Informação em tempo de guerra: como evitar a manipulação?

09 de abril 2022 - 16:04

Numa guerra transmitida em direto e que também se trava nas redes sociais, o jornalismo volta a enfrentar velhos e novos desafios. O Esquerda.net ouviu a opinião de Pedro Caldeira Rodrigues e Diana Andringa.

porLuís Branco

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Foto Geoff Livingston/Flickr

Para refletir sobre a cobertura mediática da atual guerra da Ucrânia, fomos ouvir a opinião de dois jornalistas com experiência de reportagens em países em guerra, seja durante os conflitos armados ou no rescaldo das tragédias humanitárias. A ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas, Diana Andringa, fez reportagens para a RTP em países em guerra nos anos 1980, relatando a situação dos refugiados durante a ocupação soviética no Afeganistão ou a situação no Iraque durante a guerra com o vizinho Irão. Pedro Caldeira Rodrigues assistiu no terreno ao conflito na Jugoslávia, relatado nas suas reportagens no Público e também no livro “O Vírus Balcânico – O Caso da Jugoslávia”, escrito com Stevan Niksic.

É sabido que a intoxicação informativa em cenários de guerra é um dos principais inimigos dos jornalistas. “Os riscos são aqueles que sempre existem quando se ouve só um lado num conflito, armado ou não”, afirma Diana Andringa. E no caso atual da guerra na Ucrânia esses riscos aumentam “por estarem já definidos os papéis de agredido e agressor”. Para Pedro Caldeira Rodrigues, “uma guerra de resistência de um país agredido face a um agressor mais poderoso, com capacidade militar para promover devastação em larga escala ou alegados massacres de civis, como ficou comprovado em diversas cidades da periferia de Kiev após a retirada estratégica do exército russo, é mais um fator decisivo também para determinar o "crivo moral" dos jornalistas”.

Jornalista equidistante torna-se persona non grata em ambos os lados do conflito

Para quem está no terreno com a missão de informar, nunca é indiferente a violência da situação que se está a viver. “Se estás numa cidade a ser bombardeada, é difícil não sentires maior empatia com o lado dos habitantes dessa cidade que com o lado de quem os bombardeia”, reconhece Diana Andringa. E muitas vezes esse trabalho é feito sem acesso à informação “do outro lado”, embora as redações tenham idealmente “jornalistas e/ou fontes de ambos os lados”, acrescenta a jornalista e documentarista.

Mas a realidade desta guerra e da sua cobertura nos media ocidentais tem sido marcada, na opinião de Pedro Caldeira Rodrigues, por privilegiar desde o início “as fontes oficiais, ou oficiosas, ucranianas, que disponibilizaram inúmeras ferramentas que vão ao encontro da perceção da generalidade dos jornalistas e da ‘opinião pública’”. Mérito da máquina de comunicação ucraniana, que conseguiu responder à “aparente negligência dos canais de informação, desinformação ou propaganda com origem na Rússia” com mensagens “simples mas eficazes, sendo o exemplo mais evidente a forma como o Presidente Volodymyr Zelensky se tem apresentado nas suas intervenções diárias e que se propagam por quase todo o mundo”. Outro exemplo são “as inúmeras atualizações sobre a evolução do conflito, como fotos, vídeos, gráficos de diversos 'sites' difundidos no Twitter, Facebook, Instagram..., mesmo que sem possibilidade de comprovação imediata”, acrescenta o jornalista da Lusa.

Se os media ocidentais se têm baseado quase sempre em fontes ucranianas, nomeadamente os testemunhos de civis, como base para as suas reportagens, Caldeira Rodrigues nota que ao ignorarem “em particular nas primeiras semanas da guerra” o chamado “contraditório”, mesmo que com a necessária filtragem da desinformação e propaganda do lado russo, isso impediu “uma abordagem mais apurada da situação no terreno”. Mas uma coisa é certa e válida para todos os conflitos: jornalistas que escolham o caminho do sentido crítico, da contextualização e memória histórica ou da equidistância, imediatamemte se tornam persona non grata por parte dos dois lados da guerra.

No atual conflito, aponta Pedro Caldeira Rodrigues, tem prevalecido “a simplificação dos acontecimentos, muitas vezes reduzindo-os a um conflito entre "bem" e "mal", numa espécie de dicotomia religiosa” que resulta num “quase unanimismo” reforçado pela repetição das mesmas histórias dia após dia pelos diversos canais, nacionais ou internacionais. Um unanimismo que acaba por ser “compreensível por se tratar de uma invasão militar a um Estado soberano, mesmo que o investimento mediático na atual guerra, e a linguagem utilizada, não tenha comparação com outros conflitos do passado em que Estados soberanos também foram agredidos, com um balanço de muitas centenas de milhares de mortos, mas com uma abordagem mais suavizada e compreensível, mesmo elogiosa, face ao agressor”.

Mas como evitar esse risco de manipulação? Diana Andriga aponta um caminho: “Multiplicando as fontes, tentando ouvir outros pontos de vista, tentando sempre verificar os factos que são contados por pessoas em óbvio estado de perturbação, tentando, ao informar, estabelecer uma diferença entre o que está confirmado pelo/pela jornalista, o que lhe foi dito (identificando a fonte), e ‘as informações que correm’”.

O mundo olha de forma diferente para a guerra?

No que diz respeito às diferenças na cobertura mediática da guerra em diferentes pontos do mundo, Diana Andringa afirma que embora não faça um acompanhamento suficiente da comunicação social internacional para permitir uma análise comparativa, o que viu até agora foi suficiente para concluir que apesar do profissionalismo e o esforço de vários dos enviados especiais, “o resultado final do que é difundido sofre de falta de contenção e de contextualização e tende a apoiar-se nos pormenores dramáticos que todas as guerras têm - mas em locais não europeus muitas vezes se esquecem - em pseudo-análises "psicológicas" sobre as causas da guerra (a "personalidade" de Putin, a "brutalidade" do povo russo), com falta de fatores de enquadramento geopolítico, social e económico”.

Uma análise partilhada por Pedro Caldeira Rodrigues a partir do que viu e leu na generalidade dos media ocidentais, onde “é pouca a diferença” no registo dessa cobertura marcada “pelos denunciados massacres pelas forças russas, a divulgação de ‘imagens sensíveis’ com mortes de civis, incluindo idosos, mulheres e crianças, o reforço das sanções, as persistentes imagens de destruição de edifícios, a expulsão de Moscovo de importantes fóruns internacionais, os discursos oficiais muitas vezes transmitidos em direto, um rol de comentadores e analistas que na generalidade se identificam com essa posição dominante, ou a omissão em corrigir diversos relatos que depois se revelam infundados”. O jornalista destaca ainda o aspeto da “competitividade mediática” criada pela atração de audiências numa situação de exceção como é a de uma guerra surgida numa altura “em que imperava o desinvestimento na reportagem e nos trabalhos de investigação”.

Entre as exceções a esta assumida parcialidade na cobertura a favor do lado ucraniano, Pedro Caldeira Rodrigues dá como exemplos canais televisivos “como as estatais CGTN chinesa e a TRT turca ou mesmo a Al Jazeera (serviços em inglês), que decerto por serem vizinhos, manterem específicos interesses geopolíticos e económicos, ou conhecerem melhor as realidades de cada país, prescindem da abordagem simplificada e maniqueísta do ‘outro’, tendo inclusive enviado equipas de reportagem ao ‘lado russo’ ou exibido imagens de soldados russos aparentemente executados sumariamente pelos militares ucranianos”. E também há quem quem aposte claramente numa cobertura alinhada com o lado russo, como é o caso do canal Telesur, financiado pelos estados da Venezuela, Cuba e Nicarágua, que dispõe de “uma equipa de reportagem em permanência no Donbass separatista russófono e dando particular ênfase às posições oficiais emitidas por Moscovo”. Quem vê este canal assiste sobretudo a imagens dos efeitos dos bombardeamentos ucranianos sobre localidades sob controlo das repúblicas separatistas, “com prédios bombardeados, civis mortos, retirada da populações, ou relatos de perseguições às populações ‘russófonas’ e que se intensificaram por toda a Ucrânia após o início da invasão”.

30 anos depois da guerra nos Balcãs, o que mudou?

“Os media parecem ter-se definitivamente envolvido num combate, muitos atuando quase como uma organização política, enquanto aumentam as apreensões sobre a forma de lidar com as novas e cada vez mais sofisticadas tecnologias da informação”, conclui o jornalista, traçando alguns paralelos e diferenças com a guerra a que assistiu há quase 30 anos.

“À semelhança do que agora sucede, a ‘batalha pelo coração e os espíritos’ também esteve presente nas guerras jugoslavas (1991-2001), e nesse aspeto croatas, bosníacos (muçulmanos), e de seguida os albaneses de Kosovo (divididos entre ‘moderados’ e ‘radicais’) sempre levaram a melhor face à Sérvia e aos sérvios bósnios, que apostavam sobretudo na propaganda a nível interno e descuravam os media internacionais, sobretudo após terem sido eleitos como os ‘agressores’ e primeiros responsáveis pelas guerras”, recorda Pedro Caldeira Rodrigues. E “quando se aperceberam dessa negligência, por geralmente associarem muitos jornalistas ocidentais ao adversário hostil, já era tarde”, aponta, sublinhando que nessa guerra não se atingiu o ponto de sofisticação da comunicação a que assistimos hoje, com “o hiper-mediático Presidente Volodymyr Zelensky” a merecer a simpatia de boa parte do mundo e a ver os seus erros de comunicação - como o desta semana que indignou o Parlamento grego, ao dar a palavra na sessão solene virtual a um membro do Batalhão Azov - “ignorados pela generalidade dos media, em particular as televisões”.

Outra diferença entre os dois conflitos decorre da geografia que aproximava as várias partes no caso balcânico, onde “era possível contactar com relativa facilidade todas as partes em conflito, confrontá-las, questioná-las, abordar os críticos dos regimes, obter um cenário global mais equilibrado, mais aprofundado, dessas guerras civis, e que muitas vezes contradizia os habituais ‘clichés’”. Pelo contrário, na guerra da Ucrânia “escolhe-se um campo para ‘reportar’, sendo praticamente impossível obter a versão do outro lado, ou qualquer opinião divergente, também devido às dificuldades impostas pelos protagonistas e à muita desconfiança inicial face ao estrangeiro”, aponta Pedro Caldeira Rodrigues, a propósito dos rumores que circulavam em Kiev quando a coluna militar russa avançava na direção da capital ucraniana, acerca da presença na cidade de “espiões e sabotadores russos” disfarçados de jornalistas.

Censura russa e europeia à informação “do outro lado”

Uma das primeiras sacrificadas no início da guerra foi a liberdade de informação, com o Conselho da União Europeia a incluir no pacote de sanções a proibição das emissões dos canais de televisão internacionais associados ao Kremlin e Moscovo a cortar as emissões dos canais de informação ocidentais. Na União Europeia, a medida foi criticada pela Federação Europeia de Jornalistas, embora não se tenha assistido a uma enorme vaga de protesto contra esta decisão inédita. Para Diana Andringa, este tipo de proibições “são formas de censura a combater” e a jornalista considera “estranho que sejam usadas por países que se afirmam democráticos e defensores da liberdade de pensamento e de expressão desse pensamento”.

Pedro Caldeira Rodrigues sublinha o facto de a suspensão europeia ter sido “decidida por um organismo burocrático à revelia de qualquer debate”. Por outro lado, a resposta russa na mesma moeda, além de proibir os media ocidentais com o mesmo pretexto de serem instrumentos de propaganda, serviu igualmente para apertar ainda mais “o cerco aos media independentes, que praticamente deixaram de existir”. Em resumo, conclui o jornalista, as sanções recíprocas à informação provam que “afinal, as guerras também se vendem, e parecem cada vez mais sofisticadas as formas de apresentar o ‘produto’ para consumo público”.

Luís Branco
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Luís Branco

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