A médica de família Sara Ferreira integra a comissão promotora do Movimento Mais SNS, que convocou para este sábado, dia 3 de junho, uma grande manifestação cidadã pelo reforço do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e pela garantia dos cuidados de saúde. O ponto de encontro da iniciativa será no Largo de Camões, em Lisboa, pelas 15h.
Em entrevista ao Esquerda.net, a profissional de Saúde apontou os principais fatores que levaram ao agravamento da falta de médicos nos cuidados de saúde primários, as consequências da suborçamentação do SNS para profissionais e utentes, e as medidas que deveriam ser implementadas para garantir a captação e fixação dos profissionais de saúde. Sara Ferreira explicou ainda porque é tão urgente lutar pelo SNS.
O Governo garantiu que, até 2017, todos os utentes teriam médico de família. No entanto, o problema só se agravou, e hoje mais de 1 milhão e 700 mil cidadãos não têm equipa de saúde familiar. Como chegámos a este ponto?
A resposta a esta pergunta não é fácil. Temos vários fatores que se interligam numa sinergia complexa. Uma rede de cuidados de saúde primários em pleno e ótimo funcionamento é a base de um serviço de saúde saudável e competente. Mas o que assistimos é a uma continua visão dos cuidados hospitalocêntrica, que em muito dificulta a prestação de cuidados focados na pessoa e na comunidade em que se insere.
Tentando não ser exaustiva, elenco alguns dos fatores que me parecem fulcrais para o agravamento da falta de médicos nos cuidados de saúde primários.
A medicina geral e familiar é uma especialidade que existe em Portugal desde 1983, são seis anos de curso de medicina, um de formação geral e quatro de formação especifica. Podíamos pensar que não estamos a formar pessoas suficientes. Mas a realidade é que completam a especialidade cerca de 500 pessoas por ano. Destas, uma elevada percentagem não fica no SNS porque claramente não o considera atrativo e decide ir para o privado, para o estrangeiro, ou até há quem desista da profissão, um fenómeno observado noutros países, como reflexo de uma degradação global dos serviços de saúde e de uma tendência para a cada vez maior incapacidade dos profissionais controlarem aspetos relacionados com a sua prática.
O excesso de tarefas burocráticas que foi sendo transferido para os médicos de família tornam também o trabalho no SNS menos aliciante. Este aspeto aliado à constante falha no fornecimento de equipamentos (toners, papel, contracetivos, servidores com capacidade insuficiente), provoca uma entropia cada vez mais difícil de gerir em serviços já no seu limite da capacidade de funcionamento.
A destruição das carreiras médicas, que foram durante anos o garante do bom funcionamento do SNS, é também nos cuidados de saúde primários uma questão crítica. O congelamento das progressões coloca os profissionais numa situação de estagnação e baixos salários.
A reforma de cuidados de saúde primários iniciada em 2005, pensada de forma a melhorar e modernizar os equipamentos e funcionamento dos serviços em Portugal, foi implementada de forma muito assimétrica, não chegando a todos os locais da mesma forma, criando desigualdade entre profissionais e utentes. Temos hoje em dia UCSP (Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados); USF (Unidade de Saúde Familiar) A e USF B. Em todas elas assistimos hoje a remunerações diferentes para trabalho igual o que cria desigualdade e insatisfação nos profissionais. O desgaste que as equipas sofrem nos processos de candidatura a modelo B, e a erosão que daí resulta muitas vezes das relações laborais, levam muitos profissionais a abandonar as suas unidades ou a nem sequer pensarem em tentar. Outra questão prende-se com a impossibilidade de muitos colegas poderem sequer organizar-se em modelo USF e de, tendo contratos antigos, não poderem beneficiar das novas medidas remuneratórias para UCSP.
Em Lisboa e Vale do Tejo, a zona mais carenciada de profissionais nos cuidados de saúde primários, assistimos ano após ano a uma enorme dificuldade em preencher as vagas disponíveis. Não é raro ficarem 50% das vagas por ocupar. As rendas e os seus preços incomportáveis, aliados à perda do poder de compra, que para nós, médicos, tem sido muito acentuada, pode explicar um pouco o fenómeno…Mas há já vários anos se torna impossível fixar profissionais nas zonas da linha de Sintra e Amadora, por exemplo. Penso que um dos motivos se relacione com estratégias delineadas pelas direções executivas dos agrupamentos de centros de saúde que, tentando dar resposta aos problemas encontrados, muitas vezes com pouca ou nenhuma experiência na área, sobrecarregam, de forma por vezes impositiva e autoritária, os profissionais, criando situações de conflito e desgaste, e que levam a rescisão e abandono dos serviços. Se pensarmos que numa unidade onde deviam trabalhar oito médicos encontramos cronicamente apenas dois ou três, é fácil perceber que estes não vão conseguir lidar com todas as dificuldades que se originam no funcionamento de uma unidade sem os recursos humanos adequados.
Com que outros constrangimentos são confrontados utentes e profissionais de saúde no seu quotidiano perante a degradação dos cuidados de saúde primários?
O desinvestimento crónico, a suborçamentação do SNS, cria serviços muito difíceis, onde é complicado trabalhar sem se ficar doente, onde é mais fácil sofrer de burnout porque não se consegue exercer a profissão para a qual investimos tanto. Porque sentimos que não estamos a prestar os cuidados que as pessoas necessitam por falta de recursos. Assim, não é apenas pela falta de profissionais, de “equipas de saúde”, que corresponderiam num mundo ideal à tríade medicina + enfermagem + secretariado clínico. Faltam também psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, médicos dentistas, assistentes sociais. Sem estes profissionais, os cuidados de saúde primários não funcionam em todo o seu potencial, criando dificuldades e atritos numa engrenagem delicada. E quem sofre são profissionais e, especialmente, as pessoas utilizadoras dos serviços, que se veem sem capacidade para ter os cuidados adequados de prevenção da doença, cuidados curativos, numa perspetiva holística e centrada na pessoa, sua família e comunidade. Serão, efetivamente, as pessoas com menos recursos as que mais sofrem com a degradação dos serviços. No entanto, mesmo as pessoas com capacidade para pagar serviços e seguros de saúde, sem SNS não têm acesso, por exemplo, a transplantes, tratamento para o VIH ou medicação para muitas patologias auto-imunes.
O Governo anunciou, com pompa e circunstância, a abertura de centenas de vagas para médicos de família. As medidas do executivo socialista solucionam o problema da falta de profissionais?
Claramente não estão a conseguir solucionar o problema porque não ouvem os profissionais. Os sindicatos estão em negociações desde 20 de abril de 2022 e não temos qualquer proposta concreta. São apenas medidas arbitrárias, sem uma reflexão do real impacto a longo prazo e que a curto prazo estão já a desorganizar alguns serviços e a criar assimetrias remuneratórias em profissionais que fazem exatamente as mesmas tarefas no mesmo serviço.
Que medidas consideras que seriam essenciais para captar e fixar os profissionais de saúde e para melhorar os cuidados de proximidade?
É urgente melhorar as condições laborais, e, para isso, torna-se essencial investir nos serviços, quer em recursos humanos quer físicos. Para a questão dos recursos humanos, as grelhas salariais devem ser revistas, e é essencial voltarmos a ter progressão e proteger as carreiras médicas, ou continuaremos a assistir ao êxodo de profissionais para o privado e estrangeiro. Insistir no modelo Pay for performance fomenta desigualdades, cria descontentamento e inequidades entre profissionais e, por consequência, entre população utilizadora dos serviços.
É de suma importância também flexibilizar horários de trabalho, humanizar as jornadas de trabalho, tornar mais compatível a vida laboral com a familiar e social.
Direções executivas que ouçam os profissionais e trabalhem em sinergia para encontrar soluções numa abordagem mais horizontal e onde se consigam encontrar soluções justas e adequadas à população de cada comunidade.
Está agendada para o próximo sábado, dia, 3 de junho, uma manifestação nacional em defesa do SNS. Qual é a importância desta iniciativa?
Este é um movimento que surge da urgência em lutar pelo que é certo. Sobre a decisão de preservar um serviço de saúde universal e gratuito. Exigir uma tomada de posição clara do nosso governo sobre uma questão que é política. Investir no SNS, um bem essencial da população portuguesa, é investir numa sociedade com menos desigualdades e maior equidade em saúde.