de Filipe Nyusi. E o objetivo, lá está, é o de coesão social, de resiliência, sem apontar para reformas políticas profundas. Falo, por exemplo, de reformas fiscais que passam por taxar os grandes projetos, sem as quais não vai ser possível financiar a educação e a saúde, diminuir a pobreza, e apoiar o setor familiar, bem como permitir que haja uma mínima revolução industrial, o desenvolvimento da agricultura e da indústria, e depois, por essa via, produzir-se a modernização da sociedade e a transição demográfica.

Para financiar o desenvolvimento económico, tem de existir uma reforma fiscal que não venha sobrecarregar ainda mais as classes médias, que já pagam 20 ou 30% de impostos. Têm de ser esses grandes projetos a financiar este desenvolvimento. Depois existem questões sobre as minas que importa discutir. O país é rico em recursos naturais, mas estão nas mãos do setor privado com reduzida carga fiscal.

Quem está a seguir as notícias vindas de Moçambique não ouve falar de coesão social, mas sim de ocupação das ruas e de um descontentamento crescente. De que forma o Governo e as forças policiais e armadas têm respondido aos protestos da população moçambicana,  seja no que concerne às paralisações massivas como às concentrações, nomeadamente as dos dias 21 de outubro ou 3 e 7 de novembro?

A polícia tem agido de uma forma heterogénea. Há vídeos em que a polícia tem um comportamento exemplar. Os militares também um comportamento positivo, não houve relatos de incidentes.

A maior brutalidade vem da Unidade de Intervenção Rápida. Nem todos, mas esses são os mais brutais. Fala-se do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC), fala-se da Casa Militar, que responde diretamente à presidência. Há indivíduos que passam em automóveis Toyotas Hilux, pretos, com a porta aberta, a disparar com armas automáticas sobre a população. É uma coisa surreal.

Portanto, há aqui múltiplos comandos. Há determinados comandos que são extremamente agressivos, e há outros que são muito mais progressistas.

A atitude também varia consoante o contexto. Jornalistas ocidentais disseram-me que, enquanto estavam a filmar, o comportamento da polícia era normal, mas que, quando se preparavam para ir embora, eram alertados de que os disparos iriam começar assim que se ausentassem. E assim foi. Segundo a narrativa, a polícia estava à espera que os jornalistas saíssem para poder disparar e dispersar a população.

A polícia não está preparada para motins. É uma polícia anti-motim que é muito violenta, que dispara balas diretamente para as pessoas, até de forma gratuita, desproporcional, Às vezes, até assassina, dispara para as pessoas pelas costas. Já foram mortas várias pessoas.

Circulam vídeos de polícias a disparar sobre pessoas no chão, sentadas sobre os joelhos, não é?

É horrível, faz lembrar o massacre de Mueda. Parecem episódios tirados dos manuais de história. E isto cria um sentimento anti-Frelimo muito grande. É um sentimento de que a polícia, que dispara contra o povo, está sempre ao serviço da Frelimo. É um sentimento de que o Estado está contra a população.

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Foto publicada na página de Facebook de Quitéria Guirengane

No que respeita à cobertura dos acontecimentos, qual tem sido o papel da comunicação social social? Existe alguma tentativa de silenciamento?

Sim, os órgãos de comunicação social públicos, pagos pelos nossos impostos, representam hoje órgãos oficiosos do governo que, pura e simplesmente, não noticiam estas questões.

Os órgãos privados vão tendo algum espaço, mas com muitas ameaças. Ainda assim, no setor privado, continua a haver algum espaço, porque, hoje em dia, qualquer órgão que se recusar a relatar o que está a acontecer será sabotado depois pelas populações. Portanto, eles percebem que há aqui mercado. A TV Sucesso, por exemplo, tem feito uma cobertura de uma forma até muito sensacionalista, consciente que aquilo vai ter audiências.

Depois, emergem, sobretudo, as redes sociais, com o cidadão repórter, que grava os vídeos e espalha na internet. Isso permite o acesso a essa informação, com muitas ONG’s [organizações não-governamentais] a centralizarem os dados e a emitirem depois relatórios com o número de baleados, número de mortos, número de detidos.

Circulam também muitas fake news sobre os protestos?

Sim, há muitas fake news, de parte a parte.

Da parte da oposição, ainda hoje, circulou uma capa manipulada do New York Times, em que apenas trocaram título e umas fotos. A manchete falava na crise política de Moçambique. Eu próprio reencaminhei para quatro ou cinco pessoas, até ser alertado de que era uma fake news.

Há muitos vídeos de anos anteriores, ou de eventos completamente diferentes, com grandes multidões que são reencaminhados nas redes sociais como manifestações pró-Frelimo atuais, quando, na verdade, são eventos antigos, que aparecem a circular por membros ou simpatizantes do partido Frelimo. Então, vivemos neste período de fake news, de facto, e há muitas coisas que circulam a que as pessoas têm que estar atentas.

A resposta musculada das autoridades não é uma novidade. Parece-te que existe um agravamento de uma cultura autoritária e repressiva?

Vamos ser frontais e dizer as coisas com assertividade. A história de Moçambique é a história da violência do Estado contra a população. Esta violência vem do tempo colonial, e a violência marca, logo a seguir à independência, o governo de transição. A história da Frelimo é uma história da violência. A Renamo também reproduziu estas práticas durante a guerra dos 16 anos, que uns chamam de guerra de agressão, outros chamam de guerra civil.

A Polícia de Intervenção Rápida, já chamada Força de Intervenção Rápida, e agora de Unidade de Intervenção Rápida, bate nas pessoas à frente dos filhos, de qualquer maneira. A guerra em Cabo Delgado foi gerida com uma violência atroz. A guerra desumaniza e as nossas forças de defesa e segurança não são devidamente treinadas para estas coisas.

Os comandantes têm esta cultura brutal, que vem do tempo colonial. A forma como a polícia bate na população faz lembrar o Chico Feio, o pide negro cuja missão era torturar sem piedade todos aqueles que eram suspeitos de pertencer à Frelimo. O país é o mesmo, as coisas não mudaram. Mantém-se esta violência do Estado contra a população, mantém-se a pobreza, a exclusão social profunda, a insensibilidade e as desigualdades em que as classes endinheiradas do centro da cidade, onde eu me incluo, e tenho que humildemente reconhecer isso, sou um privilegiado, desfilam o seu bem-estar à frente de gente que não tem nada. E o mais perverso disso tudo é que há indivíduos que ainda chamam vândalos ou preguiçosos aos jovens que participam nos protestos, como se estes não tivessem direito de se indignar contra a sua situação. E como se não fosse compreensível que estes indivíduos, numa situação de extremo, desencadeiem pilhagens.

No teu entender, tem existido uma tentativa de desvalorização do movimento?

Continuam a tratar esta questão como um mero problema securitário, em que temos apenas de colocar mais polícias na rua, cortar a internet, reprimir as manifestações com balas reais, prender as pessoas, ir à casa delas, arrancá-las e levá-las para sítios incertos. Como se estivéssemos perante,  como eles dizem, um golpe de estado. E, portanto agem de uma forma hiper-desproporcional, que depois gera muito mais violência, quando poderiam resolver as coisas com sensibilidade, que é o que mais falta neste país.

O que pensas do argumento do Governo de que os jovens que estão a ocupar as ruas estão a ser instrumentalizados?

De acordo com a Frelimo, estes jovens estão a ser instrumentalizados e manipulados por Venâncio Mondlane. Aqui em Moçambique, há muito o hábito de explicarmos as relações sociais e políticas como se de relações familiares se tratassem. E, por isso, faz-se a seguinte comparação: a relação entre a Frelimo e a população, e, neste caso, a simpatia que a população tem agora por Mondlane, faz lembrar aquele casal que está junto há 50 anos, mas em que o marido bate na mulher há 49 anos. E nos últimos 10, 15, 20 anos, a mulher deixou de gostar do marido. E, entretanto, nos últimos anos, conheceu um jovem chamado Venâncio Mondlane e quer sair de casa para viver com esse homem. Mas o marido continua a bater-lhe e a trancá-la em casa para que ela não fuja com esse “cabeludo”.  Portanto, esta é uma maneira de diabolizar Mondlane, não percebendo que ele é só uma figura icónica e que, por trás de Venâncio Mondlane, está este tsunami social.

Em causa está o lúmpen urbano que cresce massivamente e que toma forma já há mais de 15, 20 anos, resultante do crescimento urbano acelerado, acompanhado de desindustrialização e de informalização da economia. Estes miúdos estudaram até ao 12ª ou têm formação superior e têm expectativas legítimas, mas estão a desenrascar-se no informal. O setor informal virou sítio de gente bem informada, com expectativas de ascensão social e que sabem muito bem o que está a acontecer, dos negócios que existem, da corrupção, das dívidas ocultas. Estes miúdos hoje têm acesso à internet, ouvem as notícias.

@karohane2024 Este país é nosso   Salve Moçambique Povo no poder #moçambique #eleicoes2024 #manifestação Inspirational - neozilla

Consideras que o escândalo das dívidas ocultas foi um ponto de viragem?

O sentimento já vinha de trás, mas as dívidas ocultas representam uma grande aceleração. Com a interrupção do Orçamento de Estado, com a desvalorização do metical, o salário real das pessoas foi cortado pela metade. E o julgamento das dívidas ocultas foi transmitido em direto. As pessoas estavam informadas e comentavam o que estava a acontecer. Sabiam quem estava envolvido. Alguém dizia que os intelectuais são os iluminados, então têm de informar bem as pessoas porque os outros são os incautos. Isso não é bem verdade. A  juventude urbana hoje está muito bem informada e tem maior sentido crítico. As pessoas têm a capacidade de fazer uma leitura política das coisas, não obstante estarem muito, de facto, sujeitos às notícias falsas e a desinformação.

Mas continuamos a ouvir dizer que a oposição não sabe governar. É uma continuação do preconceito colonial, segundo o qual os pretos não sabem governar.

O argumento de que é preciso assegurar o cumprimento da lei também está a ser mobilizado para tentar esmagar os protestos?

Sim, existe a questão do excesso de legalismo, que é típico dos países autoritários. Faz-se vista grossa às maiores violações de direitos humanos. Os direitos consagrados na Constituição, que é bastante progressista, são literalmente violados mediante ordens superiores. Ao mesmo tempo, os executores da proibição das manifestações alegam ordens superiores, sem que exista suporte escrito. E essas ordens superiores, que são apresentadas oralmente, contrariam autorizações escritas, que as pessoas muitas vezes têm.

Por exemplo, proíbem uma iniciativa da oposição com critérios que depois já não se aplicam quando há uma manifestação, por exemplo, da Organização da Juventude Moçambicana. E perante essa violação de direitos fundamentais, a Procuradoria Geral Da República (PGR) fica impávida e serena.

Mas depois há um esforço político muito grande no sentido de associar Venâncio Mondlane ao vandalismo, para descredibilizar este movimento e considerá-lo um simples movimento rebelde, marginal. A PGR há muito tempo que o persegue, para que ele não possa voltar nunca a Moçambique. No dia em que ele chegar ao país, será preso ou assassinado. Então, mantendo-o na diáspora, mantendo-o no exílio, ele não se consegue organizar e deixa de poder concorrer. Desta forma, a Frelimo livra-se de um adversário político extremamente incómodo e muito popular. É de assinalar que as suas lives chegaram a atingir as 160 mil visualizações, um número completamente inédito em Moçambique.

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Foto publicada na página de Facebook de Venâncio Mondlane.

Como justificas esta popularidade de Mondlane?

Mondlane inaugurou uma nova forma de fazer política quando se preparou muito bem para os debates políticos enquanto deputado da Remano e passou a utilizar frequentemente as redes sociais para difundir o seu trabalho.

Ao mesmo tempo que surgiu com uma oposição mais sofisticada intelectualmente, Mondlane complementou essa parte com uma vertente populista e demagoga. Aquando das cheias, ia aos bairros e filmava-se, molhado até à cintura. Ele não tem medo de vestir o fato-macaco e estar ao lado da população, o que implica que não representa o político burguês que só aparece sentado na Assembleia da República. Ele passou a representar o político que desce à praça pública, desce aos bairros, desce ao Caniço, desce ali à periferia e vive nas condições ou sente as condições do povo. Este tipo de populismo cativa também o Caniço, a que agora chamamos de subúrbios.

Mondlane soube também recriar o discurso do músico Azagaia, preenchendo o vazio que resultou da sua morte.

Ele torna-se um político completo porque consegue o apoio do Caniço até à cidade de cimento. Mesmo nas zonas urbanas, ele vence em muitas mesas de voto. Quando se realizou o panelaço, grande parte dos meus vizinhos aderiu. Víamos as luzes a piscar ou as pessoas a bater nas panelas nas varandas, desde a periferia à cidade. Os próprios donos das lojas, os comerciantes da Baixa, movimentaram-se em marchas. Foi a primeira vez que os comerciantes da Baixa, que têm medo da retaliação do partido Frelimo, apoiaram frontalmente o partido da oposição.

Até a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Advogados, os professores, todos eles marcharam em marchas que eram de condenação, de alguma forma, direita ou indiretamente do partido que está no Poder. Mondlane conseguiu o apoio generalizado da população urbana porque o descontentamento é generalizado.

No campo, é difícil dizermos qual é a tendência de voto, porque o nível de manipulação dos resultados é tão descarado que só quem é totalmente ingénuo acredita que a Frelimo ganha com 85% no planalto de Tete, por exemplo. São números que refletem apenas o rolo compressor da máquina da Frelimo, que atua bem fora da legalidade.

Venâncio Mondlane já veio anunciar uma quarta fase dos protestos, e apelou à paralisação de fronteiras e portos do país. Pensas que a mobilização vai manter-se? E o que poderá estar no horizonte?

Não há dúvida de que a paralisação teve um forte impacto económico, seja para o Estado, com a quebra da entrada de divisas, seja para a população, que vive do desenrasca e do comércio e de atividades diárias. Há muitos setores económicos que estão a ficar zangados. Alguns dizem mesmo que votaram em Venâncio, mas agora, ao sentirem na pele as consequências económicas, já estão fartos dos protestos. Também se começa a notar a falta de alguns produtos nas prateleiras das lojas, sobretudo de vegetais. Regista-se algum aumento dos preços, e isto vai refletir-se nos mais pobres. Então, acredito que alguns setores da população vão desanimar um pouco.

Mas é preciso ter em conta duas coisas.

Primeiro, a grande parte dos miúdos que estão a protestar vivem com os pais, que trabalham. Portanto, a comida garantida pelos pais, de alguma forma, está a subsidiar esta atividade política revolucionária. O que poderá fazer com que estes miúdos continuem ativos. Até porque a Frelimo nada tem feito para os conquistar.

O outro aspeto a considerar é que Venâncio já foi dado como morto politicamente várias vezes, e sempre conseguiu renascer das cinzas. E é isso que também o faz emergir como herói, porque um indivíduo que é tão humilhado, a quem são criados tantos obstáculos, sobrevive sempre.

Não me parece que este levantamento popular vai acabar por aqui. Pode não ser como Venâncio pretende, mas algo vai acontecer.

De que resposta o país e o povo moçambicano precisam?

É óbvio e claro que esta estratégia de regar o fogo com gasolina, que é o que estão a fazer, de responder com repressão ao levantamento popular, é um erro político enorme que a Frelimo vai pagar caro. Muito dificilmente a Frelimo vai conseguir recuperar o apoio da população. E se um dia esse partido sair do poder, tenho a certeza que vai ter muita dificuldade para voltar.

A população da capital associa a Frelimo a indivíduos violentos, criminosos que disparam contra o povo e que, ainda por cima, chama vândalos aos miúdos. A solução para isto vai depender de todo um conjunto de forças. 

Moçambique

Crise política e repressão em Moçambique

por

Israel Dutra e Júlio Câmara

14 de novembro 2024

Em vez de estar aqui a dar as receitas de como é que acho que as coisas deviam ser, prefiro compreender quais são as forças que existem e o que é que elas podem possibilitar.

O que acontece é que a Frelimo também é uma manta de retalhos, com muitas famílias empresariais que lutam entre si por protagonismos. E todas essas famílias têm estado a namorar Daniel Chapo para conseguirem agora mais protagonismo no próximo governo. E todas têm as suas cotas na governação. Daniel Chapo vai ter que acomodar essas reivindicações. Gerir os interesses dentro do partido não será fácil, até porque ele é miúdo, comparativamente com os mais velhos, como o Chissano, o Guebuza, ou até o Nyusi, e Graça Machel. Todos esses, uns com mais poder que outros, vão conseguir influenciar o próximo governo. Só quando tiver gerido estes múltiplos interesses, Daniel Chapo vai ter tempo para se dedicar a negociar com Venâncio Mondlane. Então tudo vai depender do poder destes diferentes grupos, e de como é que ele vai conseguir livrar-se de Nyusi. Convém lembrar também que Daniel Chapo é o primeiro presidente de Moçambique que não vem nem da defesa, nem da segurança, e não percebe ainda como as coisas funcionam, não tem arcaboiço. Daniel Chapo foi administrador de distrito, depois passou a governador de província, mas nunca foi ministro. Quando viveu na capital, era estudante, portanto, agora regressa à capital como presidente. Vai enfrentar mais velhos, com muito mais experiência, e vai ter que reconstruir os seus serviços de segurança. Vai ter de desmacondizar muito o setor da segurança, leal a Nyusi. Este último será o presidente da Frelimo, e, de acordo com os estatutos do partido, os ministros têm de reunir também com o presidente do partido após o Conselho de Ministros, para dar satisfações do que estão a fazer.

Acresce que não haverá qualquer negociação com Venâncio, porque Daniel Chapo não terá nada para negociar, não terá recursos para entregar, não terá cargos para entregar.

E tão pouco Venâncio se vai contentar com um cargo, porque ele não pode trair o seu povo. Venâncio, neste momento, está entre a espada e a parede. Qualquer aliança que faça com a Frelimo será entendida pelo povo como uma traição, como ato de corrupção, e isto representa uma traição ao seu eleitorado e a destruição do seu capital político. E, pelo que conheço de Venâncio, ele não quer trair o seu povo, com quem ele tem um sentimento de lealdade.

Agora, o caminho ideal seria um governo de unidade nacional, mas isso é impossível. Daniel Chapo e a Frelimo não têm atitudes de quem está disponível para negociar, porque isto implica negociar recursos. Eles estão habituados a esta situação de impopularidade e de colocar a polícia na rua. E acham que vão conseguir continuar a fazê-lo.

Outro problema que a Frelimo vai ter de enfrentar é a possível mudança da direção na Renamo. Se Manel de Araújo chefiar a Renamo, e, inclusive, fizer um acordo com Venâncio, as coisas também podem mudar.

A corda vai partir, é uma questão de tempo. O nível de impopularidade da Frelimo é muito grande.

manifestação Moçambique
Foto publicada na página de Facebook de Venâncio Mondlane.

Os escândalos são tão recorrentes porque os problemas são estruturais. E a própria Frelimo é a maior oposição de si própria. O objetivo das grandes elites do país é chegar ao poder para expropriar o Estado através dos negócios, e não propriamente fazer reformas, até porque essas reformas implicariam uma mudança de conduta perante o Estado. Se formos a ver, grande parte das elites nacionais são sócias do grande capital estrangeiro em muitos negócios. E essas elites nacionais dão proteção política a estes negócios, sempre em prejuízo do Estado. Então, qualquer reforma fiscal que melhorasse, fortalecesse o Estado teria sempre um custo: as rendas destas elites nacionais que não vão estar dispostas a fazer esse sacrifício. Então, creio que vamos continuar a assistir ao desgaste deste regime. Vai aumentar o descontentamento no seio das forças de defesa e segurança, sobretudo nos militares. E penso que o regime vai colapsar por si.

Mas, geralmente, é sempre imprevisível quando estas coisas acontecem. Por detrás desta musculatura toda, o país é tão frágil que basta um episódio para fazer o castelo de cartas ruir…

Mariana Carneiro
Sobre o/a autor(a)

Mariana Carneiro

Socióloga do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea. Ativista antirracista e pelos direitos dos imigrantes.