Combates de Hoje

19 de abril 2024 - 11:30

Resistir e derrotar as ameaças da direita e da extrema direita tendencialmente aliadas só pode significar uma profunda alteração democrática da política, da economia e da sociedade portuguesa.

porFernando Rosas

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Fernando Rosas na manifestação do 25 de Abril em Lisboa
Foto de Ana Mendes.

1. Parece que o ponto de partida para qualquer discussão sobre a emergência global da extrema direita é a constatação de que o mundo mudou nos finais do século XX fruto de uma alteração fundamental da relação de forças internacional. Essa rotura opera-se com a vitória do imperialismo americano e do capital financeiro na Guerra Fria, com a consequente implosão de todo o espaço de influência imperial da URSS pós 1989, incluindo a desagregação dos regimes satélites (na Europa Central e de Leste e em África), o desaparecimento do Movimento Comunista Internacional, a extinção ou drástico recuo dos PCs de obediência soviética e dos movimentos sindicais e aparelhos culturais e eles ligados. Convém lembrar que na transição dos anos 70 para os anos 80, a derrota do maoismo na China dera lugar ao início da reconstrução de um capitalismo de Estado nesse país, ainda que sob a tutela do PCC. Pensou-se, em algum momento, estar a derrotar os regimes stalinistas, mas, na realidade, a onda de choque apontava para o ataque ao marxismo como ideologia, como força política, como movimento organizado dos trabalhadores. A ofensiva ideológica do capitalismo neoliberal triunfante sobre o império soviético lograva deitar fora o bebé com a água do banho. E dessa forma se impôs. A sequela dessas derrocadas foi a imposição do “fim da história” como ideologia dominante, o triunfo do capitalismo erigido em destino ontológico da humanidade, a “não política” como técnica pretensamente neutral e incontornável da nova governança, centrada na maximização das taxas de lucro e de acumulação, tomadas como objetivos centrais da mercantilização geral da vida política e social. Na realidade, o marxismo como visão do mundo e como inspirador de políticas e organização social e as esquerdas socialistas críticas do capitalismo, passaram à defesa, tornaram-se minoritárias e contra-hegemónicas. Dito de outra forma: as forças sociais e políticas teoricamente mais aptas a organizar a defesa e a alternativa contra os novos cavaleiros do Apocalipse entraram progressivamente em refluxo, do qual, apesar de vários esforços nesse sentido, têm tido dificuldade em sair.

2. Esta situação foi obviamente potenciada pela capitulação histórica da social-democracia face ao capitalismo neoliberal, transformando-se em gestora e cúmplice da sua estratégia de agressão e regressão política, económica e social. Os partidos social-democratas associaram-se aos das direitas tradicionais na gestão do capitalismo neoliberal, originando uma espécie de monopólio rotativo ao centro no controlo do Estado, crescentemente separado da vida das pessoas comuns e substancialmente incapaz de dar resposta ao agravamento das suas condições de vida e de trabalho gerado pela ofensiva neoliberal. A grande crise de 2008/2009, seguida da pandemia de 2020/2021, não fizeram senão radicalizar e alargar esse campo de descontentamento e de protesto inorgânico.

3. Estava, nestes termos, criado a nível internacional um largo campo social recrutado em setores intermédios da população (pequenos e médios proprietários ameaçados e aflitos, funcionários receosos da perca de estatuto social, trabalhadores precários e desempregados, elementos das forças de segurança descontentes, antigos combatentes nostálgicos da guerra e de reconhecimento, jovens masculinos sem rumo certo arrebanhados no TikTok e pelo discurso machista e antifeminista da extrema-direita). De uma forma geral, gente desinformada, com medo e com raiva, que virou costas ao campo social e político de uma esquerda em refluxo (é um campo social por natureza vacilante que se inclina por instinto para o lado que intui mais forte), que protesta contra o centrismo dominante que o abandonou e, naturalmente, como nos anos 30 do século passado, é recetivo ao discurso nacionalista e autoritário da “limpeza social e política”, e por isso mesmo xenófobo, racista, antifeminista e homofóbico da nova extrema-direita. Na sua caça ao voto, esta faz-se apoiar por uma gigantesca campanha de manipulação por via informática através das redes sociais. Um discurso populista centrado na exploração dos sentimentos primitivos de certos segmentos da população que tem registado sucessos. A nova extrema-direita é a força emergente na política europeia e não só.

4. Na realidade, a nova extrema-direita cresce na transição do século XX para o século XXI e no primeiro quartel deste, com o agravamento da crise do capitalismo neoliberal e tardio. Ou seja, o seu alastramento não é algo de misterioso e inexplicável. Não surge como uma maldição que se abate inopinadamente sobre as sociedades. A sua progressão é fruto da incapacidade do capitalismo neoliberal dar resposta à crise sistémica, à segunda crise histórica dos sistemas liberais do ocidente. Esta situação de crise e impasse abriu uma janela de oportunidade quer à “reconversão” de parte da extrema-direita neofascista, racista, terrorista e marginal do pós-II Guerra Mundial (como o lepenismo em França ou a AdF na Alemanha), quer à cisão de setores da direita dos partidos da direita tradicional (casos de VOX em Espanha e do Chega em Portugal), em movimentos políticos que intuem a possibilidade de, com a crise, alargar substancialmente a sua base de apoio, passando da marginalidade para o centro político e do poder. E para isso se adaptam, redescobrindo-se como forças respeitáveis e integradas no sistema. Na realidade, nenhum deles cortou com o padrão ideológico fundamental dos seus campos de origem, nem com os propósitos de subversão autoritária e xenófoba do regime democrático. Moderam a sua linguagem (quando moderam…), mas vêm para a disputa cultural-ideológica de regressão reacionária, para o combate xenófobo e racista contra a imigração, para a regressão radical no tocante aos direitos das mulheres e LGBT+. E mesmo quando apregoam o respeito pela legalidade, não escondem os projetos de subversão constitucional e de restrição nacional autoritária das liberdades públicas e da separação de poderes. Em certos casos (o lepenismo e o Chega) alargam-se no discurso populista e social chauvinista, com críticas ao europeísmo económico, ainda que isso se converta em apoio sem reservas ao capitalismo neoliberal quando se aproximam do centro do poder. Há, na sua variedade nacional, uma essência comum que potência o seu crescimento internacional: eles são a força dinâmica e emergente que enfuna a vela e que radicaliza à direita a presenta relação de forças.

5. Por outro lado, a prolongada incapacidade de restaurar taxas de acumulação persistentemente medíocres, inquieta e radicaliza as oligarquias financeiras e aqueles que são, ainda, os seus principais gestores políticos, os partidos da direita tradicional. As elites europeias entendem que o continuado arrastar da estagnação sistémica se deve às resistências sociais e políticas generalizadas aos efeitos regressivos das políticas neoliberais. E perante tal impasse a tendência deste capitalismo tardio é para políticas duras de carater austeritário e privatizador que rompam as resistências. E isso passa pela inevitável aproximação e colaboração com a nova extrema-direita. Acabou a retórica dos “cordões sanitários”.

Esta radicalização da direita tradicional está em curso.

Desde logo no plano externo, fazendo tocar os tambores da nova guerra imperialista, impondo a lei do mais forte sobre o direito internacional e as suas organizações de regulação, fomentando o militarismo e a corrida aos armamentos e criando um ambiente interno militarizado e de exceção, favorável a todas as investidas contra o Estado de direito. No plano interno é o progressivo cerco e condicionamento das liberdades públicas (como na França de Macron ou na Hungria de Orban), o cerceamento do pluralismo informativo nos media (bem espelhado no caso português), a interferência governamental na independência da Justiça, o progressivo desmantelamento do Estado Social, o ataque aos direitos laborais (preocupação primeira de Milei na Argentina), os cortes nos apoios sociais e o aumento da pobreza (como na Itália de Meloni).

6. Pode prever-se que nesta deriva radicalizante, e face ao crescimento eleitoral da extrema-direita, as direitas tradicionais tendam a seguir, como parece sugerir Enzo Traverso, um de dois caminhos:

  • Ou se apropriam progressivamente do argumentário ideológico da extrema-direita, remetendo-a para uma complementaridade apendicular dos interesses dominantes (dir-se-á que é o que parece estar a passar-se com a presidência bonopartista de Macron, em França, com a nova lei da imigração, a tentativa de subversão do princípio constitucional do jus solis, e o estado de exceção tornado legislação ordinária).

  • Ou se aliam à extrema-direita em coligações parlamentares e/ou de governo (caso da Itália, Suécia ou Finlândia, e pode acontecer em Portugal), situações em que se poderá vir a caminhar, mais ou menos rapidamente, para o surgimento de regimes nacional-autoritários de novo tipo, provavelmente, uma reedição atualizada e adaptada dos regimes fascistas às circunstâncias do presente. Na realidade, parece estarmos num momento de transição em que ninguém sabe como a situação pode evoluir. Só é certo que as esquerdas democráticas e antifascistas devem ter um papel determinante nesse desenlace.

7. Efetivamente, resistir e derrotar as ameaças da direita e da extrema direita tendencialmente aliadas, só pode significar uma profunda alteração democrática da política, da economia e da sociedade portuguesa. Porque só ela assegura a possibilidade de resolução dos problemas mais urgentes que afligem largos setores da população (saúde, habitação, clima, educação, salários…). E só dessa maneira, na luta cultural e ideológica em torno dos valores estruturantes da democracia e do socialismo e na luta social e política em todas as frentes se pode secar o apoio social e político à extrema-direita e se constrói uma alternativa.

Esse é o combate anti-hegemónico dos dias de hoje.


Intervenção de Fernando Rosas na Conferência "A extrema‑direita e o assalto à Democracia - 50 anos do 25 de Abril".

Fernando Rosas
Sobre o/a autor(a)

Fernando Rosas

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda