Este sábado, dia 27 de abril, é inaugurado o Museu Nacional Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche. Em entrevista ao Esquerda.net, o historiador Fernando Rosas, que integra a Comissão Executiva do Museu e ali esteve preso, explica o papel desta prisão de máxima segurança no sistema fascista, conta como os presos políticos aí resistiam, como com a sua luta conseguiram mudar as regras prisionais e como organizaram uma escola dentro da prisão que foi uma “universidade” para muitos.
Podes dar-nos a conhecer a história da fortaleza de Peniche? Qual foi o seu papel no aparelho repressivo do Estado Novo?
A fortaleza foi construída no século XVI. Foi prisão de liberais e local de recolha dos boers que vinham da guerra da guerra anglo-boer, na transição do século XIX para o século XX, depois, foi sítio de concentração obrigatória para os cidadãos alemães residentes em Portugal durante a Primeira Guerra Mundial.
A partir do golpe militar de 28 de Maio de 1926, a cadeia transforma-se em prisão política. Entre 1926 e 1934, é uma prisão política da ditadura militar. Ou seja, passam por aqui anarco-sindicalistas, republicanos, alguns socialistas. Mas não existe documentação, registo de entradas, foi preciso andar um bocado à pesca à linha para os encontrar. A partir de 1934, a cadeia é considerada uma cadeia privativa da Polícia Política, portanto, nessa altura da PVDE, mais tarde PIDE. E aí já há registo de entradas. E entre 1934 e 1974, data em que se dá a libertação dos presos, regista-se um número total de entradas à volta dos 2.500 presos políticos, homens, na medida em que era uma prisão masculina.
Durante todo este longo período, a cadeia tem duas fases. A primeira vai até o fim da Segunda Guerra Mundial, em que é uma cadeia para cumprir pena. Havia a cadeia do Aljube, onde decorriam os interrogatórios, onde os presos estavam presos durante os interrogatórios. Havia a cadeia do Forte de Caxias, que era uma cadeia mais para penas curtas. E havia a cadeia do Forte de Peniche que era normalmente reservada a presos que a polícia política considerava perigosos ou que tinham penas longas para cumprir.
De que tipo de penas estamos a falar?
É preciso dizer que ter penas longas era uma coisa que variava. Ou seja, a polícia política, até ao fim da Segunda Guerra, com total liberdade, podia prender um cidadão e mantê-lo o preso durante o tempo que quisesse. Há muita gente que vai parar ao Tarrafal e que passa lá sete, oito, nove anos sem nunca ter sido julgada. Era uma decisão arbitrária da polícia e há muita gente que é julgada, condenada e fica presa para além da condenação que tem. A polícia entendia que a pessoa devia continuar presa e ficava. E isso aconteceu frequentemente, quer em Peniche, quer sobretudo no campo de concentração do Tarrafal. Este era muito inspirado no campo de Dachau, que também é inaugurado em 1934, e é o campo da morte lenta. Parte-se do princípio, nunca escrito, de que quem vai para lá, não volta. Lá morreu o Mário Castelhano, dirigente histórico da Confederação Geral de Trabalho, anarco-sindicalista, e lá morreu o Bento Gonçalves, secretário geral do Partido Comunista. Ao todo foram 32 pessoas que praticamente foram deixadas morrer. Ou seja, morriam de paludismo e sem assistência. Eram presos que durante anos e anos não tiveram acesso a um jornal, uma notícia, uma visita, e ficaram, portanto, anos infinitos.
Eram sobretudo aqueles homens a que o regime desejava aplicar uma vingança especial, ou seja, os marinheiros da Revolta da Armada de 1936, os ativistas da greve geral do 18 de janeiro de 1934. Há homens que estão ali presos 20 anos, só saem no ano em que fecha o campo, em 1954. O campo do Tarrafal reabre em 1961, como campo de prisão para os militantes dos movimentos de libertação nacional da Costa Ocidental-Africana, ou seja, sobretudo Guiné, Angola e Cabo Verde.
E o que acontece na segunda fase de que falavas em Peniche?
Em 1950, o governo resolve transformar Peniche numa prisão de alta segurança. A prisão recebe então obras em grande profundidade que dão origem à estrutura atual, três grandes pavilhões, o A, B, C, e depois, um pavilhão lateral, sobretudo para os serviços de apoio à cadeia.
E é dessa prisão de alta segurança que, ironicamente, em janeiro de 1960, do terceiro piso do pavilhão A, o de mais alta segurança de todos, se vai evadir o Álvaro Cunhal juntamente com vários dirigentes do Partido Comunista, como então era também o Francisco Martins Rodrigues, que mais tarde, depois, organizará a primeira cisão importante do Partido Comunista em 1964.
Portanto, a partir dos anos 50, a prisão é um pesadelo porque, como prisão de alta segurança, os presos estão a maior parte do tempo encerrados em celas individuais ou em salas mais coletivas. Têm dois únicos momentos de convívio quando comem juntos. Mas quando comem juntos no refeitório não podem falar uns com os outros e nem sequer podem distribuir a comida que recebem uns com os outros. A distribuição de comida é punida com o segredo. Qualquer tentativa de estabelecer conversas era punida também com segredo. Era um regime de extrema violência física e simbólica, humilhação. Toda a filosofia da prisão é destinada a humilhar e quebrar a vontade do preso, coisa que se prolonga.
Só no período do marcelismo é que alguns desses aspetos, e devido a lutas prisionais ferozes, em parte conduzidas por presos da extrema-esquerda, em parte também por presos do Partido Comunista, é que se consegue começar a abrandar alguns dos aspetos mais sinistros do regime prisional.
O outro momento de convívio durante uma hora por dia era uma sala com quatro mesas, quatro lugares, e as pessoas só podiam falar com as pessoas que estavam na sua mesa e qualquer tentativa de falar com pessoas que estivessem noutra mesa e de lhes passar documentos, jornais, fosse o que fosse, era alvo das mais severas punições. E foi contra tudo isto que se travaram lutas tremendas nos finais dos anos 60, princípios dos anos 70.
Devo dizer aliás que a diversificação política da cadeia ajudou a radicalizar essas lutas. porque começaram a chegar à cadeia os presos da Frente de Ação Popular, do MRPP, do MPLA, Frelimo. Ao ponto de as divergências entre presos políticos se agudizarem. E os presos políticos que não são do PCP, passam a ter um espaço próprio, ou seja, o segundo andar, o segundo do pavilhão B.
E chegas à prisão nesse contexto e é aí que ficas preso...
Quando fui para Peniche, a recomendação que eu tinha era chegar lá e dizer “daqui só vou para o 2º B”. E eu cheguei lá e disse “daqui só vou para o 2º B, a menos que vocês me levem à força e mesmo assim vou resistir”.
Eles deixaram-me no rés do chão do pavilhão B, que nessa altura não tinha ninguém, esperando seguramente pela noite para me levar mesmo à força. Mas eu comecei a assobiar a internacional pela janela. E de repente, lá de cima, no primeiro andar, há uma voz que ecoa e que diz assim: “Quem é que está aí em baixo a assobiar?” Eu digo: “Sou o Fernando Rosas. E disse que só ia para o 2º B”. E de lá respondem: “Eu sou o Rui D'Espiney é claro que vens para o 2º B e nós vamos fazer levantamento de rancho até que tu vires para aqui, enquanto não vieres, ninguém come”. Grande confusão. O que é facto é que eles fizeram o levantamento de rancho e que eu fui para o 2º B, onde cumpri pena.
Eu não tinha uma pena típica daquelas de cumprir em Peniche, mas eles queriam muito que eu tivesse. Era a segunda vez que me prendiam. Iriam tentar prender uma terceira vez, ainda, mas não vão conseguir. Eles queriam dar sinal e eu cumpri a pena.

Que balanço fazes dessa experiência?
A prisão de Peniche para mim foi uma escola, uma Universidade. Em grande parte porque aquele piso era formado por gente de esquerda, muito diferente, com muitas sensibilidades e muitas aproximações da realidade. Quer dizer, não havia ali ninguém a dizer o que nós devíamos pensar e não devíamos pensar. Isso permitiu organizar grupos de trabalho, grupos de estudo, organizar pequenos seminários, conferências.
A cadeia foi uma coisa muito produtiva para mim porque funcionava exatamente ao contrário do que o carcereiro queria. Queria-nos dobrar e a malta fazia da cadeia uma espécie de universidade para preparar a continuação da luta. Isso foi um grande ganho para a minha vida porque ajudou-me a crescer, a perceber melhor as coisas. Era uma solidariedade de homens inteiramente desinteressada, solidária, com propósito de se discutir aquilo que que poderia ser discutido e da forma mais útil. Essa diversidade também foi muito importante porque ajudou a radicalizar a luta dentro da cadeia e ajudou a melhorar substancialmente a regime prisional já no período do Marcelo Caetano.
E depois, com o 25 de Abril, encerra-se esse capítulo...
É essa data, dos 50 anos da libertação do forte, que vamos comemorar neste dia 27 de abril. Uma data de luta, uma data de uma memória muito significativa. Até porque a libertação dos presos políticos, no 25 de Abril, não foi uma uma coisa fácil.
A população, quando entra no processo revolucionário, quando logo no dia 25 de abril passa de observadora para sujeito do processo revolucionário, uma das coisas que faz, depois de ter cercado o Marcelo Caetano em São Bento, de ter marchado para a sede da polícia política, ter assaltado a sede da censura, nessa noite, marcha sobre as cadeias, marcha sobre o Forte de Caxias, marcha sobre o Forte de Peniche, juntamente com a tropa que também lá está.
Um grande problema é que a Junta de Salvação Nacional e o Spínola não querem libertar todos os preços políticos, mas unicamente os presos que não estavam condenados por aquilo que eles chamavam crimes de sangue, ou seja, ligação à luta armada. É a força da população que se concentra em Peniche e em Caxias, que no dia 27 de abril impõe a libertação incondicional de todos os presos políticos. Portanto, até na libertação dos presos políticos, tudo isto tem uma importância fundamental.
Que significado tem a abertura do Museu Nacional Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche?
Chamo a atenção para a importância de ser museu nacional. Já há um museu da Resistência e Liberdade municipal no Aljube, outra cadeia de muito sofrimento, de muito sangue, suor e lágrimas. E agora vamos inaugurar um Museu Nacional. Só há, se não me engano muito, 11 ou 12 museus nacionais em todo o país. Este museu vai ter uma exposição permanente, que eu, juntamente com uma equipa do Instituto de História Contemporânea, ajudei a preparar e vai ser inaugurada no dia 27, um percurso da exposição permanente, mas vai ter também as celas abertas do pavilhão B.
Tudo isto vai ser apoiado em muitos filmes da época, muitas entrevistas e depoimentos. Esse complemento do depoimento, do tablet, da entrevista ou dos filmes relacionados com o do Forte de Peniche, as fugas do Forte de Peniche, etc. vai estar presente desde o primeiro dia. Aliás, a exposição permanente termina numa espécie de anfiteatro, onde podem ser exibidos os filmes ou haver outro tipo de discussões e debates sobre estas coisas.
O Forte de Peniche, mesmo antes desta inauguração formal já tinha, todos os anos, milhares de visitas. É um museu que teve sempre muita procura. E portanto agora vai ter uma inauguração formal. Na entrada vai ter um grande mausoléu, onde estão inscritos em aço todos os nomes das pessoas que passaram por Peniche e vai ter uma atualização informática que se pode captar por computador daqueles presos entre 1926 e 1934 dos quais não havia registo de entradas mas que nós procurámos compensar com uma investigação que nos permite fazer justiça a um grande número de presos que tinha passado por lá e não conseguíamos inicialmente encontrar. A Câmara Municipal vai descerrar uma lápide comemorativa dos 50 anos.
E vai haver uma grande mobilização popular. Daqui apelo a que venham todas e todos participar nessa grande jornada que é de festa e que é de luta. É uma data muito significativa nos 50 anos do 25 de Abril, a abertura das portas das prisões políticas em Portugal. E, a partir daqui, fica um espaço público para debate, para reflexão.

Hoje em dia essa reflexão parece urgente. Passados 50 anos, o que vale a memória antifascista num quadro como o de hoje?
É claro que isto tem um grande significado no momento em que 50 deputados da extrema-direita entram no Parlamento Português e entram sobre as bandeiras de uma contra-revolução cultural que quer preparar o terreno para todas as patifarias políticas que, ao abrigo dessas transformações culturais, se possam realizar.
E, nesse sentido, tem um grande significado. É preciso salientar que isto foi uma luta contra o fascismo, contra o reacionarismo ideológico e cultural, contra a regressão civilizacional que representou o Estado Novo. Nesse sentido é também um gesto de luta e desafio contra essa nova extrema-direita que acha que a ditadura foi uma coisa excelente e acha que, provavelmente, as dezenas de milhares de presos políticos que passaram por Peniche ainda deviam lá estar. A inauguração do Museu de Peniche é também um gesto antifascista atual contra a extrema-direita.