Genocídio

Israel está a atacar os navios de ajuda a Gaza - outra vez

04 de maio 2025 - 17:37

O que é que se pode dizer sobre o Estado de Israel e os seus apoiantes, se este consegue escapar impune a repetidos ataques a carregamentos de ajuda a civis palestinianos?

por

Seraj Assi

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Estado do navio Conscience após o ataque
Estado do navio Conscience após o ataque. Foto Flotilha da Liberdade.

Na sexta-feira, pouco depois da meia-noite, as forças israelitas bombardearam com drones armados um navio de ajuda humanitária que transportava alimentos e medicamentos para a Faixa de Gaza sitiada. O navio civil, que pertence à Freedom Flotilla Coalition (Flotilha da Liberdade, FFC), transportava trinta ativistas de solidariedade internacional de vinte e um países. Antes de partir para Gaza, o navio deveria fazer uma paragem em Malta para recolher mais quarenta pessoas, incluindo a ativista das alterações climáticas e dos direitos humanos Greta Thunberg e a coronel reformada do exército americano Mary Ann Wright.

O navio foi atacado perto de Malta quando se encontrava em águas internacionais, a mais de 1600 milhas náuticas de Gaza. Incendiou-se de imediato e começou a virar, tendo sofrido uma rutura substancial no casco.

“Há um buraco no navio neste momento e o navio está a afundar-se”, disse Yasemin Acar, o assessor de imprensa da coligação, à CNN, por telefone, a partir de Malta. “Atacar activistas internacionais dos direitos humanos em águas internacionais é um crime de guerra”, afirmou mais tarde Acar.

A organização acrescentou em comunicado: “O ataque do drone parece ter deliberadamente atingido o gerador do navio, deixando a tripulação sem energia e colocando o navio em grande risco de afundamento.”

As imagens publicadas pela FFC nas redes sociais mostram um incêndio a arder no navio, com os passageiros a bordo a caminharem por entre o fumo que parece ter engolido a embarcação, enquanto o som de duas fortes explosões também pode ser ouvido num outro vídeo. As fotografias tiradas a bordo do navio mostram também grandes buracos na estrutura, que parece estar em grande parte carbonizada e coberta de fuligem. (Trevor Ball, antigo membro da equipa sénior de eliminação de engenhos explosivos do exército dos EUA, disse à CNN que as fotografias são consistentes com a utilização de duas munições de explosão mais pequenas).

Embora o governo maltês tenha dito na sexta-feira que o navio e a sua tripulação estavam seguros nas primeiras horas da manhã, depois de um rebocador próximo ter ajudado nas operações de combate a incêndios, os organizadores da flotilha insistiram que o navio “ainda estava em perigo”, como noticiou a Reuters.

O ataque com drones foi um ataque deliberado contra civis

Mary Ann Wright, em declarações a partir de Malta, disse à CNN: “Qualquer pessoa podia estar no barco. . . Nem sequer pensámos que isto pudesse acontecer. É a coisa mais absurda do mundo. O navio estava ancorado ali, à espera que chegássemos. Quem enviaria drones para bombardear um navio que está ancorado ao largo de Malta? Isto devia ser um aviso para todos os países europeus”.

O ataque faz parte da campanha brutal de Israel para matar à fome os palestinianos em Gaza, que se encontra sob bloqueio total e bombardeamentos incessantes há dois meses, com mais de dois milhões de pessoas à beira da fome em massa. Na sexta-feira, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) publicou um relatório em que adverte que a resposta humanitária em Gaza está “à beira do colapso total”. O Programa Alimentar Mundial (PAM) informou esta semana que “os seus armazéns estão agora vazios; as cozinhas sociais que ainda funcionam estão a racionar fortemente as suas últimas reservas; e os poucos alimentos que restam nos mercados de Gaza estão a ser vendidos a preços exorbitantes que a maioria não pode pagar”.

A Flotilha da Liberdade é uma rede internacional de ativistas anti-genocídio que trabalha para pôr fim ao bloqueio ilegal de Israel a Gaza e entregar ajuda humanitária ao enclave sitiado através de uma ação não violenta e simbólica. “A bordo estão ativistas internacionais dos direitos humanos numa missão humanitária não violenta para desafiar o cerco ilegal e mortal de Israel a Gaza e para entregar ajuda desesperadamente necessária e que salva vidas”, afirmou o grupo num comunicado.

Em declarações à Reuters a partir de Malta, Thunberg disse que o navio de ajuda era “uma das muitas tentativas de abrir um corredor humanitário e de fazer a nossa parte para continuar a tentar quebrar o cerco ilegal de Israel a Gaza”, onde “há dois meses que nem uma única garrafa de água entra em Gaza, e é uma fome sistemática de dois milhões de pessoas”. Thunberg não se deixou intimidar e prometeu: “O que é certo é que nós, ativistas dos direitos humanos, continuaremos a fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para fazer a nossa parte.”

Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para os Territórios Palestinianos Ocupados, afirmou nas redes sociais que “recebeu um telefonema angustiado das pessoas da Flotilha da Liberdade, que transporta alimentos e medicamentos essenciais para a população faminta de Gaza”.

Na sequência do ataque, a organização apelou a uma investigação de possíveis crimes de guerra, afirmando em comunicado: “Os embaixadores israelitas devem ser convocados e responder pelas violações do direito internacional, incluindo o bloqueio em curso e o bombardeamento do nosso navio civil em águas internacionais”.

Todos os indícios apontam para Israel. Citando o site de rastreio de voos ADS-B Exchange, a CNN noticiou na sexta-feira que um Hércules C-130 da Força Aérea israelita foi detetado a sair de Israel ao início da tarde de quinta-feira e a voar para Malta. “O Hércules não aterrou no aeroporto internacional de Malta, segundo os dados, mas o avião de carga voou a uma altitude relativamente baixa - abaixo dos 5.000 pés - sobre o leste de Malta durante um longo período de tempo. O Hércules sobrevoou o local várias horas antes de a Coligação da Flotilha da Liberdade afirmar que o seu navio foi atacado. O avião regressou a Israel cerca de sete horas mais tarde, de acordo com os dados de localização do voo”.

Ataque semelhante em 2010 matou dez ativistas e feriu 30

Huwaida Arraf, uma organizadora da FFC, escreveu num e-mail para o Washington Post que “Israel já nos ameaçou e atacou muitas vezes antes, em 2010, matando 10 dos nossos voluntários. É também a principal entidade interessada em manter-nos e a qualquer ajuda fora de Gaza”.

A condenação mundial foi rápida e inequívoca. “Um crime, dentro de um crime, dentro de um crime”, descreveu Luigi Daniel, especialista em direito internacional humanitário. Itamar Mann, professor associado da Universidade de Haifa, disse que o ataque “assinala uma clara violação do direito à vida, bem como um crime de guerra”. Shahd Hammouri, especialista palestiniano em direito internacional, afirmou que “Israel está disposto a bombardear navios humanitários para manter a sua política de fome do povo palestiniano como método de guerra”.

Na sexta-feira, a Amnistia Internacional renovou o seu apelo a Israel para que levante o sufocante bloqueio humanitário e o devastador cerco a Gaza, que é simultaneamente “desumano e cruel”, chamando-lhe “mais uma prova da intenção genocida de Israel em Gaza” e advertindo que a “política do governo israelita de impor deliberadamente condições de vida aos palestinianos em Gaza, calculadas para provocar a sua destruição física, equivale a um ato de genocídio”.

Entretanto, um advogado do Departamento de Estado disse esta semana ao Tribunal Internacional de Justiça que Israel “não tem o dever” de permitir a entrada da ajuda da ONU em Gaza e que os Estados Unidos apoiam totalmente a proibição imposta por Israel à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados (UNRWA).

Após o ataque de sexta-feira, uma sensação de déjà vu trágico atingiu os palestinianos em Gaza, que estão sob cerco há quase duas décadas e que recordam com horror que os ataques de Israel a navios de ajuda são tão antigos como o próprio cerco.

Israel tem um longo historial de ataques a navios de ajuda humanitária com destino à Faixa de Gaza sitiada. Em maio de 2010, três anos após o início do cerco, Israel atacou seis navios civis da Flotilha da Liberdade de Gaza em águas internacionais no Mar Mediterrâneo, matando dez passageiros e ferindo outros trinta. Os navios transportavam bens humanitários para Gaza e estavam a bordo com civis que estavam a agir em solidariedade com os palestinianos sitiados.

Um relatório do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas considerou o bloqueio ilegal e declarou que o ataque de Israel ao navio “revelou um nível inaceitável de brutalidade”, com provas de “morte intencional”. Apesar da indignação global provocada pelo ataque, o então vice-presidente Joe Biden assumiu a liderança na defesa do ataque de Israel à caravana de ajuda humanitária, descrevendo o ataque mortal como “legítimo”, aplaudindo o direito de Israel de cercar os palestinianos em Gaza e transferindo a culpa para as vítimas. “Então, qual é o problema? Qual é o problema de insistir que vá diretamente para Gaza?” disse Biden.

De acordo com o direito internacional, a fome forçada é um crime de guerra, um crime contra a humanidade e um ato de genocídio. No entanto, a cumplicidade e o apoio incondicional dos EUA ao longo dos anos têm garantido que Israel possa atacar e matar civis com impunidade.


Seraj Assi é um escritor palestiniano que vive em Washington, DC, e autor, mais recentemente, de My Life As An Alien (Tartarus Press). Artigo publicado na Jacobin.