Está aqui

Mário Castelhano morreu no Tarrafal há 80 anos

Em 12 de outubro de 1940, morria no Campo de Concentração do Tarrafal, a prisão política mais sinistra da ditadura de Salazar, o sindicalista Mário Castelhano, dirigente da Confederação Geral do Trabalho. Artigo de Álvaro Arranja
(Lisboa, 1896 — Campo do Tarrafal, Cabo Verde, 12 de Outubro de 1940) - Fotos de Álvaro Arranja
(Lisboa, 1896 — Campo do Tarrafal, Cabo Verde, 12 de Outubro de 1940) - Fotos de Álvaro Arranja

A ditadura dos interesses económicos oligárquicos, instaurada em 1926, protagonizada por Salazar a partir de 1932, foi implacável para os sindicalistas da Confederação Geral do Trabalho (CGT) que, na 1ª República e nos primeiros anos da ditadura, simbolizaram a resistência a um capitalismo que não hesitou em destruir a República democrática, para melhor defender os seus lucros.

A 1ª República tinha sido derrubada, para facilitar o esmagamento das reivindicações operárias, especialmente intensas nos anos 20. O pai de Salazar foi feitor em Santa Comba Dão de grandes proprietários. O filho, em Portugal e colónias, foi o feitor de uma oligarquia económica que assegurava os seus lucros com os baixos salários garantidos pela ação da PVDE/PIDE/DGS.

O Tarrafal foi a prisão política mais sinistra da ditadura de Salazar
O Tarrafal foi a prisão política mais sinistra da ditadura de Salazar

O Tarrafal foi a prisão política mais sinistra da ditadura de Salazar, construída à imagem e semelhança dos campos de concentração dos outros fascismos europeus, da Alemanha de Hitler à Espanha de Franco. Instalado em 1936, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, ficou conhecido como o “Campo da Morte Lenta”. Os maus tratos e a má alimentação, as doenças sem tratamento e o clima, numa das mais insalubres regiões de Cabo Verde, mataram 32 dos portugueses que para lá foram deportados. Nas primeiras levas de prisioneiros enviados para o Tarrafal encontravam-se muitos dos participantes nas greves do 18 de janeiro de 1934 e da revolta dos marinheiros de setembro de 1936, antifascistas, comunistas, sindicalistas e anarquistas. Encerrado em 1949, foi reaberto durante pouco tempo nos anos 50, sendo reativado na década de 60 para presos ligados a movimentos anticolonialistas.

Mário Castelhano nasceu em Lisboa, em 1896. Teve uma ação relevante como militante anarco-sindicalista dos anos 20 e 30. De família modesta, começou a trabalhar aos 14 anos na Companhia Portuguesa dos Caminhos de Ferro, participando nas greves de 1911, 1918 e 1920, vindo a ser despedido pela sua ação na organização destas últimas greves. A partir daí passa a ocupar-se em atividades administrativas no Sindicato de Ferroviários de Lisboa, na Federação Ferroviária e na Confederação Geral do Trabalho.

Em 1922, participou, como delegado da Federação Ferroviária, no Congresso Nacional Operário, realizado na Covilhã. Membro da comissão executiva da Federação Ferroviária, ficou com o pelouro das relações internacionais e a responsabilidade de redator-principal do jornal A Federação Ferroviária. Dirigiu também os jornais O Ferroviário e O Rápido.

Participou na reorganização do Conselho Confederal da CGT, após o 28 de maio de 1926, de onde saiu eleito responsável do novo secretariado e redator-principal de A Batalha.

Quatro Anos de Deportação, livro de Mário Castelhano, só publicado depois da revolução de 25 de Abril, em 1975
Quatro Anos de Deportação, livro de Mário Castelhano, só publicado depois da revolução de 25 de Abril, em 1975

Após a tentativa insurrecional de fevereiro de 1927, a repressão policial acentuou-se. Escreve Mário Castelhano, no seu livro Quatro Anos de Deportação (obra publicada só depois da revolução de 25 de Abril, em 1975), que “a ditadura militar desenvolvia uma constante perseguição a todos os elementos considerados liberais ou avançados. As prisões abarrotavam(...) a polícia especial aumentava, dia a dia, recrutada na sua maioria, entre gente da mais baixa condição moral.”

Em junho de 1927 é preso durante 17 dias. Volta a ser novamente preso em outubro desse ano, quando ia visitar um operário detido arbitrariamente no Governo Civil de Lisboa, em 26 de outubro. Levado à polícia de informações, ficou preso na Penitenciária de Lisboa.

No seu livro, refere ter sido procurado na Penitenciária “por inúmeras pessoas que vêm confirmar a minha presença na cadeia nacional, visto terem-lhes contado que tinha sido fuzilado, quando do assalto à redação do jornal A Batalha de que era diretor e da destruição completa de tudo quanto lhe pertencia, assim como dos diferentes organismos operários que tinham residência no mesmo edifício”.

Sai da Penitenciária em 15 de novembro, sendo deportado para Angola.

Durante a viagem, quando chega à Praia, em Cabo Verde, começa o seu contacto com a realidade da vida dos africanos das colónias, quando um carregador lhe leva ao barco um caixote. Escreve Mário Castelhano ter começado ali a sua “análise direta à vida da raça negra”. Refere que “esse homem, mais farrapo humano do que gente, ao transportar o caixote(...) reparou num pouco de pão que estava sobre a mesa. A sua vista não se desviou mais. Ficou como que hipnotizado. Os seus olhos brilhavam. (...) Notámos o facto e demos-lhe o pão. Nem um monossílabo pronunciou. Com uma das mãos esfrangalhou-o, meteu um pedaço à boca, a parte restante guardou-a sofregamente debaixo de uma espécie de casaco que trazia vestido.”

Chegado a Angola, permanece dois anos em Vila Nova de Seles, na província de Cuanza Sul.

Em setembro de 1930, foi enviado para os Açores e em abril de 1931, seguiria para Cabo Verde, se a escala do navio onde seguia no Funchal, não tivesse coincidido com a revolta da Madeira.

Mário Castelhano chega à Madeira a 6 de abril de 1931, dois dias depois do início da revolta da Madeira, participando na insurreição desta ilha contra o Governo
Mário Castelhano chega à Madeira a 6 de abril de 1931, dois dias depois do início da revolta da Madeira, participando na insurreição desta ilha contra o Governo

Mário Castelhano chega à Madeira a 6 de abril de 1931, dois dias depois do início da revolta da Madeira, participando na insurreição desta ilha contra o Governo. De imediato adere ao movimento contra a ditadura.

Ainda de acordo com o seu testemunho no livro Quatro Anos de Deportação, para ele é clara a necessidade de uma frente comum da oposição à ditadura. Defende que é preferível “uma situação onde, pelo menos, possamos falar, reunir, organizar e desenvolver a nossa propaganda, mesmo enfrentando violências certas, do que suportar em silêncio, uma tirania de natureza ditatorial.”

Na Madeira, Mário Castelhano, falando num comício e assumindo, de facto, a direção do jornal A Batalha, órgão do movimento sindicalista madeirense, apoiante da revolta contra a ditadura e publicado, sem censura prévia, a partir de 4 de abril de 1931. Com a derrota deste movimento, foge da ilha, embarcando clandestinamente no porão do navio Niassa, passando 72 horas sem comer, antes de chegar a Lisboa.

Em 1933, estava de novo à frente do secretariado da CGT e faz parte do grupo que organiza o 18 de Janeiro de 1934. Preso a 15 de Janeiro, três dias antes do movimento, é condenado pelo Tribunal Especial Militar a 16 anos de degredo. Depois de muito torturado, embarcou em setembro de 1934, com destino à Fortaleza de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo.

A 23 de outubro de 1936, acompanhado de cerca de 70 outros deportados, é enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal.

A frigideira no Campo do Tarrafal era uma pequena cela de castigo, completamente fechada, com teto e chão de cimento. Segundo Cândido de Oliveira, na frigideira ficava-se "condenado à contaminação pelo paludismo” e a um calor que “subia acima dos 50º”

A frigideira no Campo do Tarrafal era uma pequena cela de castigo, completamente fechada, com teto e chão de cimento. Segundo Cândido de Oliveira, na frigideira ficava-se "condenado à contaminação pelo paludismo” e a um calor que “subia acima dos 50º”

“O Tarrafal nada produz, a não ser mosquitos, a febre, a biliosa, a morte. Por isso mesmo foi eleito. O anófele (mosquito) ao serviço do fascismo. A biliosa a substituir a pena de morte. A preencher uma lacuna da legislação salazariana.” Assim escrevia (no livro Tarrafal, Pântano da Morte) Cândido de Oliveira, figura grande do futebol, selecionador nacional, prisioneiro no Tarrafal durante 2 anos, depois de muitas torturas na PVDE, em Lisboa. Perante “a morte de um camarada(...) deixa de haver comunistas, anarquistas, republicanos. Há luto nas almas e revolta nos espíritos.”

O mesmo acontecera na Casa dos Deportados da Ilha do Pico, como escreveu Mário Castelhano:

“Anarquistas, sindicalistas, comunistas e republicanos partiram do princípio que a mesma violência ali os havia juntado e que desinteligências, entre si, apenas os enfraqueceria em presença do inimigo comum.”

Mário Castelhano morreu em 12 de outubro de 1940, com 44 anos, vítima de febre intestinal, agravada pela constante falta de assistência médica e medicamentosa, bem como pelas paupérrimas condições de higiene do Campo de Concentração do Tarrafal.

Foi condecorado, postumamente, com o grau de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade, a 30 de Junho de 1980.

Artigo de Álvaro Arranja para esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Professor e historiador.
Termos relacionados Esquerda com Memória, Sociedade
(...)