Prisão privativa da polícia política
A Fortaleza de Peniche foi mandada construir pelo rei D. Manuel I, no século XVI, para prevenir a pirataria aérea. A obra só começou em 1567 e só ficou concluída quase um século depois, em 1647.
Foi prisão política de uns e de outros. Na primeira guerra mundial, foi centro de internamento dos refugiados bóeres da guerra na África do Sul. Mais tarde, depois do 25 de Abril, também estiveram aqui os retornados, quando começaram a passar das pensões para as instalações do Estado. Na primeira guerra mundial, foram internados aqui os cidadãos austríacos e alemães, que, como eram cidadãos de uma potência inimiga, foram internados também no Forte de Peniche.
A fortaleza tornou-se prisão depois do movimento militar do 28 de Maio de 1926. Com a ditadura militar, tornou-se prisão privativa da polícia política, PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado –, em 1934. Mas, antes disso, nos anos 1928, 1929, 1930, foi uma prisão política. Uma prisão política sobretudo de resistentes republicanos, anarquistas, etc., que lutaram contra a ditadura. Em 1934, foi entregue à PVDE.
Prisão de alta segurança
No fim da guerra, em 1945, a prisão foi devolvida ao ministério da Justiça, mas o controlo efetivo da prisão, através do chefe dos guardas, era sempre assegurado pela polícia política. Mesmo quando, em 1945, o governo quis dar uma imagem de abertura, devolveu a cadeia, que tinha uma má fama, ao ministério da Justiça, mas o controlo efetivo continuou a ser da polícia.
Uma prisão de alta segurança, comandada por um chefe de guardas que era um facínora e com um corpo de guardas marcados por uma grande crueldade de comportamento.
A polícia tinha aqui um homem sinistro que era o chefe dos guardas, o Ramos, um indivíduo que tinha estado na guerra civil de Espanha, que dizia que era um desperdício haver presos políticos, porque em Espanha na guerra civil resolvia-se esse problema de uma forma mais eficaz e não era preciso haver presos políticos.
O chefe dos guardas foi o homem que encarnou no início dos anos 50, quando se fizeram aqui grandes obras que criam os três pavilhões - o A, o B e o C -, o novo regime prisional de prisão de alta segurança. No início dos anos 50, o regime transformou a velha Fortaleza de Peniche numa prisão de alta segurança. Construiu estes três pavilhões. O pavilhão A foi remodelado sobre o que havia antigamente, que era o palácio do governador do Forte, e isto tornou-se numa prisão severíssima - uma prisão de alta segurança, comandada por um chefe de guardas que era um facínora, com um corpo de guardas marcados por uma grande crueldade de comportamento.
O regime prisional que aqui vigorou nos anos 50 e em grande parte dos anos 60 foi um regime prisional em que os presos, que em cada pavilhão comiam num refeitório em conjunto, não podiam falar, não podiam distribuir a comida que recebiam de casa. Caso o fizessem, seriam alvo de punições.
“Regime dos possos”
Para ir à casa de banho, para onde que quer que fosse, era um regime que se chamava o “regime dos possos”. Tinha de pedir-se autorização para tudo, era um regime absolutamente humilhante mesmo nas zonas de convívio. O convívio era estritamente policiado, a conversa dos presos era estritamente vigiada. Não obstante essas condições, muito duras, o protesto dos presos foi frequentemente respondido à paulada e à cacetada... E os presos tiveram de travar lutas muito violentas ao longo dos anos 50 e 60. Houve uma célebre greve da fome aqui nos anos 60 em que os presos foram entubados à força, ou seja, meteram-lhes os tubos à força pelo nariz.
Era um regime absolutamente humilhante mesmo nas zonas de convívio. O protesto dos presos foi frequentemente respondido à paulada e à cacetada
Toda a história prisional de Peniche é uma história de lutas, de protestos. Havia lutas em que os presos vinham às janelas gritar, havia levantamentos de rancho, havia greves da fome. Tudo isso conheceu a luta dos presos de Peniche, que foi muito dura, e que só conseguiu conquistar um regime um pouco mais favorável no período do marcelismo.
Nesse período, diminuiu o papel do chefe dos guardas e os presos obtiveram alguma humanização do regime prisional. Contudo, um dos aspetos mais sinistros desse regime era o parlatório, eram as visitas.
O parlatório estava dividido. De um lado, estavam as famílias; do outro lado, os presos. Os guardas punham-se atrás do preso a ouvir a conversa e, durante o período mais duro, qualquer alusão de qualquer tipo, fosse o que fosse, se o guarda não gostasse, interrompia a visita. “Não pode falar sobre isso, acabou-se”.
E há vários casos de lutas de famílias, de protestos dos presos por causa do regime das visitas, porque era um regime de alta tensão. Quer dizer, vocês tinham um guarda por trás, que estava a policiar a vossa conversa privada sobre a família, sobre os filhos, sobre o que quer que fosse e sobre o que quer que fosse que ele entendesse que era qualquer alusão... Um tipo não podia dizer que o regime prisional era uma merda, que o regime prisional era um castigo. Qualquer coisa desse género e "Acabou-se a visita, o senhor fica oito dias, quinze dias sem visitas, porque está a falar de coisas de que não pode. Aqui os presos são zero, aqui os presos não valem nada, aqui os presos são para ser castigados, isto aqui é um regime de castigo". Era este o discurso habitual dos guardas.
O poder inventivo dos presos
E a isto os presos respondiam com organização interna. Sempre funcionou nas cadeias uma organização clandestina interna, quer dos presos entre si, quer dos presos para o exterior.
Uma coisa extraordinária nas cadeias é o poder inventivo dos presos. E o poder inventivo dos presos é uma coisa que o carcereiro tem dificuldade em imaginar. E, portanto, há sempre uma maneira de comunicar. Há sempre um sítio onde eles todos se cruzam, um balneário onde tomam banho e onde por baixo do duche se pode deixar uma mensagem.
Houve sempre uma organização prisional clandestina ou mais que uma. Houve sempre troca de mensagens entre o interior e o exterior da cadeia. E é preciso referir o papel extremamente importante que tiveram as famílias e a população de Peniche, que foi grande cúmplice dos presos.
Houve sempre uma organização prisional clandestina ou mais que uma. Houve sempre troca de mensagens entre o interior e o exterior da cadeia, apesar de eles furarem a pasta dos dentes, cortarem a comida... Apesar de todas as medidas que tomavam, nunca deixou de haver um contacto entre os presos e o exterior. E é preciso referir o papel extremamente importante que tiveram as famílias, a organização das famílias, a solidariedade das famílias, que eram o altifalante da luta dos presos para o exterior e da população de Peniche, que foi grande cúmplice, grande apoiante, a grande solidariedade silenciosa e invisível relativamente a muitas lutas dos presos a muitas fugas dos presos.
Esta cadeia teve muitas fugas. A única cadeia do fascismo de onde não conseguiu fugir ninguém foi o novo reduto norte de Caxias, porque é uma espécie de síntese da experiência da polícia sobre as fugas.
Aqui não, houve muitas fugas, de Peniche, e várias fugas heróicas conseguidas. E há a grande fuga emblemática de janeiro de 1961, quando fugiram vários vários elementos do comité central do Partido Comunista Português e o próprio Álvaro Cunhal do terceiro piso do pavilhão A.
O Álvaro Cunhal, quando foi preso em 1949, nem sequer passou pelo Aljube, nem por Caxias, que eram cadeias que a polícia não considerava suficientemente seguras. Ficou na penitenciária de Lisboa e saiu diretamente de lá para o novo forte da cadeia de alta segurança. Nesse piso, as janelas avistavam a vila, mas foram entaipadas, exatamente para não haver nenhuma espécie de possibilidade de comunicação com os presos.
Era esse o regime prisional, pesadíssimo, um dos mais sinistros das cadeias da polícia política, e com o parlatório, com uma espécie de salinha das visitas em comum, mas onde raramente se admitiam visitas em comum.
Houve presos que passaram aqui anos e anos sem nunca terem uma visita em comum. Visitas aqui podia haver no parlatório, mas visitas em comum com a família, beijar um filho, beijar um companheiro, beijar uma companheira, nada. Houve pessoas que passaram anos e anos sem nenhuma espécie de contacto físico com os seus familiares, porque as visitas em comum eram coisas raríssimas e muito dificilmente conseguidas.
Fernando Rosas contou a história da cadeia de Peniche, numa visita do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda à cadeia e futuro museu de Peniche, em 18 de fevereiro de 2018.